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Escrevi o texto abaixo para a Entrelivros de agosto, uma edição sobre literatura & jornalismo. É que toda vez que eu leio o Flaubert, eu penso que ele é ótimo jornalista (não emite opinião, mas faz com que a reflexão esteja dentro do que é contado). Daí tentei investigar o que há de Flaubert na autora mais legal do new journalism, a Lillian Ross do livro Filme.
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Flaubert está em muitos lugares. Assim que chegou a Paris, no verão de 1959, Vargas Llosa foi a uma livraria do Quartier Latin e lá estava ele. Foi a primeira coisa que fez na cidade: Llosa comprou um exemplar de Madame Bovary e, a madrugada no quarto, foi enfeitiçado por Emma, passeou pelas ruas encardidas de Tostes e conheceu Charles, cuja conversa era “sem relevo como uma calçada e as idéias de todo o mundo nela desfilavam com seu traje comum”. A cidade e os cachorros, que ficaria pronto em 1961, seu primeiro romance, é em grande parte esta madrugada em que, lendo Flaubert, Llosa descobriu que tipo de escritor gostaria de ser. Anos antes, Proust também havia encontrado Flaubert. O autor da Recherche, depois de dizer que não gosta de todos os livros de Flaubert, nem mesmo de seu estilo, não gosta muito de Flaubert, não, claro, quem somos nós para discutir, elogia a forma como o narrador flaubertiano desaparece no objeto de sua descrição, elogia os brancos e silêncios, a capacidade que Flaubert tem de narrar por omissão e, antecipando o fascinante mundo da locomoção em aeroportos, diz que as páginas de Flaubert são uma grande esteira rolante, “em deslocamento contínuo, monótono, morno, indefinido, algo sem precedentes na literatura”. Para Zola, Flaubert era o escritor realista por excelência, modelo a ser seguido e admirado. O Flaubert de Henry James foi principalmente um formalista, aquele que alçou o gênero romance à categoria de arte. Entre os contistas, Maupassant, no prólogo de Pierre et Jean, diz ter aprendido do próprio Flaubert que tudo pode ser bom tema literário (barômetros, um boné feioso, sinetas). Bábel, Hemingway. Todos acreditaram ver Flaubert, gigantesco, planando acima de suas cabeças.
Em 1950, a jornalista Lillian Ross, então com 24 anos, acompanhou as andanças de Ernest Hemingway durante dois dias pela cidade de Nova York. Na época, Hemingway morava em Cuba e estava de passagem rumo a Itália (“Nova York é uma cidade para ficar pouco tempo”). Os dois haviam se conhecido três anos antes, quando Lillian preparava um artigo sobre um ex-policial que havia se tornado toureiro. Em Nova York, Ross ajudou Hemingway a comprar um casaco, foram juntos ao Metropolitan, beberam champagne com Marlene Dietrich e ouviu histórias como a da vez em que o escritor viveu com um urso, ficou bêbado com o bicho e se tornaram bons amigos. O perfil foi publicado nas páginas da The New Yorker e mais tarde virou livro, Portrait of Hemingway. Lillian admirava Hemingway. No posfácio de uma das edições do livro, Ross escreve que foi com ele que aprendeu tudo sobre clareza, simplicidade e a beleza de uma prosa sem adornos. “Foi na sua ficção”, diz, “que aprendi a escrever de maneira factual.”
