sexta-feira, 6 de junho de 2008

um pai, uma mãe, um penico

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Um livro não começa a ser escrito quando começa (de fato) a ser escrito. Ele começa antes e depois, e por muitas vezes — caolho, com sono, dor de barriga, soluço, apendicite, dor de dente. O Chibo, que começou quando eu conheci a Vanessa e começou de novo quando a gente perdeu um concurso literário (porque a Vanessa criou um "Manual de Técnicas de Refrigeração", e eu inventei uma história narrada por um isqueiro), começou muitas outras vezes, e quando eu li o W, ou a memória da infância, do barba bonita:

"Não sei onde se romperam os fios que me ligam a minha infância. Como todo mundo, ou quase, tive um pai e uma mãe, um penico, uma cama de grades, um chocalho, e mais tarde uma bicicleta que, parece, eu jamais montava sem lançar gritos de terror à simples idéia de que fossem querer levantar ou mesmo retirar as duas rodinhas adjacentes que asseguravam minha estabilidade."

"O que caracteriza essa época é antes de tudo sua ausência de referenciais: as lembranças são bocados de vida arrancados ao vazio. Nada as ancora, nada as fixa. Quase nada as confirma. Nenhuma cronologia a não ser a que arbitrariamente reconstituí com o passar do tempo. Tempo passava. Havia estações. Esquiava-se ou colhia-se feno. Não havia começo nem fim. Não havia mais passado, e durante muito tempo também não houve mais futuro; simplesmente aquilo durava. Estava-se ali. A coisa se passava num lugar que era longe, mas ninguém poderia ter dito exatamente longe de que lugar, talvez simplesmente longe de Villard-de-Lans. De tempos em tempos mudávamos de lugar, íamos para uma outra hospedagem ou uma outra família. As coisas e os lugares não tinham nomes ou tinham vários; as pessoas não tinham rosto. Uma vez era uma tia, a vez seguinte era uma outra tia. Ou então uma avó. Um dia encontrávamos uma prima e quase havíamos esquecido de que tínhamos uma prima. Depois não encontrávamos mais ninguém; não sabíamos se aquilo era normal ou não, se ia continuar o tempo todo assim ou se era apenas provisório. Será que havia épocas de tias e épocas sem tias? Nada perguntávamos, não sabíamos muito bem o que caberia perguntar, devíamos sentir um pouco de medo da resposta que teríamos obtido caso pensássemos em perguntar alguma coisa. Não colocávamos nenhuma questão. Esperávamos que o acaso fizesse voltar a tia ou, se não aquela tia, uma outra, afinal, pouco importava saber qual das tias seria e inclusive que houvesse tias ou que não as houvesse. Na verdade, sempre estávamos um pouco surpresos de que houvesse tias, e primas, e uma avó. Na vida, passávamos muito bem sem elas, não víamos muito bem para que aquilo servia, nem por que eram pessoas mais importantes que as outras; não gostávamos muito daquele jeito que elas tinham, as tias, de aparecer e desaparecer a toda hora. Só sabemos que aquilo durou muito tempo e que depois, um dia, se interrompeu."
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