quarta-feira, 7 de novembro de 2018

uma história esquisita em que não acontece nada

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Na Quatro cinco um deste mês, texto da Marcella Franco:









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Um No mapa, a cidade de Sebastopol se equilibra na ponta de uma península, abraçada pela Ucrânia, Rússia e Crimeia. Tem pouco mais de 300 mil habitantes, e já foi foco de disputa entre soviéticos e alemães nos anos 1940. Agora, Sebastopol dá nome à terceira publicação do escritor paulistano Emilio Fraia, que, pela primeira vez, assina um livro sozinho.

São três partes, com histórias aparentemente independentes e nomeadas com meses do ano. Lena, uma alpinista que sofre um acidente na descida de sua escalada ao Everest, em meados de 2012, é quem abre Sebastopol com “Dezembro”, narrando em primeira pessoa sua relação com o videomaker italiano Gino.

Por ter superado a amputação das pernas, depois de quinze cirurgias e um longo período sem conseguir se olhar no espelho, a atleta se transforma em uma palestrante de sucesso, o que ajuda, de certo modo, a aplacar seu isolamento social – Lena é uma mulher solitária, com poucos amigos, e uma mãe com câncer terminal.

Esta existência segregada parece ser o principal motivo que a leva a entregar não só ela própria, mas também suas valiosas memórias, aos cuidados de Gino, que ganha o poder de usá-las como bem entender. “Fiz o que as pessoas fazem o tempo todo. Contar as histórias, recontá-las, congelá-las, dar sentido a elas”, confessa a si mesma.

Chega “Maio”, e com ele vem Nilo, dono de um sítio onde funcionava uma pousada agora desativada. A exemplo de outros desavisados, o peruano Adán e sua mulher vão parar na propriedade, e, depois do pernoite improvisado, ela parte e ele permanece, estabelecendo uma relação com Nilo. Enquanto de um mal se sabe a história -- em uma tentativa de esquecer o passado, já há anos Nilo escondeu todas as fotografias em uma caixa no porão --, do outro se descobrem nós primitivos que envolvem exílios, sacrifícios e mortes.

É só quando desaparece que Adán, finalmente, ganha acesso às profundezas do amigo -- mas aí já é tarde demais. Enquanto esvazia a água da piscina logo na abertura do conto, o empregado Walter “sacode a cabeça e diz que aquilo não faz o menor sentido”.

“Agosto” é o conto e o mês de Klaus, um diretor de teatro que convida a jovem Nadia para criar uma peça que fala da vida de um famoso pintor russo, morador de uma cidade vizinha a Sebastopol, e que gostava de retratar soldados. A certa altura, enquanto planejam o roteiro do espetáculo, Nadia questiona o autor sobre a decisão de escrever sobre aquela figura.

“Você gosta das pinturas desse cara (...), mas é apenas uma história esquisita em que não acontece nada”, argumenta, enquanto Klaus responde que, no fundo, todas as histórias são esquisitas e também nada acontece. E esta reflexão, sobre o tênue limiar entre a banalidade e o relevante, permeia Sebastopol da primeira à última página, colocando o leitor na posição de advogado da importância dos relatos dos outros e da própria biografia.

Embora até apresentem reviravoltas, os contos de Fraia seguem sempre sem grandes sobressaltos, cultivando uma atmosfera ansiosa, que serve perfeitamente à ideia de envolver, mas sem que para isso sejam necessários quaisquer artifícios exceto o pleno domínio da linguagem e do manejo dos deslocamentos no tempo, bem como de uma cuidadosa narrativa descritiva.

Ao relatar sua vida pregressa, o peruano Adán traça um paralelo entre o papel das ondas como o elemento que serve para sacodir o mar e as tragédias, que vêm para sacodir a vida. Hábil como seu criador, o personagem sabe conduzir mais de uma trama ao mesmo tempo, e, como talvez Fraia também imagine, Adán pensa que “as histórias correm paralelas, sem nunca se encontrar”.

Contudo, ao menos em Sebastopol, as vidas se resvalam, sim, ainda que de modo sutil e quase misterioso. A intersecção pode estar na renúncia do self à qual todos os protagonistas se submetem, ou nas montanhas da escaladora Lena, que, segundo Nilo, são a tentativa humana de estar mais perto dos deuses, algo parecido com o que fazem o teatro e a pintura quando ousam retratar a guerra. Esteja onde estiver o cruzamento, sorte do leitor que se dispuser a galgar o universo de Fraia e tirar sua própria conclusão.
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