sábado, 5 de janeiro de 2019

luzes evasivas

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O escritor Cadão Volpato sobre Sebastopol no Valor Econômico:

A rigor este é o primeiro livro 100% escrito por Emilio Fraia, um paulistano de 36 anos que antes havia publicado um romance a quatro mãos com Vanessa Barbara, O Verão do Chibo (2008), e a graphic novel Campo em Branco (2013), com o quadrinista DW Ribatski.

Em 2012, a revista britânica "Granta", em seu número sobre os melhores jovens escritores brasileiros, havia selecionado um conto do escritor. E foi tudo, até este Sebastopol, breve coleção de três histórias que levam títulos de alguns meses do ano. Pela ordem: "Dezembro", "Maio" e "Agosto".

Tais títulos são apenas guias discretos e passam quase batidos caso não se preste muita atenção neles. O que vale são as narrativas. Nelas, há uma contenção fora do comum, uma simplicidade que bane os adereços, embora a literatura esteja presente em toda parte. Talvez, mais do que a literatura, a importância da transcendência em nossas vidas.

Os personagens de Sebastopol são misteriosos, nunca definitivos, aparecem e desaparecem cheios de dúvidas. Suas questões, no entanto, nunca são respondidas. Como em geral acontece com os seres humanos, a vida não tem respostas claras: ela se move por veredas obscuras, e o mistério de viver só é iluminado de vez quando, a começar pelo fato de que hoje podemos estar aqui, mas daqui a pouco, quem sabe? Nos contos de Sebastopol, em que duas vozes femininas abrem e fecham o livro, enquanto uma terceira, de aparência mais neutra, tateia em busca de soluções existenciais que desaparecem no ar, o irremediável mistério de viver é o motor de tudo.

E não adianta ir do Everest para a Crimeia ou o Peru em busca de respostas, é o que o livro parece dizer em sua grande contenção narrativa.

A jovem escaladora que narra o primeiro conto é vítima de um acidente terrível. Ao ver sua história contada no vídeo de uma artista que também é misteriosa, ela resolve por conta própria narrar a sua versão. Não que isso ilumine as coisas de verdade. O travo de uma não solução fica na cabeça do leitor, do jeito que os escritores mais interessantes costumam fazer, já que a vida real não é agarrável como pode parecer.

No segundo conto, estamos às voltas com uma pousada decadente e seu dono fracassado. Um hóspede a contragosto desaparece, e tudo se complica. Quer dizer, na verdade parece inevitável que tudo se complique, e essa segunda história, não menos evasiva que as outras, recorre a um certo humor discreto, ao pintar o tipo peruano que está a fim de mudar de vida nem que seja na base da simples evaporação. Ele briga com a mulher que o acompanha, compra um fusca velho e uma casa modesta na cidadezinha próxima e, como se não bastasse, some do mapa. Temos um estranho porco descomunal para não esclarecer os fatos.

Chegamos por fim ao terceiro conto, o mais próximo talvez daquilo que o título sugere. Um velho dramaturgo meio conformado com o circuito alternativo em que vive pretende montar uma peça sobre um pintor russo que viveu durante o cerco de Sebastopol (1854-1855), o principal combate da Guerra da Crimeia, que mobilizou algumas potências ocidentais contra a Rússia czarista no século XIX.

O tal pintor está no olho do furacão, mas prefere tratar o conflito em estúdio, talvez para ter um controle total sobre o desastre - como se isso fosse possível. Quando um jovem soldado lhe pede para pintá-lo no campo de batalha, ele o retrata numa cena montada em um pátio de oficina. Tudo grandioso, mas falso.

Esse distanciamento diante dos mistérios que envolvem os personagens é um fator constante no livro. Só não dá para dizer que ele os aprisiona porque o ritmo da narrativa não se deixa levar por nenhum aparato. O que Emilio Fraia escreve é de grande naturalidade e correção. O gosto que fica no fim é o de um mistério ainda maior, e também o de uma tristeza anexada naturalmente ao fracasso de tentar entender o que nos cerca.

É com a maturidade de um escritor mais experiente do que a sua obra escassa pode apontar que Fraia abre um caminho para si na literatura jovem que foi coroada pela "Granta" e que vem chegando à tona, de verdade, nos últimos anos. Como os colegas daquelas páginas da revista,  o autor de Sebastopol começa a construir um caminho próprio, em que as sutilezas da imaginação não querem necessariamente explicar o mundo, mas contê-lo em um ambiente exposto à incidência de luzes evasivas.
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