segunda-feira, 11 de junho de 2012

cabelo, dinheiro e lágrimas

.
Entrevista que fiz com Alan Pauls, no fim do ano passado:

Certa vez, escrevendo o obituário de W.G. Sebald, você anotou, referindo-se a autores de sentenças longas, que “existe uma frase Sebald como existe uma frase Proust e uma frase Bernhard”. Um amigo, Jonas, pergunta: como você definiria a “frase Pauls”? 

Quem dera houvesse uma frase Pauls. Gostaria de estar nesse caminho, me parece que é o máximo a que um escritor pode aspirar. O que tento fazer é que a frase seja um lugar, um espaço, um meio-ambiente. E que o leitor seja capturado por ela e que possa de algum modo viajar pela frase, como os cientistas de Viagem fantástica, um dos meus filmes ruins favoritos. Nele, há um cientista que sofre um acidente vascular. Estamos nos anos 70, a microcirurgia não havia sido inventada, e a única maneira de operar esse homem é reduzir uma equipe de médicos a um tamanho microscópico, colocá-los em uma nave ultramicroscópica, injetá-la no corpo do cientista doente e fazer com que chegue ao lugar onde está o problema. Gostaria que a experiência do leitor fosse como a dessa nave abrindo espaço no fluxo sanguíneo do corpo do cientista. Quando a nave entra no sistema circulatório há de tudo, tormentas, vírus, células malignas. Na frase longa, acontece algo parecido: o leitor pode atravessar, na mesma frase, estados muito diferentes, tempos, espaços, com velocidades altas, baixas etc. Gostaria que a frase fosse como uma substância alucinógena, que pudesse fazer o leitor ir de um estado em que enxerga com total nitidez a outro, em que tudo fica opaco, sem forma. Gosto quando alguém diz “não pude parar de ler o seu livro, ainda que não entendesse nada”. Para mim, é um grande elogio. Penso nos livros como objetos musicais, no sentido de que não há necessidade de entender tudo, não é preciso encontrar sentido sempre.

Outro escritor de frases longas, Faulkner, disse que há três coisas importantes para um escritor: a experiência, a imaginação e a observação. O que acha dessas qualidades? 

Dessas, a única que me parece importante é a observação. A experiência me parece totalmente inútil. Seria preciso definir melhor “experiência”, mas acredito que a sensibilidade é muito mais importante – certa porosidade, uma capacidade de se deixar afetar. Ver a experiência, o acúmulo de diferentes tipo de experiência, como um capital, me parece uma ideia torpe, como se fosse preciso matar vinte búfalos antes de escrever um conto. Essa ideia só serve para mitificar os escritores muito vitais, como Hemingway. A imaginação é outro vício, muito latino-americano aliás, que para mim está ligado ao boom da literatura latino-americana, Garcia Márquez, realismo mágico, vacas que falam etc. Nunca participei dessa ideologia. A observação, no entanto, me parece fundamental, no sentido de ler a todo momento o que está se passando ao redor, detectar as coisas interessantes, os pontos em que algo começa a funcionar de maneira diferente. Depois, creio que o mais importante é ter um desejo louco pela linguagem. Não se pode pensar em escrever se não se tem uma relação muito particular com as palavras. Os escritores veem a linguagem como algo material, como um escultor vê a madeira, ou o bronze, e têm essa relação de desejo, de luta, de desafio.

Em História do cabelo, há um desfile de tipos de cabelo: o loiro comprido da adolescência do protagonista, o corte militar da infância, o cabelo estereotipado dos atores de novela etc. Gostaria que comentasse sobre como o cabelo conduz o romance, sobre a ideia do cabelo como elemento cultural e social.

O cabelo é um fetiche, um elemento cultural fortíssimo. Queria investigar a relação dos homens com o cabelo, que me parece uma relação mais obscura do que a das mulheres. As mulheres converteram essa relação em uma cerimônia social, se apoderaram dos salões de beleza, que são uma espécie de parlamentos femininos. Para os homens, ir ao cabeleireiro é como ir à forca, não comentamos com ninguém, falamos pouco com o cabeleireiro, não fazemos comentários, nem sequer sabemos pedir como queremos que cortem nosso cabelo. Não podemos descrever o cabelo. É muito difícil, é uma situação complicada, tensa, insatisfatória. Nos anos 70, o cabelo era realmente um problema, como tudo era um problema, um problema político. No livro, cito um filme da cineasta francesa Agnès Varda, um documentário sobre os Black Panthers. Varda está com sua câmera, entrevistando, e em algum momento fala sobre o cabelo. Os Black Panthers declaram que o cabelo, para eles, é tão importante quanto as operações políticas a que se dedicam. O cabelo – ainda que algo frívolo, como nos parece agora – era um objeto de luta cultural e política. E na Argentina, naquele momento, havia cortes burgueses e cortes revolucionários. Comprimentos burgueses e comprimentos progressistas. Se olharmos as revistas da época, vemos que a luta política passa pelo cabelo. O drama do protagonista de História do cabelo é que é loiro, tem o cabelo liso e comprido, e se dá conta de que com esse cabelo nunca vai ser revolucionário. Então, sai em busca de um corte que o converta em candidato a revolucionário, não consegue, e acaba perdendo também seu cabelo original, porque não volta a ser loiro. Torna-se um órfão de cabelo. Então, entra e sai dos salões, em busca do corte perfeito, até encontrá-lo, na tesoura de um cabeleireiro paraguaio. A partir daí, como sempre acontece quando um desejo é realizado, começa o pesadelo.

No livro, o narrador fala sobre o cabeleireiro do Elvis.

Sim, ele foi uma figura importante na vida de Elvis. Um dia, Elvis cai nas mãos deste cabeleireiro, chamado Geller, e durante o corte, conversam muito. Quando termina, Elvis sofreu uma espécie de lavagem cerebral: percebe que precisa tê-lo por perto, contrata Geller para que seja seu cabeleireiro pessoal. Geller renuncia a toda sua carteira de clientes, nomes importantes de Hollywood como Paul Newman e Steve McQueen, e passa a se dedicar apenas a Elvis. Vai com Elvis a toda parte, corte seu cabelo ou não; se converte numa espécie de guru filosófico, com quem Elvis tem uma relação de intimidade absoluta. O que me parece interessante nesta relação é a intimidade que um cabeleireiro tem com a cabeça de seu cliente. Colocar a cabeça nas mãos de alguém que muitas vezes não conhecemos, para que corte com instrumentos afiados algo que está muito próximo a centros vitais do corpo. