sábado, 6 de julho de 2013

lembrança de 1987

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Texto da Camila Kehl sobre o Campo em branco + duas perguntas:
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1) Dois irmãos se reencontram depois de dez anos vivendo longe um do outro. Eles estão na cidade estrangeira onde Mirko, o mais velho, agora mora. É Lucio, aquele que vai até onde está Mirko, quem conta a história.

2) Mirko insiste para que ele e Lucio repitam uma viagem feita há muito tempo. O destino é Cabo Blanco, um lugarejo desolado nas montanhas. Em Cabo Blanco faz frio e venta um bocado, e a grande atração são gigantes de pedra. Lucio sequer se recorda da primeira vez em que estiveram ali — a ausência de lembranças não parece um problema, no entanto, e lá vão eles no velho carro de Mirko.

3) O leitor não está diante de uma narrativa linear sobre o reencontro entre dois irmãos que não se viam há tempos, ou, o que também é possível intuir, de um relato de viagem. É mais do que isso: é uma mistura quase caótica de tempos e lugares, insights e recordações, todos relacionados a Lucio. A grande sacada da graphic novel de Emilio Fraia e DW Ribatski é justamente permitir que o leitor tire as próprias conclusões — que dê às cenas o significado que julgar adequado e as ordene como quiser. É preciso empenho (e alguma reflexão) para enxergar certas coisas: a tarefa é retirar um sentido de Campo em branco. Longe de ser inconsistente, o resultado é incrível.

4) Pergunto para Emilio Fraia como funciona o trabalho a quatro mãos de um escritor e um ilustrador: “No início, pensei que eu poderia escrever uma novela, um conto longo, e o DW adaptaria e pronto, feito, tudo sairia como eu havia imaginado. Mas ao longo do processo fui entendendo que para comunicar certos climas, ritmos, tempos e intenções que estavam na minha cabeça, o caminho devia ser outro. Porque numa história em quadrinhos, boa parte desses climas, ritmos etc. tem a ver com o aspecto visual, a maneira de decupar as cenas, pensar como a história avança de um quadro para o outro, de uma página para a outra. Existe um aspecto material mesmo, cada página ou quadro pode, por exemplo, exigir um tempo diferente do leitor, prolongar ou comprimir a sensação de tempo. Foi interessante ver como esses e outros efeitos podem ser criados numa HQ. Num romance, para além do enredo, a forma está nas palavras, na maneira como o escritor estrutura a narrativa. Na história em quadrinhos, isso está no traço, na disposição e tamanho das imagens, no avançar pelas páginas — há uma sintaxe muito particular, e é ela que vai determinar o ritmo, o foco narrativo, o tom e, principalmente, produzir significados e dialogar com a trama. Ficou claro que não queríamos fazer um roteiro desenhado. O DW trouxe muitas ideias, e nós fomos tentando explorar ao máximo o que a linguagem dos quadrinhos poderia oferecer”, escreve. Vale lembrar que Fraia produziu outro trabalho a quatro mãos: O verão do Chibo, livro escrito em parceria com Vanessa Barbara.

5) A resposta de Fraia é providencial para que o leitor preste ainda mais atenção aos detalhes das imagens, e especialmente à passagem de cenas.

6) Lucio é (ou foi) estudante de Física. Há, portanto, várias alusões ao assunto — e mesmo as falas ou pensamentos genéricos do protagonista parecem combinar com alguém que o compreende em profundidade. “Se eu quiser conhecer a trajetória com clareza, preciso sacrificar meu conhecimento sobre o ponto em que estou”; “Se eu quiser conhecer onde estou com grande clareza, preciso sacrificar meu conhecimento sobre minha trajetória (de onde vim, pra onde vou)”; “uma concentração exagerada na verdade é um tipo de distração”; “Como a atenção a um detalhe específico sacrifica, por definição, nossa percepção do todo”. Essa necessidade de alternar entre o todo e o detalhe vale tanto para os personagens — que precisam compreender o próprio contexto, além de preencher furos da memória — quanto para o leitor, que enxerga aí uma pista para criar seu próprio significado para o livro.

