domingo, 16 de março de 2008

tom & jerry

.
Essa saiu hoje, a Vanessa e eu escrevemos juntos, pro Estadão.
.

Borges e Bioy, ficção de cano duplo

Primeiro livro da parceria Borges-Bioy, Seis Problemas para Dom Isidro Parodi ganha nova edição em português

Em uma noite de 1936, na sala de jantar da fazenda dos Bioy, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares inventaram, juntos, uma família búlgara. A história integraria um folheto publicitário, A coalhada La Martona: Estudo dietético sobre os leites ácidos, encomendado por um tio de Casares. Dono da próspera companhia leiteira La Martona, ele prometera à dupla um pagamento vultoso por página. Bioy e Borges se animaram. Passaram a escrever um texto empolado e divertido sobre as vantagens do produto, com frases do tipo: “Quem tem saúde tem esperança, e quem tem esperança tem tudo — dizem os árabes, esses musculosos falcões do deserto, mas eles têm por trás da esperança algo que luta por sua saúde: a COALHADA”. No folheto, aprendemos que o iogurte aproxima o homem da imortalidade e que, na Bulgária, onde é um alimento apreciado, abundam os centenários. “O exemplo clássico é dos onze irmãos Petkof”, garantem os autores, “que chegaram todos aos cem anos, com exceção de María Petkof, morta aos 91.”

Bioy e Borges redigem capítulos sobre os méritos do iogurte entre os bretões, os franceses, os tártaros e os calmucos; inventam uma série de receitas para preparar bolos e pães de milho. Ao longo das páginas, vão amontoando dados de forma desconexa, afirmações vazias de conteúdo e tiradas repentinas, sem um contexto que as explique ou justifique. Para simular o discurso científico, incluem nomes e citações de supostas autoridades, além de frases bíblicas. O resultado é um texto pouquíssimo comercial com mostras de erudição e uma linguagem rebuscada, que, entre elogios ao leite balcânico e ponderações sobre os benefícios de bacilos e outros micróbios, revela o estilo inconfundível de H. Bustos Domecq: o pedantismo, a mistura de referências absurdas com citações verdadeiras, o humor irônico. Começava assim, em uma noite de 1936, com uma família búlgara numa sala de jantar, uma das mais intensas e importantes parcerias da história da literatura.

Pós-iogurte
Honorio Bustos Domecq, o “terceiro homem” que assinou grande parte das narrativas em colaboração de Bioy e Borges, nasce em 1941, cinco anos depois da experiência com o iogurte. Bustos era o sobrenome de um bisavô de Borges; Domecq, de um bisavô de Bioy. Segundo Borges, “Domecq não tardou a nos governar com mão de ferro e, para nossa grande alegria, e depois consternação, veio a ser muito diferente de nós, com seus próprios caprichos e chistes, sua maneira singular e muito elaborada de escrever”. Para os críticos Michel Lafon e Benoît Peeters, que juntos publicaram Nous est un autre, uma espécie de investigação sobre a escrita colaborativa, essa dominação estilística foi um dos segredos da obra comum. “A voz de Bustos Domecq era grandiloqüente e extravagante, e não a mera superposição da voz dos autores, mas sua transcendência, nascida de um elo misterioso que só existia no ato da colaboração”. Quatro livros foram escritos sob a alcunha do autor-personagem: Seis problemas para dom Isidro Parodi (1942), Duas fantasias memoráveis (1946), Crônicas de Bustos Domecq (1967) e Novos contos de Bustos Domecq (1977).

Esta parceria — que se desdobrou em traduções, organização de antologias, escrita de artigos, prefácios e roteiros de cinema — é a história de uma profunda amizade e, também, de intercâmbios e contaminações mútuas, em um diálogo literário vigoroso. Quando se conheceram, no início da década de 30, Bioy tinha dezessete anos e Borges, pouco mais de trinta. A partir de então, e por muito tempo, passaram a se encontrar com freqüência para discutir textos, inventar e aperfeiçoar personagens e tramas. Em seu ensaio autobiográfico, Borges escreve que um dos principais acontecimentos de sua vida foi o início desta relação. “Ao se opor a meu gosto pelo patético, pelo sentencioso e pelo barroco, Bioy fez-me sentir que a discrição e o comedimento são mais convenientes”, anota Borges. “Eu diria que Bioy foi me levando aos poucos ao classicismo.” Para Bioy, “toda colaboração com Borges equivalia a anos de trabalho”. O autor de A invenção de Morel diz que aprendia com o amigo sem nenhum pudor ou restrição: “Quando duas pessoas escrevem juntas, e não são vaidosas, o resultado é melhor do que quando trabalham separadas”.