Em um trecho de “Teoria da narrativa: posições do narrador”, o professor Davi Arrigucci Jr. faz uma breve análise do narrador em Hemingway. Toma como exemplo o relato “Hills like white elephants”, do livro Men without women. O conto, resume Arrigucci, é a história de um homem e uma mulher que chegam a uma pequena estação no vale do Ebro, Espanha, num dia de calor e sem sombra. Pedem duas cervejas e começam uma conversa aparentemente banal, mas que vai se tornando tensa (discordam sobre as colinas brancas da desolada paisagem); revela-se então o conflito do casal em torno de um eventual aborto que a moça vai ou não fazer. Isso tudo de forma alusiva e velada. “O continho se resume nisso”, anota. “Ocorre, porém, que as cenas podem assumir uma dimensão simbólica, aludindo a um universo complexo de relações que se entrevê obliquamente através dos poucos elementos concretos de fato apresentados de modo direto.” Essa formulação pode ser aplicada a muitas das narrativas de Hemingway. “The killers”, por exemplo. Trata-se da história dos matadores que, em um bar, enquanto esperam a chegada do homem que vão assassinar, discutem o cardápio (querem lombo de porco e croquetes de frango, mas o garçom avisa que naquele horário só pode servir bacon e presunto com ovos). Eles aguardam, o homem não chega, então decidem ir embora. Quando é avisado, em seu quarto, que matadores estão no seu encalço, o homem diz que não fugirá, que é inútil. Não sabemos muito a seu respeito, não sabemos porque os assassinos estão atrás dele. Sobre a recusa do homem em escapar, Nick, que está no bar quando os matadores chegam, comenta: “I can’t stand to think about him waiting in the room and knowing he’s going to get it. It’s too damned awful”. E o garçom arremata: “Well, you better not think about it”. Nada é explicado. Tudo fica em suspenso e é construído “com o não-dito, o subentendido, a alusão”.
No verão de 1950, o cineasta John Huston convidou Lillian Ross para ir a Hollywood observá-lo em seu novo trabalho, a filmagem de A glória de um covarde, baseado em The red badge of courage, romance de Stephen Crane, sobre a guerra civil americana. Ross aceitou. Passou um ano e meio na cidade, seguindo todas as etapas de realização do filme, e escreveu aquela que viria a ser a mais importante reportagem sobre uma produção em Hollywood. Publicada inicialmente na The New Yorker, a série de textos logo virou livro, Picture (Filme, no Brasil).
De saída, Lillian percebeu que o que tinha nas mãos era uma espécie de romance, “pelo modo como as personagens podem se desenvolver e pela variedade de relações que há entre elas”. Ross fez do diretor Huston, dos produtores Gottfried Reinhardt e Dore Schary, e do chefão da MGM, Louis B. Mayer, seus personagens.
Picture é a história da conturbada realização de um filme. Mayer não acredita no projeto, diz que A glória de um covarde será um retumbante fracasso. Huston, Schary e Reinhardt apostam no filme. Dessa tensão, nasce grande parte dos episódios. Ross vai gradualmente compondo o pano de fundo (a pressão para que o filme seja um sucesso comercial, a escalação dos atores, os bastidores), as cenas se sucedem, ela jamais emite opiniões e deixa que os fatos e as falas assumam sua “dimensão simbólica” e sejam eloqüentes por si. Era o tipo de coisa que Lillian admirava na prosa de Hemingway: como os elementos concretos são apresentados de modo direto, “o poder mágico nos detalhes factuais”. Depois de mais de cento e dez páginas de livro é que a primeira cena do filme de Huston é rodada. Vamos, pacientemente, seguindo os passos de Ross, que não se apressa a dizer, na própria voz, aquilo que as coisas dirão ou mostrarão por si mesmas.
No livro que escreveu sobre Flaubert, A orgia perpétua, Vargas Llosa diz que passou despercebida pela crítica a relação que existe entre Flaubert e o ramal da narrativa contemporânea em que “a perspectiva primeira do relato não é o mundo interior das idéias e sentimentos, mas o mundo exterior das condutas, os objetos e os lugares”. Llosa sugere que esse tipo de narrativa, “que descreve sem interpretar, que mostra sem julgar, em que o fator visual é preponderante” tem um parentesco irremediável com Flaubert. E, para sermos mais rigorosos, com o que Erich Auerbach chamou de “realismo apartidário, impessoal e objetivo” flaubertiano.
No prefácio de Reporting, Lilian Ross (que de acordo com seu editor na The New Yorker, William Shawn, tinha o dom da invisibilidade) escreveu: “Evite a interpretação, a análise, passar os seus julgamentos dizendo ao leitor o que ele deveria pensar. Restrinja-se ao que pode ser observado e reportado. Chegue o mais perto possível da verdade e deixe o leitor fazer a cabeça por si mesmo. (...) Ter um ponto de vista é outra coisa: o seu ponto de vista deve estar implícito nos fatos que você apresenta”. Llosa diz que alguns críticos atribuem a Hemingway a invenção do narrador invisível e que outros dizem que sua aparição no romance é conseqüência do cinema. “Na verdade, este é o ponto de vista hegemônico em Madame Bovary, e Flaubert foi o primeiro a instrumentalizar certas formas de escrita para torná-lo possível”, escreve. “Flaubert usou o relator invisível para dar autonomia ao narrado, conseguir que o mundo fictício parecesse soberano.”
