sábado, 3 de novembro de 2018

dormir por anos, acordar de repente

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No Estado, texto da Maria Fernanda Rodrigues + quatro perguntas:







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Um livro de personagens em situações difíceis, de forasteiros, de gente deslocada e de terras estrangeiras e estranhas. Assim Emilio Fraia define Sebastopol, seu terceiro livro – e o primeiro que escreve sozinho – com lançamento nesta terça, 23.

Fraia estreou na literatura em 2008 com O Verão do Chibo, escrito com Vanessa Barbara. Pouco depois, em 2012, ele figurou na Granta – Os 20 Melhores Jovens Autores Brasileiros. Um ano mais tarde, lançou Campo em Branco, graphic novel assinada com DW Ribatski.

Sebastopol traz três contos independentes, mas com temas em comum. "Dezembro" é narrado por Lena, que queria se tornar a mais jovem mulher brasileira a “alcançar o cume dos montes mais altos de cada um dos sete continentes”, ela nos conta. Algo, claro, dá errado. "Maio" é narrado em terceira pessoa e retrata o encontro e o desencontro entre Nilo, dono de uma pousada desativada, e Adán, que pede abrigo no local. "Agosto" volta a ser narrado por uma mulher, Nadia, que deixa o emprego num museu para ajudar um dramaturgo decadente a escrever uma peça sobre um pintor russo enquanto ela mesma tenta escrever uma história.

São personagens às voltas com traumas, tentando dar conta da vida, recordando histórias que preferiam esquecer – que preferiam não ter vivido. Dor física e psíquica, o não dito, o que não está mais lá. “Este é um dos grandes temas: lidar com o invisível. O Roberto Piva dizia, citando o Lorca, que ele era um pulso ferido sondando as coisas do outro lado. Acho uma boa definição para a literatura”, diz Fraia.

Outra questão, comenta o autor, tem a ver com o jeito que contamos as histórias das nossas vidas – para nós mesmos e para os outros. “E como estas histórias tomam o lugar do acontecido, fazendo com que as fronteiras entre o que aconteceu e o que se conta fiquem borradas e, no limite, desapareçam.”

E há também, ressalta, uma desfiguração do tempo nas histórias. “Porque o trauma é uma espécie de tempo que não passa. Não existe um antes e depois. Há um clima melancólico, de falta de esperança, de histórias interrompidas e deixadas pelo caminho. Alguns episódios são apenas aludidos, e os personagens parecem ter dormido por anos e acordado de repente. Algo meio história de terror ou de uma aventura que não se realiza”, comenta.

Sebastopol, o título do livro, remete à maior cidade da Crimeia, palco de um dos mais sangrentos episódios da Guerra da Crimeia no século 19 e anexada à Rússia em 2014, que aparece como um postal no terceiro conto. É um nome estranho que combina com o livro, diz Fraia, que cita ainda obra de Tolstoi. “Contos de Sebastopol narra três momentos distintos desta guerra. Tolstoi esteve lá, viu tudo de perto. Uma história de gente mutilada e de resistência e, de certa forma, isso tem a ver com o livro – e com um sentimento que estamos experimentando agora no Brasil.”

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Como surgiram os contos do livro? O livro surgiu de uma vontade de escrever histórias que funcionassem por si só, cada uma com seu universo, mas que ao mesmo tempo quando colocadas lado a lado pudessem estar conectadas por relações sutis, por um andamento comum. Como se para além da voz da narração de cada um dos contos houvesse uma outra subjetividade, difusa, pairando sobre tudo, e isso criasse um efeito. Uma sensação de diferença (afinal, as histórias são independentes), mas também de proximidade (temas que voltam, um tom comum). Queria que o leitor chegasse ao final e pudesse repassar as histórias em busca destes pontos de contato. Por exemplo: no livro, há sempre alguém que conta, imagina, recorda. E a história contada, imaginada, inventada toma a frente e acaba funcionando como uma espécie de comentário à história principal -- e ao livro também. São histórias simples que começam a ficar complexas.

Por que Sebastopol? É um nome estranho, que combina com o livro. Eu nunca fui a esta cidade, nunca estive na Rússia -- também nunca fui ao Everest, que é onde se passa parte da primeira história. Sebastopol aparece como uma cidade num mapa, uma representação, como um lugar num daqueles jogos de tabuleiro tipo War. As montanhas do Everest surgem quase como um cenário de isopor e papelão. Tudo bastante artificial. Tem algo de irônico nessa escolha também, há muitos livros com nomes de cidades, Berlim, do Joseph Roth, Austerlitz, do Sebald, Budapeste, do Chico Buarque. Sebastopol é uma cidade portuária do Mar Negro, a maior da península da Crimeia. É uma cidade meio híbrida, ucraniana, que em 2014 foi anexada à Rússia. Foi palco na metade do século dezenove de um dos episódios mais sangrentos da Guerra da Crimeia. O primeiro livro do Tolstói, Contos de Sebastopol, narra três momentos desta guerra. O Tolstói esteve lá, viu tudo de perto. É uma história de gente mutilada, de resistência e, de certa forma, isso tem a ver com o livro -- e com um sentimento que estamos experimentando agora no Brasil.

Gino dizia que o que o interessava em suas filmagens era encontrar maneiras novas de mostrar o de sempre. Isso diz respeito também à literatura? Sim, mas a narradora está apaixonada por Gino, então qualquer frase que ele diga soa como algo muito sério e verdadeiro. Ele é uma figura meio pedante, dono de uma produtora, com aspirações artísticas. E a narradora está presa a este cara. Então acho que é verdade e mentira que precisamos encontrar maneiras novas de mostrar o de sempre. Penso nisso também como uma reflexão sobre algumas verdades que volta e meia surgem: é preciso escrever sem muitos advérbios, adjetivos são ruins, não se pode escrever de maneira bonita, é preciso encontrar maneiras novas de contar o de sempre. Tudo verdade. Tudo mentira.

Nadia diz que as pessoas contam sempre as mesmas histórias, mesmo quando tentam contar outras histórias. Adán, que contamos e repetimos as histórias porque temos medo delas, porque este é o nosso pedido de ajuda. Você concorda? Que história é essa que você está tentando contar? Nadia é a personagem mais jovem do livro. Ela está ajudando um diretor de teatro mais velho e meio decadente a escrever uma peça de teatro e ao mesmo tempo tentando escrever uma história dela e, finalmente, precisando dar conta da própria vida -- ela terminou um namoro, isso só se insinua na trama, mas ao mesmo tempo parece estar em tudo o que ela faz. No outro conto, Adán conta a Nilo sua história, seu passado como motorista de táxi em Lima, sua relação com o pai e com o filho. É uma história que ele não gosta de lembrar, mas parece que precisa contar e lembrar. Acho que uma possível questão do livro pode ter a ver com o jeito que contamos as histórias das nossas vidas -- para nós mesmos e para os outros. E como estas histórias tomam o lugar do acontecido, fazendo com que as fronteiras entre o que aconteceu e o que se conta fiquem borradas e, no limite, desapareçam.
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