Ecos de ecos
Em Seis problemas para dom Isidro Parodi, que a editora Globo lança este mês em uma edição que inclui Duas fantasias memoráveis, pode-se dizer que Borges e Bioy (ou seja, Bustos Domecq) criam relatos policiais clássicos, nada de narrativas realistas ou psicológicas — “mera verossimilhança sem invenção”. Bioy escrevia e ambos discutiam a trama, norteados por uma série de regras: oralidade triunfante, propostas alternadas, exigência mútua, direito permanente de veto, prioridade ao jogo e ao prazer, riso incontido. À semelhança da família búlgara que tomava iogurte, eles inventaram uma origem e uma bibliografia para Bustos Domecq, prefaciado por duas renomadas autoridades imaginárias: a professorinha Adelma Badoglio, que apresenta ao leitor o autor de Cidadão! (1915) e Falemos com mais propriedade (1932), e o egocêntrico Gervasio Montenegro, representante da Academia Argentina de Letras, que chega a menosprezar Bustos Domecq.

Nesse esquema de colaboração, segundo Lafon e Peeters, a trama policial servia de norte, de elemento tranqüilizante e estruturante; um roteiro prefixado governava o relato e, a partir dele, Bioy e Borges desfilavam seus personagens prolixos, que contavam tudo o que podiam sobre o caso em questão. Tudo é resolvido a partir de uma seqüência lógica de hipóteses e deduções. Isidro Parodi, “um quarentão, sentencioso, obeso, com a cabeça raspada e olhos singularmente sábios”, encarna o limite e a paródia da idéia clássica do detetive imóvel, representação pura da inteligência analítica. Nos Seis problemas, a estrutura é simples: os envolvidos no crime acorrem à cela de Parodi, preso por um crime que não cometeu, e se põem a relatar os acontecimentos em um discurso muitas vezes delirante. Essa verborragia esconde os indícios necessários para a resolução do caso, e não é raro que a reescritura, a paródia, o plágio, a adaptação e a tradução estejam entre os motivos ocultos do crime. Nada mais conveniente em uma escrita em dupla, observa Lafon, do que falar de si mesma.

As obras individuais de Bioy e Borges também estão repletas de temas que tangenciam e fazem ecoar a idéia do duo literário. Relatos como “O outro” e “Tema do traidor e do herói” (Borges) ou “A trama celeste” e A invenção de Morel (Casares) amplificam as questões do “duplo” e das “realidades paralelas”.

No epílogo de suas Obras completas em colaboração, depois de citar The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Stevenson, em que o dr. Jekyll se transforma em duas pessoas, Borges diz: “A arte da colaboração literária é a de executar o milagre inverso: fazer com que dois sejam um”. Um outro texto, “Pierre Menard”, a história do homem que reescreveu de maneira idêntica, linha por linha, o Quixote, de Cervantes, encabeça o ataque à idéia de criação literária original, considerada por Borges um dos mais graves enganos, já que em cada texto estão presentes autores e textos anteriores. A reescritura, a paródia e o plágio são parte das estratégias de Borges para dissolver a idéia de autoria.

O crítico Daniel Balderston escreve que o argentino formulou em várias ocasiões sua idéia de que a criação literária é em grande parte algo impessoal, por ser cada escritor arquétipo de todos os escritores. “Talvez, para Borges, a colaboração seja uma forma de superar o ‘eu’ e a idéia ególatra de que uma obra está possuída por seu autor”, argumenta Balderston. “Para ele, somos todo o passado, somos nosso sangue, somos a gente que vimos morrer, somos os livros, somos gratamente os outros.”

Tom e Jerry do thriller
É muito freqüente, no entanto, que os duos literários sejam ignorados ou menosprezados pela crítica, que costuma reduzi-los a circunstâncias determinadas: anos de aprendizagem, exercícios de estilo, gêneros menores ou tarefas sob encomenda. Em muitas entrevistas, Bioy e Borges chegaram a considerar “menores” as obras de Domecq. Mas a questão é ambígua. Em seu ensaio autobiográfico, Borges afirma que alguns textos de Bustos Domecq são melhores do que tudo o que ele publicou sob o próprio nome e quase tão bons quanto aquilo que Bioy escreveu sozinho. Sobre The Wrecker, livro que Stevenson dividiu com seu genro, Lloyd Osbourne, Borges diz: “Esta novela é a melhor de Stevenson, mas permaneceu ignorada porque o autor não a escreveu sozinho. Ninguém se aventura a elogiar páginas de duvidosa paternidade”.

