segunda-feira, 28 de julho de 2008

barômetros, um boné feioso, sinetas

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Escrevi o texto abaixo para a Entrelivros de agosto, uma edição sobre literatura & jornalismo. É que toda vez que eu leio o Flaubert, eu penso que ele é ótimo jornalista (não emite opinião, mas faz com que a reflexão esteja dentro do que é contado). Daí tentei investigar o que há de Flaubert na autora mais legal do new journalism, a Lillian Ross do livro Filme.
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Flaubert está em muitos lugares. Assim que chegou a Paris, no verão de 1959, Vargas Llosa foi a uma livraria do Quartier Latin e lá estava ele. Foi a primeira coisa que fez na cidade: Llosa comprou um exemplar de Madame Bovary e, a madrugada no quarto, foi enfeitiçado por Emma, passeou pelas ruas encardidas de Tostes e conheceu Charles, cuja conversa era “sem relevo como uma calçada e as idéias de todo o mundo nela desfilavam com seu traje comum”. A cidade e os cachorros, que ficaria pronto em 1961, seu primeiro romance, é em grande parte esta madrugada em que, lendo Flaubert, Llosa descobriu que tipo de escritor gostaria de ser. Anos antes, Proust também havia encontrado Flaubert. O autor da Recherche, depois de dizer que não gosta de todos os livros de Flaubert, nem mesmo de seu estilo, não gosta muito de Flaubert, não, claro, quem somos nós para discutir, elogia a forma como o narrador flaubertiano desaparece no objeto de sua descrição, elogia os brancos e silêncios, a capacidade que Flaubert tem de narrar por omissão e, antecipando o fascinante mundo da locomoção em aeroportos, diz que as páginas de Flaubert são uma grande esteira rolante, “em deslocamento contínuo, monótono, morno, indefinido, algo sem precedentes na literatura”. Para Zola, Flaubert era o escritor realista por excelência, modelo a ser seguido e admirado. O Flaubert de Henry James foi principalmente um formalista, aquele que alçou o gênero romance à categoria de arte. Entre os contistas, Maupassant, no prólogo de Pierre et Jean, diz ter aprendido do próprio Flaubert que tudo pode ser bom tema literário (barômetros, um boné feioso, sinetas). Bábel, Hemingway. Todos acreditaram ver Flaubert, gigantesco, planando acima de suas cabeças.

Em 1950, a jornalista Lillian Ross, então com 24 anos, acompanhou as andanças de Ernest Hemingway durante dois dias pela cidade de Nova York. Na época, Hemingway morava em Cuba e estava de passagem rumo a Itália (“Nova York é uma cidade para ficar pouco tempo”). Os dois haviam se conhecido três anos antes, quando Lillian preparava um artigo sobre um ex-policial que havia se tornado toureiro. Em Nova York, Ross ajudou Hemingway a comprar um casaco, foram juntos ao Metropolitan, beberam champagne com Marlene Dietrich e ouviu histórias como a da vez em que o escritor viveu com um urso, ficou bêbado com o bicho e se tornaram bons amigos. O perfil foi publicado nas páginas da The New Yorker e mais tarde virou livro, Portrait of Hemingway. Lillian admirava Hemingway. No posfácio de uma das edições do livro, Ross escreve que foi com ele que aprendeu tudo sobre clareza, simplicidade e a beleza de uma prosa sem adornos. “Foi na sua ficção”, diz, “que aprendi a escrever de maneira factual.”

Em um trecho de “Teoria da narrativa: posições do narrador”, o professor Davi Arrigucci Jr. faz uma breve análise do narrador em Hemingway. Toma como exemplo o relato “Hills like white elephants”, do livro Men without women. O conto, resume Arrigucci, é a história de um homem e uma mulher que chegam a uma pequena estação no vale do Ebro, Espanha, num dia de calor e sem sombra. Pedem duas cervejas e começam uma conversa aparentemente banal, mas que vai se tornando tensa (discordam sobre as colinas brancas da desolada paisagem); revela-se então o conflito do casal em torno de um eventual aborto que a moça vai ou não fazer. Isso tudo de forma alusiva e velada. “O continho se resume nisso”, anota. “Ocorre, porém, que as cenas podem assumir uma dimensão simbólica, aludindo a um universo complexo de relações que se entrevê obliquamente através dos poucos elementos concretos de fato apresentados de modo direto.” Essa formulação pode ser aplicada a muitas das narrativas de Hemingway. “The killers”, por exemplo. Trata-se da história dos matadores que, em um bar, enquanto esperam a chegada do homem que vão assassinar, discutem o cardápio (querem lombo de porco e croquetes de frango, mas o garçom avisa que naquele horário só pode servir bacon e presunto com ovos). Eles aguardam, o homem não chega, então decidem ir embora. Quando é avisado, em seu quarto, que matadores estão no seu encalço, o homem diz que não fugirá, que é inútil. Não sabemos muito a seu respeito, não sabemos porque os assassinos estão atrás dele. Sobre a recusa do homem em escapar, Nick, que está no bar quando os matadores chegam, comenta: “I can’t stand to think about him waiting in the room and knowing he’s going to get it. It’s too damned awful”. E o garçom arremata: “Well, you better not think about it”. Nada é explicado. Tudo fica em suspenso e é construído “com o não-dito, o subentendido, a alusão”.

No verão de 1950, o cineasta John Huston convidou Lillian Ross para ir a Hollywood observá-lo em seu novo trabalho, a filmagem de A glória de um covarde, baseado em The red badge of courage, romance de Stephen Crane, sobre a guerra civil americana. Ross aceitou. Passou um ano e meio na cidade, seguindo todas as etapas de realização do filme, e escreveu aquela que viria a ser a mais importante reportagem sobre uma produção em Hollywood. Publicada inicialmente na The New Yorker, a série de textos logo virou livro, Picture (Filme, no Brasil).

