quarta-feira, 10 de março de 2010

reeducação alimentar não é andar com brócolis embaixo do braço

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Texto para o caderno Outlook do Brasil Econômico. Sobre tevê a cabo.

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Para alguns, como o assessor do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, a tevê a cabo é um “veículo propagador do capitalismo” (“encarnação do demônio”), cuja influência só pode ser comparada ao poderio bélico da 4º Frota, divisão da marinha norte-americana que atua no Atlântico Sul.

Para outros, a tevê se assemelharia ao próprio assessor de Lula na categoria Charles Bovary, personagem de Gustave Flaubert cuja conversa era “sem relevo como uma calçada e as ideias de todo o mundo nela desfilavam com seu traje comum”.

Mas, claro, nada é tão simples.

Basta o controle remoto, um clique, e pronto: somos informados via Bloomberg sobre os índices pluviométricos e a acidez do solo no Japão. Na Fashion TV, aprendemos a fazer um turbante. "A Croácia é o país da moda", decide o apresentador do People + Arts, elencando os “Must-Haves for the Holiday Season”. Na Fox Life, doctor Phill, homem calvo, cultor de bigode e que (de acordo com a programação do GNT) poderia ser beneficiado pela chamada "reeducação alimentar e prática da ioga", comanda a atração A família vai ao tribunal, sobre rixas familiares que ganham contornos especialmente dramáticos diante da plateia – o episódio do dia trata de filha que proíbe mãe de visitar netos.

Um close revela os chamados hábitos alimentares do bicho-preguiça. De uma folha, na copa da árvore, o mamífero sorve água da chuva ("a preguiça toma um drinque", diz a narração, dublada, em off). No Animal Planet, ficamos sabendo que apesar de lentas em terra, as preguiças são excelentes nadadoras, além de não possuírem esmalte no dente. Há preguiças com dois dedos e preguiças com três dedos.

Para grande parte dos telespectadores da tevê a cabo, o fim das olimpíadas de inverno de Vancouver significou tristeza e pelotas na alma. No lugar das deslizantes pedras de granito de 20 quilos do curling (novo esporte nacional), o Sportv passou a exibir o campeonato de vôlei (Florianópolis contra Pinheiros) e o Sportv2, no horário antes destinado ao slalom gigante, entrevistou padre Leandro, “o sacerdote motorizado”, que participou do Moto Trilha em Anitápolis (SC).

Na Mega TV, compradores de colchão receberam como brinde um travesseiro da Nasa (não pergunte), e o reality show Recém-casados e recém-brigados, do canal Discovery Home and Health, tenta devolver o amor a jovens casais e ajudá-los, de forma urbana, a fazer as pazes.

Na faixa nobre, os canais Discovery transmitem os chamados "documentários para todos os gostos": Titanic, respostas do abismo, Profundezas: águas misteriosas e A origem dos alimentos: lula.

National Geographic exibe quarto episódio da segunda temporada de programa sobre mandíbulas e a especialista insiste, no GNT, que reeducação alimentar "não é andar com brócolis embaixo do braço".

Embora a revista Veja, em resposta ao assessor Marco Aurélio, tenha qualificado a tevê a cabo de “criativa, plural e independente”, nada é tão simples, suspira o telespectador, babando no controle remoto.

Posicionar-se ante a variedade de canais que o mundo disponibiliza a seus assinantes exige dedicação. Surpreender-se com o documentário sobre tatus-bola e crer na liberdade de escolha pelo pay-per-view (que época!) é uma atitude possível. Outra seria acreditar que também eles, os tatus-bola, perderam a graça e que comprar pelo pay-per-view não é exatamente digamos assim uma escolha. Não são as únicas, e a reflexão pode ser realizada enquanto o apresentador de Como funciona: cerveja ensina que cerveja não cria a barriga de cerveja.

Trata-se de mito.
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