sábado, 5 de abril de 2008

desvio, dissonância

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"Não será belo senão aquilo que sugere a existência de uma ordem ideal, supraterrestre, harmoniosa, lógica, mas que ao mesmo tempo possui a gota de veneno, a ponta de incoerência, o grão de areia que perturba o sistema. (...) Tudo se dará, sempre, entre esses dois pólos, agindo como forças vivas: de um lado o elemento reto da beleza imortal, soberana, plástica; do outro, o elemento torto, sinistro, a parte do infortúnio, do acidente, do pecado. (...) No passe tauromáquico, em suma, o toureiro, com suas evoluções calculadas, sua ciência, sua técnica, representa a beleza geométrica sobre-humana, o arquétipo, a idéia platônica. Essa beleza inteiramente ideal, intemporal, comparável apenas à harmonia dos astros, está em relação de contato, de fricção, de ameaça constante com a catástrofe do touro, espécie de monstro ou de corpo estranho, que tende a se precipitar, à revelia de todas as regras, como um cão derrubando um jogo de boliche tão alinhado quanto as idéias platônicas. Mas ainda assim teríamos apenas contraste, oposição, se o próprio passe tauromáquico não fosse uma espéciede tangência, uma convergência imediatamente seguida de uma divergência (aproximação do touro e do toureiro, depois separação do homem e do animal, para o qual o pano indica a "saída"), salvo que o contato, no mesmo instante em que se vai produzir, é evitado por um triz, um desvio imposto à trajetória do touro ou uma esquiva: leve afastamento do homem, simples torção do corpo, espécie de empenamento a que ele obriga sua beleza friamente geométrica, como se não houvesse modo de evitar o malefício do touro a não ser incorporando-o parcialmente, pelo ato de imprimir à própria pessoa algo de ligeiramente sinistro (...). Resulta disso que a tauromaquia pode ser entendida como exemplo típico de uma arte na qual a condição essencial da beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância. Nenhum prazer estético será então possível sem que haja violação, transgressão, excesso, pecado em relação a uma ordem ideal que faz as vezes de regra; não obstante, uma licença absoluta, como uma ordem absoluta, não teria como ser mais que uma abstração insípida e desprovida de sentido. Assim como a morte subjacente dá cor à vida, assim o pecado, a dissonância (que contém em germe, que sugere uma destruição possível) confere beleza à regra, arranca-a de seu estado de norma enrijecida para fazer dela um pólo ativo e magnético."

Michel Leiris, Espelho da tauromaquia, 1938
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