De saída, Lillian percebeu que o que tinha nas mãos era uma espécie de romance, “pelo modo como as personagens podem se desenvolver e pela variedade de relações que há entre elas”. Ross fez do diretor Huston, dos produtores Gottfried Reinhardt e Dore Schary, e do chefão da MGM, Louis B. Mayer, seus personagens.

Picture é a história da conturbada realização de um filme. Mayer não acredita no projeto, diz que A glória de um covarde será um retumbante fracasso. Huston, Schary e Reinhardt apostam no filme. Dessa tensão, nasce grande parte dos episódios. Ross vai gradualmente compondo o pano de fundo (a pressão para que o filme seja um sucesso comercial, a escalação dos atores, os bastidores), as cenas se sucedem, ela jamais emite opiniões e deixa que os fatos e as falas assumam sua “dimensão simbólica” e sejam eloqüentes por si. Era o tipo de coisa que Lillian admirava na prosa de Hemingway: como os elementos concretos são apresentados de modo direto, “o poder mágico nos detalhes factuais”. Depois de mais de cento e dez páginas de livro é que a primeira cena do filme de Huston é rodada. Vamos, pacientemente, seguindo os passos de Ross, que não se apressa a dizer, na própria voz, aquilo que as coisas dirão ou mostrarão por si mesmas.

No livro que escreveu sobre Flaubert, A orgia perpétua, Vargas Llosa diz que passou despercebida pela crítica a relação que existe entre Flaubert e o ramal da narrativa contemporânea em que “a perspectiva primeira do relato não é o mundo interior das idéias e sentimentos, mas o mundo exterior das condutas, os objetos e os lugares”. Llosa sugere que esse tipo de narrativa, “que descreve sem interpretar, que mostra sem julgar, em que o fator visual é preponderante” tem um parentesco irremediável com Flaubert. E, para sermos mais rigorosos, com o que Erich Auerbach chamou de “realismo apartidário, impessoal e objetivo” flaubertiano.

No prefácio de Reporting, Lilian Ross (que de acordo com seu editor na The New Yorker, William Shawn, tinha o dom da invisibilidade) escreveu: “Evite a interpretação, a análise, passar os seus julgamentos dizendo ao leitor o que ele deveria pensar. Restrinja-se ao que pode ser observado e reportado. Chegue o mais perto possível da verdade e deixe o leitor fazer a cabeça por si mesmo. (...) Ter um ponto de vista é outra coisa: o seu ponto de vista deve estar implícito nos fatos que você apresenta”. Llosa diz que alguns críticos atribuem a Hemingway a invenção do narrador invisível e que outros dizem que sua aparição no romance é conseqüência do cinema. “Na verdade, este é o ponto de vista hegemônico em Madame Bovary, e Flaubert foi o primeiro a instrumentalizar certas formas de escrita para torná-lo possível”, escreve. “Flaubert usou o relator invisível para dar autonomia ao narrado, conseguir que o mundo fictício parecesse soberano.”

Ross vai, aos poucos, mostrando como produtores e chefes de estúdio ao proporem alterações que visam atrair público e dar ao filme de Huston uma “história”, acabam por destruí-lo. Em um trecho a ser destacado, o produtor Gottfried Reinhardt diz que A glória de um covarde precisa de uma narração em off. “Sempre sustentei que aquilo que torna o livro notável são os pensamentos e sentimentos do protagonista, e não suas ações. Como eles podem ser dramatizados? John [Huston] achava que seriam inerentes às cenas, na expressão do personagem.” Reinhardt (que dizia que as pessoas ficavam inseguras quando se afastavam de Hollywood — “somos crupiês de um cassino desonesto”) queria que os pensamentos do personagem pudessem ser ouvidos, acreditava que isso daria ao filme uma “história”, faria com que os espectadores gostassem do filme.

Se para o produtor Reinhardt, o filme de Huston pecava pela falta de dicas e comentários, para Adorno, a prosa de Flaubert era carente de reflexão. Em um texto chamado “Posição do narrador no romance contemporâneo”, o filósofo alemão escreve que “o romance tradicional, cuja idéia talvez se encarne de modo mais autêntico em Flaubert, deve ser comparado ao palco italiano do teatro burguês”. Adorno acredita que “um pesado tabu paira sobre a reflexão: ela se torna o pecado capital contra a pureza objetiva”, representada para ele pela prosa flaubertiana.

Vale aqui transcrever o que diz Erich Auerbach, em Mimesis: “No caso de Stendhal e de Balzac, ouvimos com frequência, quase constantemente, aliás, o que o autor pensa acerca das suas personagens e dos acontecimentos; Balzac acompanha algumas vezes as suas narrações com comentários comovidos, ou irônicos, ou morais, ou históricos, ou econômicos. Ouvimos também muito amiúde o que as próprias personagens pensam ou sentem, e isto ocorre freqüentemente de tal maneira que o autor se identifica com a personagem numa situação dada. Estas duas coisas faltam em Flaubert quase inteiramente. A sua opinião sobre os acontecimentos e as personagens não é expressa; e quando as próprias personagens se manifestam, isto nunca ocorre de tal forma que o autor se identifique com a sua opinião, ou com a intenção de levar o leitor a se identificar com ela. Embora ouçamos o autor falar, ele não exprime qualquer opinião e não comenta. Seu papel limita-se a escolher os acontecimentos e a traduzi-los em linguagem, e isto ocorre com a convicção de que qualquer acontecimento, se for possível exprimi-lo limpa e integralmente, interpretaria inteiramente a si próprio e os seres humanos que dele participassem; muito melhor e mais inteiramente do que o poderia fazer qualquer opinião ou juízo que lhe fosse acrescentado. Sobre esta convicção, isto é, sobre a profunda confiança na verdade da linguagem empregada com responsabilidade, honestidade e esmero, repousa a arte de Flaubert.” Auerbach percebe que o que faz Flaubert é trazer a reflexão para dentro do que é narrado, e essa é justamente uma de suas inovações. A objetividade não está em desacordo com a reflexão. No romance flaubertiano, a subjetividade estaria difusa na matéria narrativa, a estrutura torna-se comentário.

