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Texto de orelha para um livro do Faulkner, A Árvore dos Desejos.
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Quando William Faulkner (1897-1962) escreveu A Árvore dos Desejos, em 1927, a imensa árvore-Faulkner ainda não existia na literatura. O condado de Yoknapatawpha, cenário fictício de seus principais livros, era só uma semente; O som e a fúria não havia sequer sido plantado; e estava longe de aflorar a grande enchente daquele que é um dos cinco romances mais incríveis desde a Arca de Noé, Palmeiras selvagens.
Naquele ano, depois de uma breve temporada em Paris (onde deixou a barba crescer e rondava o café favorito de Joyce), Faulkner tinha acabado de publicar seu primeiro romance, Soldier’s Pay, e um de seus esportes favoritos era contar histórias para crianças – era especialista nas de abóboras e Halloween. Foi então que, após ser demitido da agência de correio onde trabalhava (porque lia demais), teve a ideia deste livro.
A Árvore dos Desejos é uma odisseia fabulosa: crianças encolhem, pôneis saem de uma sacola e, se alguém “virar o travesseiro de lado antes de pegar no sono, tudo pode acontecer”. No dia do seu aniversário, a pequena Dulcie se junta ao seu irmão caçula, Dicky, à criada Alice e ao amigo George, e guiados por um misterioso garoto ruivo chamado Maurice, saem à procura de uma árvore mágica. No caminho, a caravana ganha novos integrantes: um soldado desiludido com a guerra, um toco de madeira que fala e o velhinho Egbert, um dos personagens mais sensíveis já criados pelo autor.
Quando encontram uma árvore (que não é a dos desejos, segundo o velhinho Egbert), a história se desdobra em conflitos e situações de perigo. Por baixo da narrativa, tipicamente de aventura, surge uma ferida: a ideia de que os desejos podem ser traiçoeiros e, no limite, causar o mal. Essa dimensão trágica do sonho é amplificada nas ilustrações de Guazzelli, que com um traço clássico e imagens oníricas (casas tortas, galhos retorcidos, paisagens desoladas) dá à história um contorno sinistro e delirante.
Do ponto de vista temático, A Árvore dos Desejos antecipa as obras adultas do escritor: o sul dos Estados Unidos pós-Secessão, a reflexão sobre a guerra (“nunca vi nenhum soldado ganhar na guerra qualquer coisa que seja, essas guerras dos brancos são sempre meio esquisitas”) e, sobretudo, as referências bíblicas. O antídoto para a ambição desmedida, aqui, está na renúncia e humildade – uma espécie de fé naquilo que habita a superfície do mundo –, simbolizadas pela figura de São Francisco.
Ah, a árvore do título fica longe à beça – segundo o velhinho Egbert. E no final da história, a contaminação do real pelo delírio sugere um movimento que parece fundar toda a obra daquele que J. M. Coetzee chamou de “o único gênio inequívoco da literatura norte-americana do início do século vinte”.
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Texto de orelha para um livro do Faulkner, A Árvore dos Desejos.
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Quando William Faulkner (1897-1962) escreveu A Árvore dos Desejos, em 1927, a imensa árvore-Faulkner ainda não existia na literatura. O condado de Yoknapatawpha, cenário fictício de seus principais livros, era só uma semente; O som e a fúria não havia sequer sido plantado; e estava longe de aflorar a grande enchente daquele que é um dos cinco romances mais incríveis desde a Arca de Noé, Palmeiras selvagens.
Naquele ano, depois de uma breve temporada em Paris (onde deixou a barba crescer e rondava o café favorito de Joyce), Faulkner tinha acabado de publicar seu primeiro romance, Soldier’s Pay, e um de seus esportes favoritos era contar histórias para crianças – era especialista nas de abóboras e Halloween. Foi então que, após ser demitido da agência de correio onde trabalhava (porque lia demais), teve a ideia deste livro.
A Árvore dos Desejos é uma odisseia fabulosa: crianças encolhem, pôneis saem de uma sacola e, se alguém “virar o travesseiro de lado antes de pegar no sono, tudo pode acontecer”. No dia do seu aniversário, a pequena Dulcie se junta ao seu irmão caçula, Dicky, à criada Alice e ao amigo George, e guiados por um misterioso garoto ruivo chamado Maurice, saem à procura de uma árvore mágica. No caminho, a caravana ganha novos integrantes: um soldado desiludido com a guerra, um toco de madeira que fala e o velhinho Egbert, um dos personagens mais sensíveis já criados pelo autor.
Quando encontram uma árvore (que não é a dos desejos, segundo o velhinho Egbert), a história se desdobra em conflitos e situações de perigo. Por baixo da narrativa, tipicamente de aventura, surge uma ferida: a ideia de que os desejos podem ser traiçoeiros e, no limite, causar o mal. Essa dimensão trágica do sonho é amplificada nas ilustrações de Guazzelli, que com um traço clássico e imagens oníricas (casas tortas, galhos retorcidos, paisagens desoladas) dá à história um contorno sinistro e delirante.
Do ponto de vista temático, A Árvore dos Desejos antecipa as obras adultas do escritor: o sul dos Estados Unidos pós-Secessão, a reflexão sobre a guerra (“nunca vi nenhum soldado ganhar na guerra qualquer coisa que seja, essas guerras dos brancos são sempre meio esquisitas”) e, sobretudo, as referências bíblicas. O antídoto para a ambição desmedida, aqui, está na renúncia e humildade – uma espécie de fé naquilo que habita a superfície do mundo –, simbolizadas pela figura de São Francisco.
Ah, a árvore do título fica longe à beça – segundo o velhinho Egbert. E no final da história, a contaminação do real pelo delírio sugere um movimento que parece fundar toda a obra daquele que J. M. Coetzee chamou de “o único gênio inequívoco da literatura norte-americana do início do século vinte”.
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