quinta-feira, 19 de novembro de 2009

corvo reloaded

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Trecho de "Poe: o poeta, o narrador e o crítico" (1956), do Cortázar.

"A poesia é uma urgência, cuja satisfação é alcançada, cumprindo-se certas formalidades, adotando-se certos procedimentos. Mas a noção de 'poema a frio', que parecia nascer do texto da Filosofia da composição [Poe, 1846], se vê sensivelmente diminuída. À luz desta admissão de um ímpeto poético que tem toda a violência daquele que os românticos reconheciam [Cortázar se refere ao que escreve Poe no prefácio de O corvo e outros poemas, que a 'poesia não foi para ele um propósito, mas sim uma paixão'], O corvo deve ser reconsiderado.

Não há dúvida de que neste poema há muito de excessivamente fabricado, visando a obter um profundo efeito geral por meio da sábia gradação de efeitos parciais, de preparação psicológica, de encantamento musical. Neste sentido, o relato que Poe nos faz de como o escreveu parece corroborado pelos resultados. Sabe-se, contudo, que a verdade é outra: O corvo não nasceu de um plano infalivelmente pré-concebido, mas, sim, de uma série de estados sucessivos (e obsessivos, pois Poe viveu vários anos fustigado pelo tema -- nascido da leitura de Barnaby Rudge, de Dickens --, provando-o em diferentes planos, aproximando-se, aos poucos, da versão final), estados esses que se desalojavam ou aperfeiçoavam mutuamente até atingirem esse texto, onde a tarefa de pôr e tirar palavras, pesar cuidadosamente cada ritmo, equilibrar as massas, alcança uma perfeição menos arquitetônica do que mecânica. Este corvo é um pouco como o rouxinol de corda do imperador da China; é, literalmente, uma 'criação rítmica de beleza'; mas uma beleza fria, magia elaborada pelos conjuros impecáveis do grande mago, um estremecimento sobrenatural que lembra o vaivém da mesa de três pernas. Não se trata de negar estas evidências. Mas, isto sim, é lícito suspeitar, à luz de uma análise global de impulsos e propósitos, que a relojoaria de O corvo nasce mais da paixão que da razão, e que, como em todo poeta, a inteligência é ali auxiliar do outro, disso que 'se agita nas profundezas', como o sentiu Rimbaud."
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Da coleção de fotos do meu amigo Vincenzo.
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