Ao jornalismo que pratica Ross, para quem o ponto de vista deveria estar sempre implícito na apresentação dos fatos, é possível aplicar algumas idéias de Auerbach sobre a prosa de Flaubert: não há objetos elevados e baixos; cada objeto contém, na sua peculiaridade, tanto a seriedade quanto a comicidade, tanto a dignidade quanto a baixeza (o que explica as mais diversas reações que suscitou o perfil de Hemingway escrito por Lillian, do amor ao ódio); e, o principal, não é necessária qualquer análise que comente o objeto após sua apresentação, tudo isto surge por si próprio a partir da representação do objeto.

Picture é narrado através do ponto de vista da repórter Lillian. Ela não tem uma perspectiva privilegiada, de quem conhece o desenho geral da ação, isto é, sabe começo, meio e fim da história. Para o crítico e tradutor de Flaubert, Samuel Titan Jr., "há uma paciência profunda, tipicamente flaubertiana, que proíbe toda antecipação de fatos e se prende ao tempo que as coisas levam, na experiência dos personagens, para mostrar o que são". Alguns personagens, por exemplo. Apenas quando surgem diante da repórter é que são caracterizados. No livro, Reinhardt aparece muito antes, mas só quando está com ela, conversando no escritório, apenas no momento em que ele se levanta para endireitar uma gravura, só aí é que a narradora o descreve, na perspectiva da repórter, sob a luz de sua sensação (“um homem barrigudo, com uma grossa juba de cabelos castanhos ondulados; em seu terno de xantungue cor de chocolate, parecia um ursinho de pelúcia”). A intromissão do narrador tampouco se dá nos nomes dos capítulos (“Joguem a velhinha escada abaixo!”, “O que há de errado com a opinião de Mocha?” ou “Flautins para o seu nome, cordas para o meu”), que são tirados diretamente da fala dos personagens. No fim da reportagem/romance de Ross, descobrimos, e apenas lá, no último parágrafo, que Schenck, o grande chefe, sabia de início que o filme de Huston não daria certo, mas deixou que fosse adiante porque aquilo fazia parte da “educação” de Dore, o jovem produtor. “De que outro jeito eu poderia ensinar Dore?”, pergunta Schenck. “Apoiei Dore. Deixei-o fazer o filme. Eu sabia que a melhor maneira de ajudá-lo era deixá-lo cometer um erro. Agora, ele aprenderá mais. Um jovem precisa aprender cometendo erros.”

Este trecho transforma toda a história.

No prefácio de Portrait of Hemingway, Ross conta que certa vez pediu ao escritor uma lista de indicações de leitura. Hemingway mandou a ela uma lista com quatorze livros. Entre eles, em posição privilegiada, estava Madame Bovary.
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quarta-feira, 23 de julho de 2008

mah-SHE-she

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"Today's curiosities are "maxixe" and "jiló." Both plants are thought to originate in Africa and to have been introduced into Brazil at the time of the slave trade. Maxixe (mah-SHE-she) is the prickly one that looks like a projectile of choice for teenage boys. It's actually just like a cucumber on the inside and can be eaten raw. I ate the spikes too since the ones I got weren't overly mature. It is also known as the "West Indian gherkin" and "bur cucumber," but I think the Portuguese name wins the prize for "Best Name to Repeat Over and Over Again in a Sing-Song Voice." What looks like a small, green eggplant is the jiló (gzee-LAW), also known by the less appetizing name of "garden egg." It's kind of like an eggplant, 'cept different, and the rounder ones, like these, are bitter. They are harvested while still unripe because the mature crops become even more bitter (and turn orange). You can sautée them with garlic and other veggies for an interesting mix of bitter and salty."

Este trecho é do post brasileiro do blog da Katrina, Weird Vegetables. Ela estuda em Berkeley, é tradutora (está no Brasil pesquisando as voltinhas de Elizabeth Bishop pelo país) e nos conhecemos durante a Flip. Katrina diz que adora couve e que se pudesse, seria uma cebola. Além de preferir (sabiamente) o agrião a rúcula. A Vanessa mandou pra ela a imagem do Rei Repolhão, que reproduzo abaixo.

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domingo, 20 de julho de 2008

ele nos aborrece, e isso basta

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"Somos cinco amigos, certa vez saímos um atrás do outro de uma casa, logo de início saiu o primeiro e se pôs ao lado do portão da rua, depois saiu o segundo, ou melhor: deslizou leve como uma bolinha de mercúrio, pela porta, e se colocou não muito distante do primeiro, depois o terceiro, em seguida o quarto, depois o quinto. No fim estávamos todos formando uma fila, em pé. As pessoas voltaram a atenção para nós, apontaram-nos e disseram: "os cinco acabam de sair daquela casa". Desde então vivemos juntos; seria uma vida pacífica se um sexto não se imiscuísse sempre. Ele não nos faz nada, mas nos aborrece, e isso basta: por que é que ele se intromete à força onde não querem saber dele? Não o conhecemos e não queremos acolhê-lo. Nós cinco também não nos conhecíamos antes e, se quiserem, ainda agora não nos conhecemos um ao outro; mas o que entre nós cinco é possível e tolerado não o é com o sexto. Além do mais somos cinco e não queremos ser seis. E se é que esse estar junto constante tem algum sentido, para nós cinco não tem, mas agora já estamos reunidos e vamos ficar assim; não queremos, porém, uma nova união justamente com base nas nossas experiências. Mas como é possível tornar tudo isso claro ao sexto? Longas explicações significariam, em nosso círculo, quase uma acolhida, por isso preferimos não explicar nada e não o acolhemos. Por mais que ele torça os lábios, nós o repelimos com o cotovelo; no entanto, por mais que o afastemos, ele volta sempre".