Ross vai, aos poucos, mostrando como produtores e chefes de estúdio ao proporem alterações que visam atrair público e dar ao filme de Huston uma “história”, acabam por destruí-lo. Em um trecho a ser destacado, o produtor Gottfried Reinhardt diz que A glória de um covarde precisa de uma narração em off. “Sempre sustentei que aquilo que torna o livro notável são os pensamentos e sentimentos do protagonista, e não suas ações. Como eles podem ser dramatizados? John [Huston] achava que seriam inerentes às cenas, na expressão do personagem.” Reinhardt (que dizia que as pessoas ficavam inseguras quando se afastavam de Hollywood — “somos crupiês de um cassino desonesto”) queria que os pensamentos do personagem pudessem ser ouvidos, acreditava que isso daria ao filme uma “história”, faria com que os espectadores gostassem do filme.
Se para o produtor Reinhardt, o filme de Huston pecava pela falta de dicas e comentários, para Adorno, a prosa de Flaubert era carente de reflexão. Em um texto chamado “Posição do narrador no romance contemporâneo”, o filósofo alemão escreve que “o romance tradicional, cuja idéia talvez se encarne de modo mais autêntico em Flaubert, deve ser comparado ao palco italiano do teatro burguês”. Adorno acredita que “um pesado tabu paira sobre a reflexão: ela se torna o pecado capital contra a pureza objetiva”, representada para ele pela prosa flaubertiana.
Vale aqui transcrever o que diz Erich Auerbach, em Mimesis: “No caso de Stendhal e de Balzac, ouvimos com frequência, quase constantemente, aliás, o que o autor pensa acerca das suas personagens e dos acontecimentos; Balzac acompanha algumas vezes as suas narrações com comentários comovidos, ou irônicos, ou morais, ou históricos, ou econômicos. Ouvimos também muito amiúde o que as próprias personagens pensam ou sentem, e isto ocorre freqüentemente de tal maneira que o autor se identifica com a personagem numa situação dada. Estas duas coisas faltam em Flaubert quase inteiramente. A sua opinião sobre os acontecimentos e as personagens não é expressa; e quando as próprias personagens se manifestam, isto nunca ocorre de tal forma que o autor se identifique com a sua opinião, ou com a intenção de levar o leitor a se identificar com ela. Embora ouçamos o autor falar, ele não exprime qualquer opinião e não comenta. Seu papel limita-se a escolher os acontecimentos e a traduzi-los em linguagem, e isto ocorre com a convicção de que qualquer acontecimento, se for possível exprimi-lo limpa e integralmente, interpretaria inteiramente a si próprio e os seres humanos que dele participassem; muito melhor e mais inteiramente do que o poderia fazer qualquer opinião ou juízo que lhe fosse acrescentado. Sobre esta convicção, isto é, sobre a profunda confiança na verdade da linguagem empregada com responsabilidade, honestidade e esmero, repousa a arte de Flaubert.” Auerbach percebe que o que faz Flaubert é trazer a reflexão para dentro do que é narrado, e essa é justamente uma de suas inovações. A objetividade não está em desacordo com a reflexão. No romance flaubertiano, a subjetividade estaria difusa na matéria narrativa, a estrutura torna-se comentário.
Ao jornalismo que pratica Ross, para quem o ponto de vista deveria estar sempre implícito na apresentação dos fatos, é possível aplicar algumas idéias de Auerbach sobre a prosa de Flaubert: não há objetos elevados e baixos; cada objeto contém, na sua peculiaridade, tanto a seriedade quanto a comicidade, tanto a dignidade quanto a baixeza (o que explica as mais diversas reações que suscitou o perfil de Hemingway escrito por Lillian, do amor ao ódio); e, o principal, não é necessária qualquer análise que comente o objeto após sua apresentação, tudo isto surge por si próprio a partir da representação do objeto.
