segunda-feira, 19 de março de 2018

uma explosão de energia passageira

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"Do lado de fora, uma coruja piou.
Tive consciência do odor que vinha do nosso terno: linho, suor, cevada.
Eu tinha pensado em não voltar aqui.
Assim pensou o sr. Lincoln.
No entanto, aqui estou.
Um último olhar.
E se acocorou diante da caixa de doente.
Seu rostinho de novo. As mãozinhas. Aqui estão. Para sempre. Assim mesmo. Nenhum sorriso. Nunca mais. A boca formando uma linha estreita. Ele não parece estar dormindo. Dormia de boca aberta e seu rosto exibia muitas expressões quando sonhava, além de às vezes murmurar palavras sem nexo.
Então ocorreu algo notável: o sr. Lincoln tentou fazer com que a forma doente se levantasse. Silenciou sua mente e a abriu para o que quer que existisse e ele não conhecesse pudesse fazer a forma doente se levantar.
Sentindo-se um tolo, não acreditando de fato que tal coisa fosse mesmo…
Seja como for, é um mundo complexo, e tudo pode acontecer.
Contemplou a forma doente. Concentrando-se num dedo da mão, esperando pelo menor…
Por favor por favor por favor.
Mas nada.
Isso é superstição.
Não adianta.
(Meu senhor, trate de recobrar o bom senso.)
Errei ao vê-lo como algo fixo e estável, acreditando que o teria para sempre. Ele nunca foi fixo nem estável, e sim uma explosão de energia passageira, temporária. Eu deveria ter sabido disso. Ele não tinha uma aparência ao nascer, outra aos quatro anos, mais uma aos sete, e mudou inteiramente aos nove? Nunca permaneceu o mesmo, mudava de um instante para o outro.
Veio do nada. Tomou forma, foi amado, sempre destinado a voltar ao nada.
Só não pensei que seria tão cedo.
Ou que iria antes de nós. 
Dois seres passageiros e temporários desenvolveram sentimentos mútuos.
Dois rolos de fumaça se mesclaram.
Acreditei na solidez dele, e agora devo pagar.
Não sou estável, Mary não é estável, mesmo os prédios e monumentos não são estáveis, como não é a cidade e o mundo inteiro. Tudo se altera, está se alterando neste momento.
(Sente-se mais consolado?)
Não.
(Está na hora.
De ir.)
Fiquei tão distraído com a intensidade das reflexões do sr. Lincoln que me esqueci totalmente do meu propósito.
Mas então me lembrei.
Fique, pensei. É imperativo que o senhor fique. Diga a Manders que volte sozinho. Sente‑se no chão, fique confortável e vamos fazer o menino entrar no senhor. Quem sabe que efeito positivo pode resultar deste encontro que os dois desejam tão ardentemente?
Forneci então as imagens mentais mais precisas que pude gerar sobre a permanência dele: sentado; contente por sentar; sentado com conforto, encontrando a paz ao permanecer ali etc. etc. 
Hora de ir.
Pensou o sr. Lincoln.
Erguendo-se ligeiramente, como que se preparando para partir.
Enquanto ele aprendia a andar, eu me abaixava, o punha no colo e secava suas lágrimas com beijos. Quando ninguém estava brincando com ele, eu chegava com uma maçã e a cortava. Para nós dois. 
Isso resolvia tudo.
Isso e seu jeito natural.
Logo ele começava a dar ordens e liderar.
E agora vou abandoná-lo, sem quem o ajude, neste lugar horrível?
(Você está se iludindo. Ele não está ao alcance de sua ajuda. O velho sr. Grasse em Sangamon visitou o túmulo de sua mulher por quarenta dias seguidos. No início pareceu admirável, mas não demorou fazíamos piadas sobre ele, e sua loja foi à falência.)
Por isso, está resolvido:
Resolvido: precisamos, agora precisamos…
(Obrigue-se a pensar sobre essas coisas, por mais duras que sejam, pois elas o levarão a fazer o que você sabe ser o certo. Olhe.
Olhe para baixo.
Para ele.
Para aquilo.
De que se trata? Pergunte‑se com sinceridade.
É ele?)
Não é.
(É o quê?)
Isto é o que o carregava de um lado para outro. A essência (o que era carregado, o que amávamos) se foi. Embora isto fosse parte daquilo que amávamos (amávamos a aparência dele, a combinação da centelha e do portador, assim como seu jeito de caminhar, pular, rir e fazer palhaçadas), isto, isto aqui, é a parte menor daquele mecanismo tão amado. Sem a centelha, isto, isto que jaz aqui, é meramente…
(Pense. Vá em frente. Permita-se pensar aquela palavra.)
Prefiro não.
(É verdade. Vai ajudar.)
Não preciso pronunciá-la, senti-la, agir sob o efeito dela.
(Não é correto fazer disto um fetiche.)
Vou embora, estou indo, não preciso ser mais convencido.
(Mesmo assim, fale, para ser sincero. Pronuncie a palavra que está crescendo dentro de você.)
Ah, meu pequeno companheiro.
(Sem aquela centelha. O que jaz aqui é apenas…
Diga.)
Carne.
Uma infeliz…
Uma conclusão muito infeliz.
Tentei de novo, esforçando-me ao máximo:
Fique, supliquei. Ele não está fora do alcance de sua ajuda. Não mesmo. O senhor ainda pode lhe fazer um grande bem. Na verdade, pode ajudá-lo mais agora do que jamais pôde fazê-lo naquele lugar anterior.
Porque a eternidade dele se encontra em jogo, meu senhor. Se ele permanecer, o sofrimento que o possuirá será muito além do que o senhor é capaz de imaginar.
Portanto, demore-se um pouco mais, não saia correndo, fique sentado por alguns minutos, ponha‑se à vontade, dê tempo ao tempo, acomode-se e sinta-se contente.
Suplico que faça isso.
Pensei que isso ajudaria. Não ajuda. Não preciso voltar a ver isto. Quando precisar ver meu Willie, o farei no coração. Como é o certo. Lá ele ainda está intacto, completo. Se eu pudesse conversar com ele, sei que Willie aprovaria; ele me diria que está certo que eu vá e não volte mais. Era um espírito tão nobre! O coração dele amava a bondade acima de tudo.
Sendo assim, está bem, meu garoto querido. Você sempre soube a coisa certa a fazer. E me encorajaria a fazê‑lo. Pois vou fazer agora. Embora me seja penoso. Todas as dádivas são temporárias. Abandono esta a contragosto. E agradeço por tê-la recebido. A Deus. Ou ao mundo. A quem me tenha dado tal dádiva, agradeço humildemente, e rezo para que eu haja me comportado bem com ele e que, ao seguir em frente, eu continue fazendo a coisa certa.
Amor, amor, eu sei o que você é."

Lincoln no limbo, George Saunders, 2017, trad. Jorio Dauster
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