("Comunidade", Kafka)
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domingo, 13 de julho de 2008

a xícara na arte moderna

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Amanda Smith at Vincent Avenue, de Simon Davis,

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Kate, de Vicky White,
na edição 2007 do prêmio.
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terça-feira, 8 de julho de 2008

bustos domecq de nariz escorrendo

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Desde que lançamos O Verão, a Vanessa e eu conversamos com alguns jornalistas sobre o livro e a história da escrita em dupla. Achei que seria legal reunir isso. Seguem abaixo quatro entrevistas que respondemos siameses. A primeira para o Miguel Conde, d'o Globo; a segunda para o Alvaro Costa e Silva, d'o Jornal do Brasil; a terceira para o Guilherme Bryan, da agência BRPress; e a outra para o Bernardo Gutierrez, do jornal Publico, de Madri. Segue também uma, apenas comigo, que vai ser publicada n'O grito.
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1) Como vocês iniciaram essa colaboração? Produziram outras coisas juntos além da novela?
O Emilio tinha um fanzine na internet chamado Givago e a Vanessa escrevia A Hortaliça. Começamos a trocar emails e descobrimos que morávamos no mesmo bairro (o Mandaqui) e fazíamos a mesma faculdade, o que era uma coincidência incrível -- é um bairro tão longe que segue até um fuso horário diferente. Morávamos tão perto que a Vanessa não podia abrir os braços demais, senão esbarrava no banheiro do Emilio. Um dia, escrevemos juntos um conto sobre o sumiço de um vibrafone em uma música. Depois, participamos de uma oficina literária com o Milton Hatoum, na Flip de 2004, e enviamos projetos de romances para concorrer a uma bolsa. Naturalmente não ganhamos porque o livro da Vanessa continha trechos do Manual de refrigeração e ar condicionado (Editora Fulton, 1329 pp.), e o do Emilio tinha como protagonista um isqueiro. Depois de suportar o peso da nossa genialidade incompreendida, tivemos a idéia de fazer um romance que começasse com um tiroteio de balas de goma. Começou assim. A idéia era escrever um livro que falasse da dificuldade de dizer coisas importantes, de se comunicar com o outro e de criar besouros campeões.

2) Que regras, se alguma, vocês adotaram para organizar a escrita? Os trabalhos de Bustos Domecq tinham um tom paródico que, ao estabelecer uma espécie de modelo inicial, contribuía para uma uniformidade da escrita. No caso de vocês, como surgiu a 'voz' da dupla?
Escrevemos O verão em turnos. A Vanessa escrevia um trecho, que podia ser de duas linhas ou de uma ou duas páginas, passava para o Emilio e ele lia, reescrevia e seguia em frente. Foi um processo muito lento, principalmente no início, quando ainda não tínhamos uma voz coesa. Encontramos o tom no decorrer das páginas, quando o nosso narrador (o Menorzinho) decidiu falar com a gente. A partir daí, fomos escrevendo sem rumo, sem discutir o enredo. Fizemos alguns poucos "colóquios" para uniformizar as idéias, mas em geral foi um processo de muita reescrita, de cuidado com o texto. A Vanessa gostava muito quando chegava numa parte difícil de continuar, quando ela mesma colocava os personagens numa situação complicada e aí era só salvar o arquivo e mandar pro Emilio, que ele resolvia. Às vezes dava a sensação de que o livro se escrevia sozinho, porque de repente o Emilio recebia um trecho grande já pronto, como se tivesse ido dormir e as coisas tivessem acontecido na sua ausência.

3) Foi um processo pacífico e ordeiro? Quanto tempo levou?
Começamos a pensar no livro no fim de 2004, mas só iniciamos em janeiro de 2005. Levamos quase 3 anos, até novembro de 2007. Só sentamos para discutir os rumos da história nos últimos capítulos, mas mesmo então nossas visões eram muito parecidas e pensávamos no livro da mesma forma, de modo que só precisamos amarrar algumas pontas e planejar o final apoteótico, em que todos morrem e a rainha é decapitada. Houve algumas brigas e duelos de empurrões, mas em geral cada um ia cedendo e tocando para a frente. No final, foi uma surpresa ver que a história estava lá, que de duas cabeças diferentes surgiram quatro personagens, um besouro e um bando suspeito de homens de galochas.

4) Além da colaboração entre Borges e Bioy Casares, alguma outra serviu de referência para vocês?
A viagem Paris-Marselha que o casal Cortázar-Dunlop reuniu em Os autonautas da cosmopista. Nossa cena preferida é a dos caminhões sinistros, em que Carol e Julio se perguntam o que diabos eles levam em suas carrocerias (alfinetes de gancho, touquinhas para bebês, macarrão a granel). E um livro que a gente não leu, mas saber que ele existiu nos deixa realmente com as botas leves. Trata-se de Através dos campos e das praias, que Flaubert e seu amigo Maxime Du Camp fizeram juntos. O livro, que não foi publicado, teria doze capítulos: a Flaubert cabiam os ímpares e a Du Camp, os pares. Nas Cartas, Flaubert se refere a ele como um "exercício rude", "uma obra de pura fantasia e digressões".

5) Que diferenças vocês descobriram na escrita a quatro mãos?
Escrever em dupla é, de certa forma, não ter medo de se contaminar (a gente nunca sabe quando o lado de lá se mistura com o de cá). A Vanessa tem um humor muito característico, o Emilio reescreve até o olho cair. O importante é que as diferenças, assim como a leitura de outros autores, não sejam motivo de angústia, mas abram novas possibilidades narrativas e de criação. Talvez o Borges tenha alguma razão: somos todo o passado, somos nosso sangue, somos a gente que vimos morrer, os livros, somos gratamente os outros.
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1) Chama a atenção no livro o trabalho com a linguagem. Essa foi uma preocupação desde o início, adequar como se conta ao que está sendo contado?
Assim que pensamos no livro, decidimos que ele seria narrado por uma criança. Era um dia de manhã e trocávamos e-mails sobre escrever uma história que começasse com um tiroteio de balas de goma. Não queríamos fazer um livro de memórias, com um adulto recordando acontecimentos de sua infância. Isso nos pareceu sentimental demais. Ficou claro que só uma criança poderia narrar um tiroteio de balas de goma de forma confiável. Então tentamos recriar a sensibilidade desta criança muito particular que é o nosso narrador (o Menorzinho).