Picture é narrado através do ponto de vista da repórter Lillian. Ela não tem uma perspectiva privilegiada, de quem conhece o desenho geral da ação, isto é, sabe começo, meio e fim da história. Para o crítico e tradutor de Flaubert, Samuel Titan Jr., "há uma paciência profunda, tipicamente flaubertiana, que proíbe toda antecipação de fatos e se prende ao tempo que as coisas levam, na experiência dos personagens, para mostrar o que são". Alguns personagens, por exemplo. Apenas quando surgem diante da repórter é que são caracterizados. No livro, Reinhardt aparece muito antes, mas só quando está com ela, conversando no escritório, apenas no momento em que ele se levanta para endireitar uma gravura, só aí é que a narradora o descreve, na perspectiva da repórter, sob a luz de sua sensação (“um homem barrigudo, com uma grossa juba de cabelos castanhos ondulados; em seu terno de xantungue cor de chocolate, parecia um ursinho de pelúcia”). A intromissão do narrador tampouco se dá nos nomes dos capítulos (“Joguem a velhinha escada abaixo!”, “O que há de errado com a opinião de Mocha?” ou “Flautins para o seu nome, cordas para o meu”), que são tirados diretamente da fala dos personagens. No fim da reportagem/romance de Ross, descobrimos, e apenas lá, no último parágrafo, que Schenck, o grande chefe, sabia de início que o filme de Huston não daria certo, mas deixou que fosse adiante porque aquilo fazia parte da “educação” de Dore, o jovem produtor. “De que outro jeito eu poderia ensinar Dore?”, pergunta Schenck. “Apoiei Dore. Deixei-o fazer o filme. Eu sabia que a melhor maneira de ajudá-lo era deixá-lo cometer um erro. Agora, ele aprenderá mais. Um jovem precisa aprender cometendo erros.”
Este trecho transforma toda a história.
No prefácio de Portrait of Hemingway, Ross conta que certa vez pediu ao escritor uma lista de indicações de leitura. Hemingway mandou a ela uma lista com quatorze livros. Entre eles, em posição privilegiada, estava Madame Bovary.
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Escrevi o texto abaixo para a Entrelivros de agosto, uma edição sobre literatura & jornalismo. É que toda vez que eu leio o Flaubert, eu penso que ele é ótimo jornalista (não emite opinião, mas faz com que a reflexão esteja dentro do que é contado). Daí tentei investigar o que há de Flaubert na autora mais legal do new journalism, a Lillian Ross do livro Filme.
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Flaubert está em muitos lugares. Assim que chegou a Paris, no verão de 1959, Vargas Llosa foi a uma livraria do Quartier Latin e lá estava ele. Foi a primeira coisa que fez na cidade: Llosa comprou um exemplar de Madame Bovary e, a madrugada no quarto, foi enfeitiçado por Emma, passeou pelas ruas encardidas de Tostes e conheceu Charles, cuja conversa era “sem relevo como uma calçada e as idéias de todo o mundo nela desfilavam com seu traje comum”. A cidade e os cachorros, que ficaria pronto em 1961, seu primeiro romance, é em grande parte esta madrugada em que, lendo Flaubert, Llosa descobriu que tipo de escritor gostaria de ser. Anos antes, Proust também havia encontrado Flaubert. O autor da Recherche, depois de dizer que não gosta de todos os livros de Flaubert, nem mesmo de seu estilo, não gosta muito de Flaubert, não, claro, quem somos nós para discutir, elogia a forma como o narrador flaubertiano desaparece no objeto de sua descrição, elogia os brancos e silêncios, a capacidade que Flaubert tem de narrar por omissão e, antecipando o fascinante mundo da locomoção em aeroportos, diz que as páginas de Flaubert são uma grande esteira rolante, “em deslocamento contínuo, monótono, morno, indefinido, algo sem precedentes na literatura”. Para Zola, Flaubert era o escritor realista por excelência, modelo a ser seguido e admirado. O Flaubert de Henry James foi principalmente um formalista, aquele que alçou o gênero romance à categoria de arte. Entre os contistas, Maupassant, no prólogo de Pierre et Jean, diz ter aprendido do próprio Flaubert que tudo pode ser bom tema literário (barômetros, um boné feioso, sinetas). Bábel, Hemingway. Todos acreditaram ver Flaubert, gigantesco, planando acima de suas cabeças.
