domingo, 16 de julho de 2017

pegar um clipe

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"Há muito tempo, quando eu escrevia para revistas pulp, botei numa história uma frase assim: 'Ele saiu do carro e andou pela calçada banhada de sol até que a sombra de um toldo bateu em seu rosto como um jato de água fria'. Quando a história foi publicada, a frase foi cortada. Os leitores, argumentava-se, não gostavam desse tipo de coisa, que só atrapalhava a ação. Eu me dispus a provar que eles estavam errados.

Minha teoria é que os leitores acham que só se importam com a ação; que, na verdade, embora não saibam disso, o que importa para eles, e o que importa para mim, é a criação da emoção por meio do diálogo e da descrição. As coisas de que eles se lembravam, as que os impressionavam, não eram, por exemplo, que um homem fosse morto, mas que no momento de sua morte ele estivesse tentando pegar um clipe da superfície lustrosa de uma mesa e que este lhe escapasse, de modo que em seu rosto houvesse uma expressão de tensão, que sua boca estivesse meio aberta numa espécie de ricto atormentado e que a última coisa no mundo em que ele estivesse pensando fosse a morte. Ele nem sequer ouviu a morte bater à porta. O danado do clipe continuou escapando de seus dedos."

Raymond Chandler, em carta a Frederick Lewis Allen, 1948
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