2) Vocês escreviam juntos ou trocavam os textos por e-mail?
Trocamos centenas de emails até O Verão ficar pronto. Cada um escrevia um trecho e passava a batata por email; o outro lia, sapateava e devolvia, com um trecho novo adicionado. Às vezes quase não avançávamos, de tanto que ficávamos obcecados em retrabalhar o trecho do outro. Outras vezes, não mudávamos uma vírgula. Foram poucos os encontros para fazer leituras conjuntas e discutir os rumos da história. Em geral, íamos escrevendo, só, na base da reação – principalmente quando o narrador começou a tomar forma e o ritmo foi ficando mais solto. Foi um desafio porque de repente o enredo ia para um lado completamente inesperado e o outro tinha que resolver, então às vezes parecia que o livro tinha vida própria e o nosso controle era pequeno, como o do narrador Menorzinho diante da história. Foi um bom exercício. O problema é que nós somos dois neuróticos e as vírgulas eram disputadas palmo a palmo, até um de nós jogar a toalha.

3) Voltando à questão da linguagem, nota-se que às vezes aparecem o que se pode chamar de cacos, parênteses e travessões que às vezes justificam ou contradizem os trechos anteriores. É uma característica da escrita a quatro mãos?
É uma característica do narrador do livro. Ele é pequeno, entende as coisas do jeito dele. Tenta organizá-las (do jeito dele) e quase sempre tropeça – ou é esmagado feito ervilha. O livro pode ser lido como um tipo de narrativa de aventura, só que enguiçada. Há crianças, férias, verão. Mas parece que o filme enroscou na máquina, que a bóia de pato furou, que as figurinhas perderam o autocolante. As promessas de aventura não se cumprem. E isso está relacionado a este narrador, à forma como ele enxerga o mundo. Num próximo livro (em dupla ou individual), teremos que buscar outros modos de narrar e contar a história.

4) Além da frase famosa – "Quando duas pessoas escrevem juntos, e não são vaidosas, o resultado é melhor do que quando trabalham separadas" – até que ponto Borges e Bioy Casares foram determinantes na união de Barbara e Fraia?
Pensar que, numa noite de 1936, Bioy e Borges se reuniram numa sala de jantar e começaram a parceria com um texto sobre uma família búlgara e um iogurte é inspirador. A amizade é muito importante. Não nos comparamos a Borges e Bioy, de jeito nenhum. Eles são enormíssimos. Mas temos imensa admiração pelas histórias que criaram.

5) Até que ponto a experiência com fanzines ajudaram ou estão ajudando Barbara e Fraia como escritores?
É legal escrever fanzines porque você faz o que bem entender e ninguém reclama, a não ser os leitores, que são naturalmente ignorados. E dá pra bombardear os amigos com uma edição especial "tolice absoluta" ou "falta do que fazer" na hora que você quiser, para quem você quiser. Dá uma sensação enorme de liberdade e isso passou para o livro, já que fomos escrevendo o Verão como se fosse um jogo, sem saber se a gente ia conseguir terminar e nem se alguém ia querer publicar. A gente não sabia nem se ia fazer sentido. Com o Givago e A Hortaliça, aprendemos a criar as nossas próprias regras: é facultado ao jogador chutar a boca das regras e fazer como quiser. Jogar amarelinha na encosta da colina, por exemplo, e inventar outras normas unicamente para trapaceá-las: se a pedra rola pra direita, uma volta a menos, se pra esquerda, pode-se pular mais longe, e se uma pequena avalanche arrasta tudo, quem chegar primeiro em casa ganha.

6) E a experiência como alunos da oficina da Flip? E como é voltar agora, como convidados da festa?
Em 2004, a Vanessa ficou numa pousada cuja porta do banheiro não fechava, e havia um galo que cacarejava todos os dias às 3 da manhã. Sem falar na televisão do albergue do Emilio, que ficava ligada 24h em um programa sobre o acasalamento de emas. Ou seja, voltar a Flip na condição de convidados foi um avanço surpreendente. Nossa única preocupação na edição deste ano é não pegar soluço durante o debate e nas ruas da cidade olhar sempre pra baixo, para diminuir a média anual de quedas.
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1) Como foi a experiência de escrever um romance a quatro mãos e como vocês se organizaram?
É mais difícil do que parece e mais possível do que se pensa – o que quer que isso signifique. Pensamos em fazer um romance de crianças sobre a impossibilidade de expressar certas coisas, normalmente as mais importantes, uma história que aos poucos caminhasse para um território de pessoas e sentimentos mortos e empalhados. Um dia, começamos. Um de nós escreveu o início e passou pro outro, que reescreveu, ajeitou, matou no peito e devolveu. Assim foi. No início, demoramos para encontrar a voz do narrador, mas depois o processo foi mais rápido e íamos escrevendo sem discutir. Na verdade, chegamos a nos encontrar apenas umas três ou quatro vezes para falar sobre o livro e os rumos da história. Foi um jogo divertido, criar um mundo sem o menor controle (nosso ou dos protagonistas), em que os dias acabavam de repente e aos meses-pó se sucediam os meses-palha, num amontoado de coisas estranhas e suspeitas.