Em 1950, a jornalista Lillian Ross, então com 24 anos, acompanhou as andanças de Ernest Hemingway durante dois dias pela cidade de Nova York. Na época, Hemingway morava em Cuba e estava de passagem rumo a Itália (“Nova York é uma cidade para ficar pouco tempo”). Os dois haviam se conhecido três anos antes, quando Lillian preparava um artigo sobre um ex-policial que havia se tornado toureiro. Em Nova York, Ross ajudou Hemingway a comprar um casaco, foram juntos ao Metropolitan, beberam champagne com Marlene Dietrich e ouviu histórias como a da vez em que o escritor viveu com um urso, ficou bêbado com o bicho e se tornaram bons amigos. O perfil foi publicado nas páginas da The New Yorker e mais tarde virou livro, Portrait of Hemingway. Lillian admirava Hemingway. No posfácio de uma das edições do livro, Ross escreve que foi com ele que aprendeu tudo sobre clareza, simplicidade e a beleza de uma prosa sem adornos. “Foi na sua ficção”, diz, “que aprendi a escrever de maneira factual.”
Em um trecho de “Teoria da narrativa: posições do narrador”, o professor Davi Arrigucci Jr. faz uma breve análise do narrador em Hemingway. Toma como exemplo o relato “Hills like white elephants”, do livro Men without women. O conto, resume Arrigucci, é a história de um homem e uma mulher que chegam a uma pequena estação no vale do Ebro, Espanha, num dia de calor e sem sombra. Pedem duas cervejas e começam uma conversa aparentemente banal, mas que vai se tornando tensa (discordam sobre as colinas brancas da desolada paisagem); revela-se então o conflito do casal em torno de um eventual aborto que a moça vai ou não fazer. Isso tudo de forma alusiva e velada. “O continho se resume nisso”, anota. “Ocorre, porém, que as cenas podem assumir uma dimensão simbólica, aludindo a um universo complexo de relações que se entrevê obliquamente através dos poucos elementos concretos de fato apresentados de modo direto.” Essa formulação pode ser aplicada a muitas das narrativas de Hemingway. “The killers”, por exemplo. Trata-se da história dos matadores que, em um bar, enquanto esperam a chegada do homem que vão assassinar, discutem o cardápio (querem lombo de porco e croquetes de frango, mas o garçom avisa que naquele horário só pode servir bacon e presunto com ovos). Eles aguardam, o homem não chega, então decidem ir embora. Quando é avisado, em seu quarto, que matadores estão no seu encalço, o homem diz que não fugirá, que é inútil. Não sabemos muito a seu respeito, não sabemos porque os assassinos estão atrás dele. Sobre a recusa do homem em escapar, Nick, que está no bar quando os matadores chegam, comenta: “I can’t stand to think about him waiting in the room and knowing he’s going to get it. It’s too damned awful”. E o garçom arremata: “Well, you better not think about it”. Nada é explicado. Tudo fica em suspenso e é construído “com o não-dito, o subentendido, a alusão”.
No verão de 1950, o cineasta John Huston convidou Lillian Ross para ir a Hollywood observá-lo em seu novo trabalho, a filmagem de A glória de um covarde, baseado em The red badge of courage, romance de Stephen Crane, sobre a guerra civil americana. Ross aceitou. Passou um ano e meio na cidade, seguindo todas as etapas de realização do filme, e escreveu aquela que viria a ser a mais importante reportagem sobre uma produção em Hollywood. Publicada inicialmente na The New Yorker, a série de textos logo virou livro, Picture (Filme, no Brasil).
De saída, Lillian percebeu que o que tinha nas mãos era uma espécie de romance, “pelo modo como as personagens podem se desenvolver e pela variedade de relações que há entre elas”. Ross fez do diretor Huston, dos produtores Gottfried Reinhardt e Dore Schary, e do chefão da MGM, Louis B. Mayer, seus personagens.
