terça-feira, 26 de março de 2019

ar de chumbo

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Texto do Ruan de Sousa Gabriel, na revista Época.


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O pintor russo Bogdan Trúnov viveu em Sebastopol, cidade portuária da Crimeia naqueles anos turbulentos, entre 1853 e 1856, quando ingleses, franceses, sardos, otomanos e súditos do czar Alexandre II se digladiavam pelo controle da península. Diferentemente de Tolstói , que foi segundo-tenente num regimento de artilharia na Crimeia e escreveu os Contos de Sebastopol, Trúnov não pintava soldados valentes em ação ou cavalarias com bandeiras em riste. “Trúnov sempre esteve assim, respirando o ar de chumbo da guerra, envolvido com isto até o pescoço, mas a guerra, a guerra mesmo, nunca aparecia nos seus quadros”, diz Nadia, a narradora de “Agosto”, o último dos três contos que compõem Sebastopol, livro de Emilio Fraia publicado pela Alfaguara em outubro passado. Os títulos das três narrativas do livro aludem aos Contos de Sebastopol, que também são três. Tolstói escreveu “Sebastopol no mês de dezembro”, “Sebastopol em maio” e “Sebastopol em agosto de 1855”. Os contos de Fraia são “Dezembro”, “Maio” e “Agosto” e, embora não descrevam trincheiras, exprimem a angústia muda dos que cismam na derrota incomparável.

Mas voltemos a Trúnov, que só existiu na Sebastopol metafórica criada por Fraia, bem longe das águas do Mar Negro. No conto, Nadia, uma universitária da província que vive sozinha em São Paulo, ajuda Klaus, um diretor de teatro meio maldito, a escrever uma peça sobre o pintor russo. Nadia atravessa noites entorpecidas no apartamento de Klaus a pesquisar a vida e a obra de Trúnov. Ela se impressiona por não encontrar, nas telas do russo, campos de batalha, generais altivos e soldados ensanguentados. “Seu foco era a vida comum dos soldados quando não estavam no front, os intervalos, os tempos mortos quando nada estava acontecendo, soldados perdidos pelo caminho enquanto aguardavam informações sobre onde se encontram as bateria de seu Exército, soldados com o rosto empoeirado, jogando cartas numa estação de muda de cavalos qualquer à espera do regimento.” Mas pintar soldados jogando cartas nos intervalos das batalhas também não é pintar a guerra? O “ar de chumbo” não aparece nos rostos empoeirados nos soldados a descansar? Quem quer pintar um retrato potente da guerra precisa de fato pintar “a massa de soldados em ação”?

E se alguém quiser escrever um livro sobre a perplexidade, o desespero e a melancolia que tomaram o Brasil depois das Jornadas de Junho? Precisará necessariamente descrever multidões marchando por avenidas, black blocs quebrando vidraças, intelectuais falando besteira e tias compartilhando fake news no WhatsApp? Sebastopol responde a essa questão mostrando que a literatura política não é aquela se pretende uma tradução exaustiva da realidade, uma descrição fidelíssima e explicativa dos fatos, mas aquela que interroga a realidade ao prestar atenção aos lapsos, aos sintomas mal disfarçados, ao que se esconde no fundo das cenas. Os três contos de Sebastopol exprimem o desnorteio pós-junho de 2013 ao narrar histórias fragmentárias, quase banais, sem a preocupação de formular conclusões e sem receio de confundir o leitor, de desarmá-lo.

O conto do meio, “Maio”, narra a passagem de um enigmático peruano-brasileiro por uma pousada decadente no Centro-Oeste. Esse homem, Adán, conta pedaços de sua história a Nilo, o dono da pousada, e depois desaparece. “Uma coisa explicando a outra, uma coisa dando sentido à outra, que é como funciona a nossa cabeça, não é mesmo?”, diz Adán. Mas, em “Maio”, uma coisa não dá sentido à outra, nada é explicado, fios vão sendo desatados e o leitor chega às últimas linhas confuso, como quem tentou acompanhar o noticiário brasileiro nos últimos tempos. As descrições sóbrias e atentas do narrador onisciente tencionam o conto, que ainda brinca com conceitos caros a Jorge Luis Borges , como a repetição e o eterno retorno: “Nilo pensa que as histórias dos homens são uma só”. Sabe aqueles pesadelos históricos que sempre ameaçam se repetir? As referências sutis às ditaduras latino-americanas inseridas no conto não parecem gratuitas.

“Dezembro”, o primeiro conto de Sebastopol, traz referências sutis a outros fatos políticos – às Jornadas de Junho. O conto é narrado por Lena, uma moça rica que escala montanhas e sonha em ser a primeira brasileira a alcançar o topo do Everest. Um acidente nas alturas força Lena a abandonar o alpinismo e se reinventar como palestrante, dessas que contam histórias lacrimosas de superação para plateias corporativas. Um dia, ela depara, numa exposição, com um vídeo que parecia contar sua história. Lena estranha o vídeo, rejeita-o, mas também se reconhece nele. Ela havia falseado sua história para adequá-la aos clichês de autoajuda ou foi só quando a viu, ali na sua frente, transformada num experimento artístico é que conseguiu enfim enxergá-la, caótica, pulsante como as ruas de junho, livre das amarras corporativas (ideológicas?) que tentavam lhe impor um sentido? O acidente de Lena aconteceu em 13 de junho de 2013. O leitor atento há de lembrar que esse foi o dia em que a Polícia Militar reprimiu com covardia brutal a manifestação que acontecia em São Paulo contra o aumento das tarifas de transporte público. Foi ali que junho mudou de rumo. A população repudiou a violência policial e os protestos engrossaram, vieram as pautas verde-amarelas. “Sei que estamos em 2018, mas a minha impressão é ter vivido esses anos todos sem ter vivido nada”, diz Lena, ao rememorar o que aconteceu em 2013. Ela não menciona os protestos uma única vez.

Trúnov, o pintor russo, foi uma vez convidado a pintar uma cena bélica. Civis e soldados, com armas e cavalos, encenariam uma batalha num pátio, e Trúnov registraria tudo com a fidelidade das tintas. “Pensei que no fim Trúnov seguiria sem pintar a guerra, a guerra mesmo, já que o que havia decidido fazer era aquela encenação idiota”, diz Nadia. Nos contos de Sebastopol, Fraia recusa o convite para pintar uma encenação. Ele se mantém fiel ao método de Trúnov: pintar os rostos empoeirados e perdidos que permanecem longe das avenidas largas e movimentadas da história, onde marcham soldados e block blocs. E pinta com uma linguagem concisa, dura, sem nenhuma pretensão explicativa, mas capaz de exprimir “o ar de chumbo” que pesa sobre o país.

Numa das primeiras páginas de Sebastopol, Lena diz que os acontecimentos são como ataduras que precisamos enrolar e desenrolar com o maior cuidado possível. É isso que os narradores vão fazendo ao longo dos três contos, até o resumo final, enunciado por Nadia como quem arranca um esparadrapo: “Voltei a pensar no estado geral das coisas, na minha geração, que seria esmagada por mais dez, quinze anos de paralisia”.
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