terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

os fatos luminosos, ao serem narrados

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"Caedmon, o primeiro poeta da língua inglesa cujo nome é conhecido por nós, aprendeu a arte de cantar durante um sonho. Segundo a Historia ecclesiastica de Beda, ele era um vaqueiro analfabeto que não sabia cantar. Quando, durante essa ou aquela alegre festa, ficava decidido que todos deveriam, se revezando, apresentar uma canção, Caedmon se afastava constrangido, alegando que tinha de cuidar dos animais. Certa noite, alguém tenta lhe passar uma harpa, depois do jantar, mas Caedmon foge para o curral. Lá, no meio dos ungulados, começa a cochilar e é visitado por uma misteriosa figura, provavelmente Deus. 'Você deve cantar para mim', Deus diz. 'Eu não sei', diz Caedmon, talvez não com essas palavras. 'Por isso é que estou dormindo no curral, em vez de estar bebendo hidromel com meus amigos ao redor da fogueira.' No entanto, Deus (ou um anjo ou um demônio -- o texto é vago) insiste em pedir uma canção. 'E o que eu deveria cantar?', pergunta Caedmon, que imagino se achar desesperado, suando frio durante o pesadelo. 'Cante o começo das coisas criadas', o visitante instrui. Então, Caedmon abre a boca e, para seu próprio espanto, deslumbrantes versos em louvor a Deus são emitidos.

Caedmon acorda como poeta e por fim se torna monge. Mas o poema que ele cantou ao acordar, segundo Beda, não era tão bom quanto o que cantara no sonho, 'pois as canções, mesmo que nunca sejam muito bem feitas, não podem ser passadas de uma língua para outra, palavra por palavra, sem que percam algo de sua graça e valor'. Se isso é verdade no tocante à tradução no mundo desperto, duplamente é verdade na tradução de um sonho. O poema real que Caedmon traz de volta para a comunidade humana é necessariamente um mero eco do primeiro.

Allen Grossman, cuja leitura de Caedmon estou pirateando aqui, extrai dessa história (da qual há muitas versões) uma lição severa: a poesia surge do desejo de ir além do finito e histórico -- do mundo humano da violência e das diferenças -- para alcançar o transcendente ou divino. Você é levado a escrever um poema, sente-se intimidado a cantar, por causa desse impulso transcendente. Mas, tão logo passa do impulso para o poema real, a canção do infinito é comprometida pela finitude dos termos. Num sonho, seus versos podem anular o tempo, suas palavras podem se livrar da história do uso que elas têm, você pode representar o que é irrepresentável (por exemplo, a criação da própria representação), mas quando acorda, quando volta para junto de seus amigos ao redor da fogueira, encontra-se de novo no mundo humano, com sua lógica e sua lei inflexíveis."

Ben Lerner, O ódio pela poesia, 2016

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Brett Weston, Broken window, San Francisco, 1937

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"Eu tinha razão: a tarefa era e é impossível. Há coisas que não podem ser narradas. Todo este livro é o testemunho de um grande fracasso. O sistema de criar um entorno para cada acontecimento luminoso que eu queria narrar me levou por caminhos bastante escuros e tenebrosos. Vivi no processo inumeráveis catarses, recuperei grande quantidade de fragmentos meus que tinham sido enterrados no inconsciente, pude chorar um pouco do que eu deveria ter chorado muito tempo atrás, e foi sem dúvida uma experiência notável. Ler o que escrevi continua sendo, para mim, comovente e terapêutico. Mas os fatos luminosos, ao serem narrados, deixam de ser luminosos, decepcionam, soam triviais. Não são acessíveis à literatura ou, pelo menos, à minha literatura. Acho, com certeza, que a única luz que se encontrará nestas páginas será a que o leitor lhes emprestar."

Mario Levrero, "Prefácio histórico ao romance luminoso", 2002
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