quinta-feira, 21 de maio de 2020

uma luz muito forte de repente

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Então você conta uma história a si mesma. Ela fica ali por umas horas, se fixando. Primeiro, parece que a história poderia ter sido contada de um outro jeito. Mas logo você se surpreende com a ideia de que não, talvez não exista nenhum outro jeito de contar aquilo. Você bem que tentou, você tentou, sim. Alguns dias se passam e agora, para dizer a verdade, você não quer contar a história de nenhum outro jeito que não exatamente aquele. A história encontrou sua forma. Você olha para ela, como se olhasse para um buraco negro, e diz: bem, não vamos mudar nada por aqui. É o tipo de história confusa. Só você sabe o quanto custou. É melhor tocar a vida e cuidar para que o significado não se mova, ou pelo menos não se mova muito. Por um tempo, a história segue sendo repetida, quando vem à cabeça, e é preciso admitir que por conta de tanta coisa que foi acontecendo você não tem pensado nela mais tanto assim. Ela se torna uma montanha. Ela se torna uma onda contra a pedra. Quer dizer, às vezes a história volta com sua luz metálica, o brilho de explosão atômica que tanto te assustou no início. Mas você respira, e tudo está no lugar.





Você toma um copo de leite, come uma banana, dá mais uma volta na chave da porta. A história começa a ficar para trás. Semanas passam. A vida tem o seu ritmo, afinal. Mas um dia você acorda um pouco estranha, é um dia igual a todos os outros, você está tomando café na mesa da cozinha, e é mais uma sensação, como se alguém tivesse tirado uma chapa da sua cabeça. Como se alguém tivesse acendido uma luz muito forte de repente.









Aos poucos você entende que a montanha, aquela montanha, uma velha conhecida, por um segundo ela agora é uma outra coisa. Uma lona cobrindo máquinas e ferramentas na garagem? Você não sabe muito bem. E tudo fica assim, incerto. São dias, semanas. Há um incômodo. Você tenta se organizar. Mas alguma coisa na história, quando você pensa, faz seu coração tremer. É como se por cima dela agora houvesse uma lâmina transparente. A história é a mesma, mas entre você e ela existe alguma outra coisa.

Uma tarde, você deixa o carro num estacionamento e caminha através de uma praça até a rua onde fica a casa da história. Você precisa procurar. Fazia tempo que você não passava por ali. Mudou muito. Quando reconhece enfim a casa, você busca a história e tenta contá-la mais uma vez. Há um prazer um pouco falso nisso, a história se reveste de um ar remoto, deslocado. Na sua superfície agora você distingue manchas. Riscos, um granulado que parece a neve. Mas não é a neve. A história está sendo distorcida pelo calor, pela luz, pelo barulho da rua? Ou é você que está agindo sobre ela. Ecos, uma noite de ano-novo, bicicletas, o mar.



Embora seja exatamente a mesma, a história não se parece muito mais com aquela que você contou um dia a si mesma. A história se combinou também a outras histórias recuperadas pela própria história, e começa a ser difícil separá-las umas das outras, entender onde uma começa e termina a outra. Elas vão se sobrepondo. Isso se torna um problema, ou pelo menos é um problema quando você tenta reordenar aquilo. Você contou a história tantas vezes para si mesma. Não é possível que agora não possa mais. É como se a história escorresse, borrasse… e de repente você pensa, não sem assombro: o que era mesmo aquela história que existiu por tanto tempo? Você não sabe mais o que te levou a contá-la daquele jeito; nada nela te dá segurança. Você coloca a palma da mão sobre a chama de um isqueiro. Você rega a jabuticabeira do quintal. Você faz um barquinho de papel. Você tricota um cachecol, porque o inverno chegou. Na sala, há uma luz mortiça de abajur, uma poltrona, tudo está silencioso. Na cozinha também. Você diz, com raiva, para que todos te ouçam: eu vou dar uma volta! E pega a bolsa, e bate a porta. É tarde, faz frio. No escuro, enquanto caminha, você conta a história para si mesma. Mas a origem e os detalhes se perderam. Há noites no deserto. Há uma noite em que você ajudou um gato a voltar para casa. Há a noite em que você não conseguiu falar e sentiu muito medo. Aquilo tudo fica ali por um tempo, te observando. Você aperta o passo e quando percebe, você está chorando. Mas você não deveria estar chorando. É preciso encontrar um jeito de contar a história. Deve estar aqui em algum lugar.







Conto publicado no blog Entretempos, da Folha de S.Paulo. Fotos do artista japonês Daisuke Yokota.
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quarta-feira, 20 de maio de 2020

da série personagens horríveis

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ZOOM

Mas minha cena preferida é uma cena de sexo em que o sexo não existe, está num conto do Tchékhov, é quando o Gurov seduz a Ana. Eles vão para a casa dela, e entram no quarto, e em vez de narrar o que acontece na cama, Tchékhov leva a gente pra dentro da cabeça desse homem, Gurov, e ele passa a lembrar e a fazer uma lista de outras mulheres com quem saiu e trepou. Tchékhov narra a cena desse jeito, trocando o sexo por essa lista de mulheres. Depois, a Ana, que é casada, fica sentada na cama, pensativa, desolada, como a pecadora de uma tela antiga, é assim que Tchékhov descreve ela. Gurov vai então até uma mesa no canto do quarto, onde tem uma melancia. Ele corta um pedaço e começa a morder e mastigar a melancia. Passa mais de uma hora nisso. Pelado, que é como eu imagino ele, olhando pra Ana, cada um do seu lado, sem dizer nada, ela olhando pra ele, ele do lado de cá, olhando pra ela, mexendo no pau, mastigando a melancia. 

Miniconto para a edição especial sexo na quarentena da Gama Revista.
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domingo, 3 de maio de 2020

dormir e sonhar

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"Él venía de una semana de trabajo en el campo
en casa de un hijo de puta y era diciembre o enero,
no lo recuerdo, pero hacía frío y al llegar a Barcelona la nieve
comenzó a caer y él tomó el metro y llegó hasta la esquina
de la casa de su amiga y la llamó por teléfono para que
bajara y viera la nieve. Una noche hermosa, sin duda,
y su amiga lo invitó a tomar café y luego hicieron el amor
y conversaron y mucho después él se quedó dormido y soñó
que llegaba a una casa en el campo y caía la nieve
detrás de la casa, detrás de las montañas, caía la nieve
y él se encontraba atrapado en el valle y llamaba por teléfono
a su amiga y la voz fría (¡fría pero amable!) le decía
que de ese hoyo inmaculado no salía ni el más valiente
a menos que tuviera mucha suerte."

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"Escucho a Barney Kessel
y fumo fumo fumo y tomo té
e intento prepararme unas tostadas
con mantequilla y mermelada
pero descubro que no tengo pan y
ya son las doce y media de la noche
y lo único que hay para comer
es una botella casi llena
con caldo de pollo comprado por la
mañana y cinco huevos y un poco
de moscatel y Barney Kessel toca
la guitarra arrinconado entre la
espada y un enchufe abierto
creo que haré consomé y
después me meteré en la cama
a releer La invención de Morel
y a pensar en una muchacha rubia
hasta que me quede dormido y
me ponga a soñar."

"La suerte", 1987 & "Escucho a Barney Kessel", 1981, Roberto Bolaño
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