2) Qual foi a importância da participação na oficina literária de Milton Hatoum na Flip 2004 e, em algum momento, passou pela cabeça de vocês serem convidados tão rápido para este que é um dos eventos mais importantes da literatura no Brasil?
Na oficina do Hatoum é que, discutindo sobre as modalidades de romance, pensamos em fazer um romance pistolar (em vez de epistolar) que começasse com um tiroteio de balas de goma. A isso juntamos uma frase do Kafka: "além do mais somos cinco e não queremos ser seis". Nunca achamos que seríamos convidados para a Flip e, pra falar a verdade, temos certeza que vamos pegar soluço durante o debate. E será um soluço tão constrangedor quanto sincronizado: a Vanessa solta um hic, o Emilio continua, bota um hífen, vira hic-hic, e depois hic-hic-hic e será um sucesso.

3) O Verão do Chibo é narrado com a linguagem e a visão de uma criança de 7 anos, que, de certo modo, dá uma grandiosidade aos eventos que nós adultos provavelmente não daríamos. Quais foram as maiores dificuldades de se encontrar o tom certo dessa linguagem?
No começo, o Menorzinho (nosso narrador pequeno e confuso) não ia interferir na história e nem falar quase nada. Mas ele foi se impondo e, aos poucos, tomando conta do registro desse verão, que, afinal, foi bem difícil pra ele – o Chibo e o Bruno desapareceram, o lado de lá se misturou com o de cá e os navios não atracaram, nunca. De certa forma, foi o tom em conjunto que encontramos para escrever a quatro mãos; o narrador reflete esse ruído que são duas pessoas escrevendo por uma só: ele é assustado, confuso, nunca entende nada e interpreta do jeito que ele quer – uma literatura do mal-entendido. É o nosso H. Bustos Domecq de nariz escorrendo.

4) O livro começa com um dos diálogos mais fortes do filme Brinquedo Proibido, de René Clement. Qual foi a importância desse filme para a realização do livro? Também há muitas outras referências cinematográficas no livro. Podem citar algumas?
Quando vimos Brinquedo proibido, já tínhamos avançado um pouco na história. Gostamos do tom e dos meninos que roubam as cruzes do cemitério, da Paulette arrastando o cachorro morto, de tudo. É um filme que se passa durante a guerra, realista, o que pode levar a uma leitura diferente da nossa história, que tem muita imaginação desenfreada. Além disso, no fim do filme há uma homenagem ao nosso colega de Flip, o Laub, quando a menina fica gritando: “Michel, Michel, Michel”. Nós gostamos muito de filmes e botamos até o Rodolfo Valentino na roda. Assistimos muito faroeste (a Vanessa adora o título do livro do Eli Walach: O bom, o mau e eu), muito filme de aventura e muito Hitchcock (em Sabotagem, uma criança morre e, ora, não se devem matar crianças no cinema, diria o nosso narrador). Além disso, Os incompreendidos, Zero de conduta, Zazie no metrô, If e Quando papai saiu em viagem de negócios são outros dos filmes que assistimos na época do Chibo.

5) O Verão do Chibo faz referência a uma série de brincadeiras e travessuras típicas de crianças do interior. Como foi a infância de vocês, nascidos numa cidade tão urbana como São Paulo no início da década de 80? Aliás, como vizinhos, vocês costumavam brincar juntos? Se sim, quais eram as brincadeiras mais comuns e quais narradas no livro vocês gostariam de ter brincado mais?
A gente morou no Mandaqui, que não fica exatamente em São Paulo. Quer dizer: é um bairro da zona norte bem distante do centro, cheio de peculiaridades. Por exemplo: freqüentávamos a lojinha de doces Pé-de-moleque, onde os donos não tinham o menor senso de lucro (faliu em pouco tempo) e davam picolé premiado pra todo mundo – um dia o Emilio ganhou cinco, em sequência. No Mandaqui, as coisas acontecem num tempo diferente e há o seu Firmo Farias, que desde o Descobrimento fala as mesmas coisas para quem espera o ônibus ("Vais passear, Minino?"). É um bairro pitoresco. Na rua, a Vanessa brincava de “Elefantinho Colorido”; o Emilio morava no Bosque de Santana, corria muito no polícia-e-ladrão e sempre roubavam as figurinhas dele – eram eventos muito graves e importantes. Tudo é muito sério até os 12 anos. Quando ainda se tem dentes de leite, o esconde-esconde é a coisa mais assustadora do mundo. Isso sem falar nas cascas de joelho, a infância é cheia delas, e de pais e mães que brigam, e de um passarinho morto que é enterrado atrás do prédio, sem ninguém ver.

6) A escritora campineira Índigo adotou em seu romance, A Maldição da Moleira, o pensamento de um bebê. É possível estabelecer alguma relação com a obra de vocês? Por quê?
A gente não leu este livro, mas não é difícil imaginar que ela se divertiu um bocado entre toucas, sapatinhos, mingau e a vida íntima dos bebês.

7) Também há comparações entre o método adotado por vocês e o de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. É possível realmente estabelecer esse paralelo? Por quê?
Gostamos muito do Bioy e do Borges, do humor irônico, da discrição, de um certo classicismo da dupla (de lugares que criaram, feito a "quase marmórea confeitaria Los Argonautas"), mas eles são gigantes, qualquer comparação é impossível. Algumas das regras que norteavam a colaboração entre os dois acabaram sendo naturalmente adotadas por nós: exigência mútua, direito permanente de veto, prioridade ao jogo e ao prazer. Nos livros que escreveram juntos é impossível dizer o que é de um e o que é de outro. Isso foi algo que buscamos, tentar apagar esses limites e fazer o leitor se concentrar única e exclusivamente no mundo que importa, que é o do Chibo, Cabelo & Cia.
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Como surgiu a idéia?
Nós tínhamos lido uma frase do Kafka, de um conto chamado "Comunidade", e ela dizia que "além do mais somos cinco e não queremos ser seis". Isso foi mais ou menos ao mesmo tempo em que a gente pensou em escrever uma história cujo início fosse num tiroteio de balas de goma. Decidimos então fazer um romance de crianças, e partimos também da idéia de que as coisas mais importantes são sempre as mais difíceis de se expressar. Foi assim: um de nós escreveu o início e passou pro outro, que reescreveu, ajeitou, matou no peito e devolveu. Trocamos centenas de e-mails até o livro ficar pronto. No início, demoramos para encontrar a voz do narrador, mas depois o processo foi mais rápido e íamos escrevendo sem discutir. Na verdade, chegamos a nos encontrar apenas umas três ou quatro vezes para falar sobre o livro e os rumos da trama. O livro foi evoluindo e começou a ser igualmente uma história de morte e barcos que não atracam. Foi um jogo divertido: criar um mundo sem o menor controle (nosso ou dos protagonistas), um mundo em que a imaginação tenta resistir frente a um exército de figuras mortas e empalhadas, em que os dias acabavam de repente e aos meses-pó se sucediam os meses-palha, num amontoado de coisas estranhas e suspeitas.