Picture é a história da conturbada realização de um filme. Mayer não acredita no projeto, diz que A glória de um covarde será um retumbante fracasso. Huston, Schary e Reinhardt apostam no filme. Dessa tensão, nasce grande parte dos episódios. Ross vai gradualmente compondo o pano de fundo (a pressão para que o filme seja um sucesso comercial, a escalação dos atores, os bastidores), as cenas se sucedem, ela jamais emite opiniões e deixa que os fatos e as falas assumam sua “dimensão simbólica” e sejam eloqüentes por si. Era o tipo de coisa que Lillian admirava na prosa de Hemingway: como os elementos concretos são apresentados de modo direto, “o poder mágico nos detalhes factuais”. Depois de mais de cento e dez páginas de livro é que a primeira cena do filme de Huston é rodada. Vamos, pacientemente, seguindo os passos de Ross, que não se apressa a dizer, na própria voz, aquilo que as coisas dirão ou mostrarão por si mesmas.
No livro que escreveu sobre Flaubert, A orgia perpétua, Vargas Llosa diz que passou despercebida pela crítica a relação que existe entre Flaubert e o ramal da narrativa contemporânea em que “a perspectiva primeira do relato não é o mundo interior das idéias e sentimentos, mas o mundo exterior das condutas, os objetos e os lugares”. Llosa sugere que esse tipo de narrativa, “que descreve sem interpretar, que mostra sem julgar, em que o fator visual é preponderante” tem um parentesco irremediável com Flaubert. E, para sermos mais rigorosos, com o que Erich Auerbach chamou de “realismo apartidário, impessoal e objetivo” flaubertiano.
No prefácio de Reporting, Lilian Ross (que de acordo com seu editor na The New Yorker, William Shawn, tinha o dom da invisibilidade) escreveu: “Evite a interpretação, a análise, passar os seus julgamentos dizendo ao leitor o que ele deveria pensar. Restrinja-se ao que pode ser observado e reportado. Chegue o mais perto possível da verdade e deixe o leitor fazer a cabeça por si mesmo. (...) Ter um ponto de vista é outra coisa: o seu ponto de vista deve estar implícito nos fatos que você apresenta”. Llosa diz que alguns críticos atribuem a Hemingway a invenção do narrador invisível e que outros dizem que sua aparição no romance é conseqüência do cinema. “Na verdade, este é o ponto de vista hegemônico em Madame Bovary, e Flaubert foi o primeiro a instrumentalizar certas formas de escrita para torná-lo possível”, escreve. “Flaubert usou o relator invisível para dar autonomia ao narrado, conseguir que o mundo fictício parecesse soberano.”
Ross vai, aos poucos, mostrando como produtores e chefes de estúdio ao proporem alterações que visam atrair público e dar ao filme de Huston uma “história”, acabam por destruí-lo. Em um trecho a ser destacado, o produtor Gottfried Reinhardt diz que A glória de um covarde precisa de uma narração em off. “Sempre sustentei que aquilo que torna o livro notável são os pensamentos e sentimentos do protagonista, e não suas ações. Como eles podem ser dramatizados? John [Huston] achava que seriam inerentes às cenas, na expressão do personagem.” Reinhardt (que dizia que as pessoas ficavam inseguras quando se afastavam de Hollywood — “somos crupiês de um cassino desonesto”) queria que os pensamentos do personagem pudessem ser ouvidos, acreditava que isso daria ao filme uma “história”, faria com que os espectadores gostassem do filme.
Se para o produtor Reinhardt, o filme de Huston pecava pela falta de dicas e comentários, para Adorno, a prosa de Flaubert era carente de reflexão. Em um texto chamado “Posição do narrador no romance contemporâneo”, o filósofo alemão escreve que “o romance tradicional, cuja idéia talvez se encarne de modo mais autêntico em Flaubert, deve ser comparado ao palco italiano do teatro burguês”. Adorno acredita que “um pesado tabu paira sobre a reflexão: ela se torna o pecado capital contra a pureza objetiva”, representada para ele pela prosa flaubertiana.
