quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

creperia, calçadão e discoteca

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Alan Pauls sobre Eric Rohmer e a praia (trecho de A vida descalço):

"Não é o sul, não é o Mediterrâneo, não são as orlas chiques que aparecem nos filmes de Rohmer (e quando aparecem, como Biarritz em O raio verde, aparecem planas, sem brilho nem sedução), e sim as praias comuns da Normandia ou da Bretanha, tão impessoais, tão carentes de cor local e de glamour quanto uma colônia de férias do sindicato geral de adolescentes. As histórias se passam no verão, mas o tempo nem sempre ajuda: os impávidos céus azul-celeste são a exceção, não a regra, e os veranistas rohmerianos devem se contentar amiúde com o duvidoso encanto das manhãs ventosas, a nebulosidade tenaz e um sol metálico que enfeia cruelmente os corpos e obriga a seduzir ou a ser seduzido entrecerrando os olhos. No entanto, nunca o cinema de Rohmer parece tocar tanto o coração do desejo como quando se instala nesses balneários de meia tigela, que preferem a funcionalidade do banal a qualquer forma de beleza natural. Antes de seus atrativos visuais, Rohmer escolhe a praia porque seu sistema, altamente dependente da meteorologia, ao mesmo tempo regular (estações, ciclos, biorritmos, fases naturais: mais de uma vez o cineasta declarou que o único roteiro que usou em O raio verde foram as tábuas de marés) e caprichoso (imprevistos, variáveis difíceis de controlar, acontecimentos excepcionais), parece reproduzir numa escala atmosférica o jogo de mecânica e acaso, maquiavelismo construtivo e aleatoriedade, que ocupa o centro da arte rohmeriana. A praia, além do mais, é o território das férias, do ócio, da disponibilidade: estados de potência frágeis e ao mesmo tempo promissores que prolongam e preparam os pequenos grandes incidentes (encontros, coincidências, encadeamentos, equívocos) de que são feitas as histórias de Rohmer. Mas principalmente porque a praia é o espaço hipercondutor por excelência, e, portanto, o tipo de território ideal para que o desejo, força nunca conforme, sempre distraída, desdobre toda sua mobilidade e descreva suas trajetórias mais caprichosas. Segundo o idioma rohmeriano, a praia só é permeável ao erotismo na medida em que impede que o desejo se fixe numa posição sedentária e o condena a não ceder, a seguir sempre adiante, a peregrinar sem descanso. Assim, reduzida a uma espécie de princípio conceitual, a praia aparece como esvaziada, puro espaço de circulação onde nascem os ímpetos eróticos e os marivaudages do coração que depois terão lugar em outra parte. Porque “a praia”, segundo Rohmer, é basicamente essa “outra parte”: não a areia, nem o mar, nem os guarda-sóis, e sim os passeios adjacentes, os bares, os calçadões, as creperias, as discotecas, os quartos de hotel, as casas de veraneio. Quando Rohmer a surpreende tomando sol na praia de Dinard, o bronzeado de Margot, a protagonista de Conto de verão, passa quase despercebido. É só ao vê-la atendendo à mesa de Gaspard na creperia onde trabalha, ou caminhando a seu lado entre árvores, ou empreendendo uma excursão ao refúgio de um velho marinheiro — ou seja: naqueles momentos em que a marca que a praia deixou nela reaparece num contexto heterogêneo —, que notamos a cor que suas faces adquiriram, esse rubor tênue, mas paulatino, que se intensifica à medida que o filme avança (Rohmer costuma filmar suas ficções estivais em ordem cronológica, do princípio ao fim), em que se confundem a influência do sol e a excitação, a natureza e o pudor, e que termina por torná-la desejável. Ao contrário, a praia, contexto forte, introduz tamanho contraste com a vida que as percepções da identidade podem se alterar: no dia seguinte, depois de ter comido na creperia onde Margot o atendeu, Gaspard topa com ela na praia, mas não a reconhece; é ela quem o interpela e o faz lembrar que se conheceram. Além de postular uma sutil defasagem social — os clientes nunca se lembram dos garçons; os garçons sempre dos clientes —, a cena descreve bem o efeito de vida dupla que a praia institui: vestidos não somos os mesmos que de maiô, e quem nos vir entrando no mar provavelmente não nos reconhecerá à noite tomando sorvete na calçada ou dançando na discoteca."
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