Alguma experiência inspiradora (Borges-Bioy?)
Gostamos muito do Bioy e do Borges (juntos e separados), do humor irônico, da discrição, de um certo classicismo da dupla. Algumas das regras que norteavam a colaboração entre os dois acabaram sendo naturalmente adotadas por nós: exigência mútua, direito permanente de veto, prioridade ao jogo e ao prazer. Também gostamos da viagem Paris-Marselha que o casal Cortázar-Dunlop reuniu em Os autonautas da cosmopista. E um livro que a gente não leu, mas saber que ele existiu nos deixa realmente com as botas leves (porque Flaubert é o escritor da página perfeita, o "Autor" por excelência, o anti-parceria). Trata-se de Através dos campos e das praias, que ele e seu amigo Maxime Du Camp fizeram juntos. O livro, que não foi publicado, teria doze capítulos: a Flaubert cabiam os ímpares e a Du Camp, os pares. Nas Cartas, o Flaubert se refere a ele como um "exercício rude", "uma obra de pura fantasia e digressões".

Escrever a quatro mãos enriquece a criação?
Do ponto de vista prático, é como ter um editor e revisor embutidos. Há também a idéia de que, a partir do cruzamento de dois mundos, surge um terceiro (o que multiplica as possibilidades criativas e dá um prazer imenso). Mas apesar da coisa da escrita a quatro mãos ser interessante (poucos são os casos de parceria envolvendo ficção), a sensação pra gente é que ela não importa muito. O Verão pode ser lido como sendo de um único autor. A gente queria contar uma história, fazer com que o leitor se concentrasse nela e só. Embora o livro tenha sido escrito em dupla, nossa preocupação mesmo era tentar recriar a sensibilidade deste nosso narrador muito específico, falar sobre este verão. Nesse sentido, a escrita em dupla não poderia chamar a atenção sobre si, queríamos que o leitor se concentrasse única e exclusivamente no mundo que realmente importa, que é o dos nossos personagens, o Chibo, o Cabelo & Cia.

Por que esta fórmula para uma estréia em romance?
Não foi programado. Em 2004, participamos de um concurso literário que premiaria os dois melhores projetos de romance com uma bolsa e um contrato de publicação. O projeto da Vanessa era a história de pessoas numa fila quilométrica e o do Emilio tinha como protagonista um isqueiro. Naturalmente, perdemos. Então decidimos escrever um livro juntos, porque achamos que dessa maneira teríamos um comprometimento e, por isso, seríamos mais disciplinados. Não sabíamos o tamanho da encrenca que é a parceria literária. Cenas e personagens nascem quando um dos dois tira uma soneca, e é preciso tentar entender o outro – o que nem sempre é fácil. Mas fomos aprendendo que escrever em dupla é não ter medo de se contaminar (a gente nunca sabe quando o lado de lá se mistura com o de cá). É importante que as diferenças, assim como a leitura de outros autores, não sejam motivo de angústia, mas abram novos caminhos.

Quais são suas influências?
Flaubert, Cortázar, Borges, Campos de Carvalho, Salinger, Henry James, Poe, Bábel, Kafka, Lewis Carroll, Sterne, Bataille, Cervantes, livros de aventura (Tom Sawyer, A ilha do tesouro, Os meninos da rua Paulo). Para escrever o Verão assistimos a muitos filmes com crianças (Zéro de conduite, Brinquedo proibido, Os incompreendidos, Quando papai saiu em viagem de negócios). Além disso, Hitchcock, Billy Wilder, Fellini, Groucho Marx, faroestes, musicais, O Manual de refrigeração e ar condicionado, Você tem muito o que aprender, Charlie Brown! etc.

Se tivessem que se vincular a algum movimento cultural (geração de novos escritores brasileira)... qual seria?
Fazemos parte de uma corrente literária que se concentra em dois dos grandes temas humanos: palhaços e patos. Por isso, somos violentamente incompreendidos pelos patrícios e não participamos de nenhum movimento cultural, já que essa temática aquático-circense anda em baixa nos trópicos.

Existem elementos comuns na literatura contemporânea brasileira ou é tudo etiqueta?
Há muitos escritores não-calvos. O que a gente percebe também é que hoje temos à disposição boas traduções, o que não era comum há algumas décadas, e existe a internet. Talvez uma certa retórica da denúncia (social, política, ética, artística) esteja um bocado gasta, embora ainda muito presente. Há os escritores com soluço, os magros. Uma outra categoria é a dos escritores que a gente gosta, aqueles que muito polidamente permitem que o leitor, segundo sua inteligência, convicções e experiências, relacione ficção e realidade, o imaginário e o vivido.

A literatura dos anti-heróis (de Machado a Fonseca) ainda está presente?
A literatura dos pobre-diabos também. Mas há um ramo, mais interessante e atual, que é a literatura dos que desejam fugir.