Vale aqui transcrever o que diz Erich Auerbach, em Mimesis: “No caso de Stendhal e de Balzac, ouvimos com frequência, quase constantemente, aliás, o que o autor pensa acerca das suas personagens e dos acontecimentos; Balzac acompanha algumas vezes as suas narrações com comentários comovidos, ou irônicos, ou morais, ou históricos, ou econômicos. Ouvimos também muito amiúde o que as próprias personagens pensam ou sentem, e isto ocorre freqüentemente de tal maneira que o autor se identifica com a personagem numa situação dada. Estas duas coisas faltam em Flaubert quase inteiramente. A sua opinião sobre os acontecimentos e as personagens não é expressa; e quando as próprias personagens se manifestam, isto nunca ocorre de tal forma que o autor se identifique com a sua opinião, ou com a intenção de levar o leitor a se identificar com ela. Embora ouçamos o autor falar, ele não exprime qualquer opinião e não comenta. Seu papel limita-se a escolher os acontecimentos e a traduzi-los em linguagem, e isto ocorre com a convicção de que qualquer acontecimento, se for possível exprimi-lo limpa e integralmente, interpretaria inteiramente a si próprio e os seres humanos que dele participassem; muito melhor e mais inteiramente do que o poderia fazer qualquer opinião ou juízo que lhe fosse acrescentado. Sobre esta convicção, isto é, sobre a profunda confiança na verdade da linguagem empregada com responsabilidade, honestidade e esmero, repousa a arte de Flaubert.” Auerbach percebe que o que faz Flaubert é trazer a reflexão para dentro do que é narrado, e essa é justamente uma de suas inovações. A objetividade não está em desacordo com a reflexão. No romance flaubertiano, a subjetividade estaria difusa na matéria narrativa, a estrutura torna-se comentário.
Ao jornalismo que pratica Ross, para quem o ponto de vista deveria estar sempre implícito na apresentação dos fatos, é possível aplicar algumas idéias de Auerbach sobre a prosa de Flaubert: não há objetos elevados e baixos; cada objeto contém, na sua peculiaridade, tanto a seriedade quanto a comicidade, tanto a dignidade quanto a baixeza (o que explica as mais diversas reações que suscitou o perfil de Hemingway escrito por Lillian, do amor ao ódio); e, o principal, não é necessária qualquer análise que comente o objeto após sua apresentação, tudo isto surge por si próprio a partir da representação do objeto.
Picture é narrado através do ponto de vista da repórter Lillian. Ela não tem uma perspectiva privilegiada, de quem conhece o desenho geral da ação, isto é, sabe começo, meio e fim da história. Para o crítico e tradutor de Flaubert, Samuel Titan Jr., "há uma paciência profunda, tipicamente flaubertiana, que proíbe toda antecipação de fatos e se prende ao tempo que as coisas levam, na experiência dos personagens, para mostrar o que são". Alguns personagens, por exemplo. Apenas quando surgem diante da repórter é que são caracterizados. No livro, Reinhardt aparece muito antes, mas só quando está com ela, conversando no escritório, apenas no momento em que ele se levanta para endireitar uma gravura, só aí é que a narradora o descreve, na perspectiva da repórter, sob a luz de sua sensação (“um homem barrigudo, com uma grossa juba de cabelos castanhos ondulados; em seu terno de xantungue cor de chocolate, parecia um ursinho de pelúcia”). A intromissão do narrador tampouco se dá nos nomes dos capítulos (“Joguem a velhinha escada abaixo!”, “O que há de errado com a opinião de Mocha?” ou “Flautins para o seu nome, cordas para o meu”), que são tirados diretamente da fala dos personagens. No fim da reportagem/romance de Ross, descobrimos, e apenas lá, no último parágrafo, que Schenck, o grande chefe, sabia de início que o filme de Huston não daria certo, mas deixou que fosse adiante porque aquilo fazia parte da “educação” de Dore, o jovem produtor. “De que outro jeito eu poderia ensinar Dore?”, pergunta Schenck. “Apoiei Dore. Deixei-o fazer o filme. Eu sabia que a melhor maneira de ajudá-lo era deixá-lo cometer um erro. Agora, ele aprenderá mais. Um jovem precisa aprender cometendo erros.”
Este trecho transforma toda a história.
No prefácio de Portrait of Hemingway, Ross conta que certa vez pediu ao escritor uma lista de indicações de leitura. Hemingway mandou a ela uma lista com quatorze livros. Entre eles, em posição privilegiada, estava Madame Bovary.
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