quinta-feira, 25 de outubro de 2018

tempo que não passa

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Na Folha de S.Paulo, texto do João Perassolo:







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“Percebi que Klaus era uma pessoa sozinha. Ele não tinha dinheiro nem amigos e não podia contar com muita gente. Dizia que um dia ainda seria morto por um michê. Falava que, como eu gostava de escrever, então agora eu teria uma missão: a de escrever o seu obituário quando ele morresse”, relata Nadia, a certa altura do conto “Agosto”.

Ela é uma das personagens levemente tristes de Sebastopol, livro de contos de Emilio Fraia que será lançado nesta terça (23), na livraria Tapera Taperá, em São Paulo.

Nadia é uma arte-educadora que acaba de pedir demissão do museu no qual trabalhava para se dedicar ao teatro e à sua paixão por escrever; Klaus, um diretor de teatro sessentão com “um aspecto de penúria geral”, informa o narrador da história. No decorrer das páginas, o encontro dos dois vai gerar uma peça de teatro sobre um pintor que retratava os soldados da batalha de Sebastopol, na Rússia, em situações melancólicas: nos intervalos dos combates e em momentos de ócio.

“O livro tem uma leve melancolia, um humor trágico, embora não seja dramático. É como o riso que você dá em situações tristes”, compara Fraia. Para o escritor, Sebastopol é sobre “como contamos as nossas histórias para a gente e para os outros”.

Nos três contos que compõem o terceiro livro do paulistano — sua estreia solo após o romance O verão do Chibo, em coautoria com Vanessa Barbara, e da graphic novel Campo em branco, em colaboração com DW Ribatski —, a narrativa está sempre associada a tragédias pessoais dos personagens.

No primeiro conto, “Dezembro”, uma jovem escaladora tenta reconstruir a vida após perder as pernas na descida do monte Everest.

No segundo, “Maio”, o proprietário de uma pousada decadente à beira da estrada vê seu negócio ameaçado pela próspera plantação de eucaliptos situada na propriedade vizinha. No último, “Agosto”, a peça de teatro de Nadia e Klaus é repleta de atuações ruins e acaba sendo um fracasso de público.

O autor usa o conceito de trauma para descrever os personagens do livro, que ruminam sobre como suas atitudes passadas os trouxeram até um presente relativamente morto, não promissor. “É um tempo que não passa, não existe antes e depois”, afirma Fraia.

Há também mais um elemento que interliga as histórias: o andamento.

O narrador parece ser o mesmo em todos os contos, imprimindo um ritmo comum a três narrativas completamente diferentes. As frases são sóbrias e quase sempre curtas, sem malabarismos de sintaxe ou vocabulário complicado; os diálogos estão inseridos no texto, e não destacados por aspas, emprestando fluidez à leitura.

Fraia, eleito um dos melhores jovens autores brasileiros pela revista Granta, em 2012, conta que a ideia para Sebastopol surgiu há dez anos, mas que só colocou as palavras no papel nos últimos dois. O período de escrita coincidiu com o cenário de crise política e econômica no Brasil, mas, apesar disso, ele diz que inserir o “real” de forma direta nas suas histórias não estava necessariamente nos planos. Ele vê sua literatura “não como um espelho, mas sim como um comentário” do mundo lá fora.
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