Por que o conto tem certa força na literatura brasileira?
A crônica tem muita força na literatura brasileira, ou seja, pequenos contos com um pé na realidade e outro na falta do que escrever. Nós gostamos desses autores, como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Luis Fernando Verissimo, mas não sabemos por que eles têm força.

Vivemos uma época de pontes de gêneros (contos, romances, jornalismo, cinema)?
A mistura de gêneros define um ramo muito interessante da literatura moderna. Um exemplo é o Austerlitz, do W.G. Sebald, que coloca para dançar autobiografia, ficção, história. Há algo dessas combinações n'O verão do Chibo também. Nossos personagens são crianças, o que nos permitiu brincar com certos gêneros que têm a ver com esse universo. O romance de aventura (Stevenson, Mark Twain), por exemplo -- o Verão pode ser lido como um tipo de narrativa de aventura (há crianças, férias, verão), só que enguiçada, uma história em que as promessas de aventura não se cumprem. Ou o imaginário de contos policiais e de espionagem que cerca as brincadeiras dos meninos do livro. Também somos muito influenciados pelo cinema: o livro está cheio de momentos faroeste, cinema mudo ou desenho animado. Além disso, gostamos muito de um tipo de escrita clara, direta, substantiva, muito comum no jornalismo literário (Joseph Mitchell, Gay Talese, Lillian Ross, George Orwell, Ernest Hemingway) e temos uma pilha de quadrinhos (Will Eisner, Peter Kuper, Charles Schulz, os gibis do Tio Patinhas).
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1) Como foi na Flip? Incomoda o glamour e os holofotes que geralmente cercam as festas literárias e desvirtuam o debate sobre a literatura em si?
Em 2004, eu fiquei num albergue cuja televisão (coletiva) ficava 24h ligada em um programa sobre o acasalamento de emas. Ou seja, voltar a Flip na condição de convidado foi um avanço supreendente. Se esperarmos "literatura em si" encontros literários podem ser angustiantes. Mas essa é justamente uma das razões que me fazem amar a Flip (além de Parati ser uma cidade muito charmosa). O Bioy Casares dizia que a vida é uma coisa, a literatura é outra. Embora a frase seja meio tola (a literatura nasce de vivências muito íntimas e guarda vínculos imensos com a história e o real), ela cai muito bem para eventos literários. É ótimo ver os autores de perto, escutá-los, vê-los falando, gesticulando. Mas a literatura está nos livros. Parece óbvio, mas saber disso nos deixa muito livres pra poder curtir a festa, encontrar os amigos e tropeçar sem limites pelas pedras

2) Escrever a quatro mãos multiplica a "polifonia" do texto, ou subtrai a solidão e as incertezas da escrita?
O Henry James tem um conto, "Os amigos dos amigos", em que um homem e uma mulher nunca se encontram. Os amigos tentam apresentá-los, mas tudo falha. Quando um entra, o outro sai. Escrever em dupla é mais ou menos assim. Cenas e personagens nascem quando um dos dois tira uma soneca, e é preciso tentar entender o outro – o que nem sempre é fácil. Encontramos o tom no decorrer das páginas, quando o nosso narrador (o caçula da história) decidiu falar com a gente. A partir daí, fomos escrevendo sem rumo, sem discutir o enredo – e fazíamos sempre por e-mail, sozinhos, sem saber no que aquilo ia dar. Em uma das cartas, o Flaubert escreveu: "nosso coração não serve senão para sentir o coração alheio". Embora o livro tenha sido escrito em dupla, nossa preocupação mesmo era tentar recriar a sensibilidade deste nosso narrador muito específico. Acho divertido tentar encontrar, a partir de certos procedimentos de composição, um estilo que possa combinar com um narrador. Não tenho a menor vontade, por exemplo, de ter um estilo tão particular que não me permita fazer isso. Cada história pede um jeito de narrar. Nesse sentido, a escrita em dupla não poderia chamar a atenção sobre si, queríamos que o leitor se concentrasse única e exclusivamente no mundo que importa, que é o dos nossos personagens, o Chibo, Cabelo & Cia.

3) Que autores (livros) põe em sua prateleira mais acessível?
Os contos do Onetti; o Gordon Pym, do Poe; todo Flaubert; Os filhotes, do Vargas Llosa; Palmeiras selvagens, do Faulkner, que eu li na praia; o Cortázar, que escreve bonito; Salinger; Bioy Casares; o Robinson Crusoé; a Ilha do tesouro; os poemas do Drummond; a Carmen, do Mérimée; as histórias do Calvin e do Haroldo; a revista Mad; um site que ensina construir casas na árvore; e o impressionante Você tem muito o que aprender, Charlie Brown!

4) Resolva este nó: o novo escritor não se faz ler pelos seus leitores, ou são os leitores que não os lêem?
Um livro só existe quando é lido. E a literatura são sempre modos de ler (o Roberto Schwarz, que é um leitor e tanto, mostrou isso na abertura da Flip, quando falou sobre como as formas de ler o Dom Casmurro mudaram com o passar do tempo). Todos querem ser lidos, claro. Quando se lança um livro há as entrevistas, as resenhas. Se as pessoas gostam, elas comentam com as outras. Não dá pra fazer muito mais do que isso. E acho que está bom.

5) O Verão do Chibo tem uma história intrigante: um garoto que, entretido em brincadeiras, percebe o sumiço de todos ao redor. A metáfora tem alguma ligação com o cotidiano? Como nasceu o argumento do enredo?
A gente pensou em fazer uma história que começasse com um tiroteio de balas de goma. Daí achamos que só uma criança poderia narrar (de forma confiável) um tiroteio de balas de goma. Partimos também de uma idéia de que as coisas mais importantes são sempre as mais difíceis de se expressar. O livro foi evoluindo e começou a ser igualmente uma história de morte, de barcos que não atracam, a história de um mundo em que a imaginação tenta resistir frente a um exército de sentimentos mortos e empalhados.
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