Para Lafon e Peeters, os críticos costumam nivelar as obras em colaboração, atribuindo a verve literária às piruetas de dois acrobatas, ao número de dois animadores de auditório. Bioy e Borges suscitam, assim, as mesmas comparações que outros duos literários: são o Tom e Jerry do thriller, o Bouvard e Pécuchet do suspense, o Batman e Robin do crime, quando não o Fred Astaire e Ginger Rogers do romance. Como se a incongruência dessas comparações acabasse por alimentar uma condescendência divertida e dispensasse a análise verdadeira dos textos.

É meu!, é meu!
Os casos de parceria na literatura, porém, obedecem aos mais diversos princípios. Os inseparáveis irmãos Goncourt, por exemplo, escreviam um diário juntos e encarnaram o máximo da fusão literária, estética, afetiva e psicológica, muito além da escrita em dupla. Jules e Edmond inclusive dividiam as amantes. Já Alexandre Dumas e Auguste Maquet foram parceiros durante sete anos e produziram, juntos, dezessete romances. Em geral, Maquet dava o primeiro passo, pois tinha a habilidade de construir os enredos e possuía um conhecimento de fundo que utilizava em todas as aventuras. Dumas lia o original e se servia do texto como um rascunho. Ele reescrevia, acrescentando mil detalhes que davam vida ao romance, refazia os diálogos (nos quais era mestre), polia o fim dos capítulos e aumentava o texto, para satisfazer às exigências de um folhetim que devia durar dois meses e prender o interesse dos leitores. Às vezes pedia a Maquet que “fizesse” tal e tal episódio, e usava o verbo “fazer” em vez de “escrever”, como se fosse uma tarefa mecânica. Dumas também sugeria intrigas e defendia a sua própria visão da história. Às vezes introduzia novos personagens, como o criado Grimaud, taciturno, que só respondia em monossílabos — artifício muito engenhoso, já que os jornais da época pagavam por linha. Não haveria nenhum problema na colaboração, se Dumas não assinasse sozinho todos os livros. Os três mosqueteiros, O conde de Monte Cristo e A rainha Margot foram alguns dos romances dessa parceria.

Outro tipo de colaboração foi encarnado por Jules Verne e seu editor, Jules Hetzel. Verne era um autor inexperiente e fazia um papel quase submisso diante das exigências do chefe. A cada livro, retrabalhava intensamente sobre as críticas até que Hetzel ficasse satisfeito. O escritor chegava a implorar pela atenção do editor, dizendo que não poderia terminar o livro sem a presença dele. Também Colette e seu marido Willy mantiveram uma parceria literária. Durante dez anos, ela escreveu e ele assinou. Willy mantinha a esposa no anonimato e embolsava seus direitos autorais pela série da personagem Claudine, que fez muito sucesso na época. Mais bem-sucedida foi a parceria conjugal entre Júlio Cortázar e Carol Dunlop, que escreveram juntos Os autonautas da cosmopista. O livro, um relato de uma viagem de carro pela auto-estrada Paris–Marselha, é uma mistura de fragmentos de manuais, diálogos, histórias, desenhos e fotografias, sem distinção de autoria. Para eles, a colaboração era uma maneira de lutar contra a morte e de celebrar o amor, a alegria compartilhada e a cumplicidade do instante. Mesmo Gustave Flaubert, o anti-colaborador por excelência, chegou a escrever uma peça com Louis Bouilhet e o conde d'Osmoy, Le château des coeurs, e um livro (nunca publicado) em parceria com o amigo Maxime Du Camp. Era o diário de uma viagem de três meses ao oeste da França, que inicialmente seria escrito ao longo da jornada — o que não deu certo, pois estamos falando do preciosista Flaubert. Ambos optaram por um formato em doze capítulos: a Flaubert, cabiam os ímpares e a Du Camp, os pares. O curioso é que algumas das passagens mais flaubertianas são da autoria de Du Camp. Misturas assim também aconteciam com Borges e Bioy. “Quando alguém quer saber se essa ou aquela brincadeira ou epíteto saiu de meu lado da mesa ou do lado de Bioy, sinceramente não sei dizer”, confessa Borges. “Toda colaboração é misteriosa.”

A parceria entre Borges e Bioy é, sobretudo, uma história de amizade. Na página que abre Ficções, dividem a cena um espelho e Bioy Casares. O conto é “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” e nele Borges escreve: “Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. (...) Então Bioy Casares lembrou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens”. E assim descobrem, juntos, que os espelhos têm algo de monstruoso.
.