7) Ribatski utilizou tons de azul, além de preto e branco. E só.

8) Para constar: DW Ribatski é o ilustrador da fantástica capa de A brincadeira favorita, de Leonard Cohen.

9) O subtítulo de Campo em branco é “Lembrança de 1987″. Fraia esclarece, abaixo, o motivo da escolha.

10) A propósito do lançamento de Campo em branco, Emilio Fraia escreveu, para o blog da Companhia das Letras, um texto sobre a cor branca. Faz sentido evocar um trecho de Moby Dick, uma vez que Melville, no capítulo que dedicou ao assunto, foi um incansável crítico da cor branca: “Ou será que o branco, em sua essência, não é uma cor, mas a ausência visível de cor, e, ao mesmo tempo, a fusão de todas as cores; será que são essas as razões pelas quais existe um espaço em branco, repleto de significado, na ampla paisagem das neves — um ateísmo sem cor e de todas as cores do qual nos esquivamos?” (grifo meu; retirado da edição da Cosac Naify — tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza).

11) Até um gato que surge nas páginas deixa dúvidas: será o de Schrödinger?

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+ duas perguntas para Emilio Fraia:

(Numa das últimas páginas de Campo em branco, uma ilustração mostra os títulos de dois livros que provavelmente pertencem a um dos personagens.)

Os contos de E. T. A. Hoffmann e A narrativa de A. Gordon Pym, de Edgard Allan Poe, exerceram algum tipo de influência sobre o conteúdo de Campo em branco? No caso do segundo, existe alguma relação entre ele e o que você menciona no blog da Companhia (no texto, você diz: "‘O secreto argumento desse romance é o medo e a vilificação do branco’, escreveu Borges, em seu ensaio ‘A arte narrativa e a magia’, sobre o único romance de Edgar Allan Poe, A narrativa de A. Gordon Pym")?

O subtítulo do livro, "Lembrança de 1987", vem de um conto do Hoffmann, “O cavaleiro Gluck”, cujo subtítulo é “Lembrança do ano 1809″. É uma homenagem e ao mesmo tempo opera um efeito de realidade: se é uma lembrança, aconteceu. No caso do Campo em branco, a gente tentou embaralhar onde exatamente está esse ano de 1987. Na história, há planos temporais diferentes e, a princípio, todos eles poderiam ser 1987. Sobre o Poe, sim, A narrativa de A. Gordon Pym é um livro sobre o branco. Então, no finzinho do álbum, quando o personagem abre um armário, colocamos ali, escondidinhos, esses dois livros.

Fica claro, no livro, que não importa que se estabeleçam as mesmas condições para determinado fenômeno: os resultados irão diferir. Um professor de física de Lucio diz que “dependendo do que a gente coloca aqui, muda tudo”. Indo além do próprio enredo, é possível dizer que, com base nisso, cada leitor tem uma interpretação diferente de Campo em branco?

Sim, queria pensar essa possibilidade em diferentes níveis: na história dos irmãos que tentam reencenar uma viagem da infância, voltar ao mesmo lugar, subir a mesma montanha, nadar no mesmo lago e recuperar, assim, uma experiência (impossível de ser recuperada); e numa espécie de diálogo com o leitor, que pode projetar suas ideias sobre o que afinal move esses personagens. Por que o irmão mais novo decide procurar o mais velho? Por que o irmão mais velho propõe que refaçam a tal viagem da infância? O que de fato, objetivamente, acontece durante a jornada? Tudo isso interessa. Mas interessa, para mim, porque são perguntas que talvez não tenham respostas simples. Os personagens talvez não saibam responder com exatidão — porque, afinal, uma resposta nunca é simples, e dependendo do jeito de olhar, muda tudo. Me pareceu uma maneira interessante de explorar a ideia de espaço em branco, que é o contrário da certeza e da assertividade, e é um conceito muito gráfico também, bom para uma história visual.
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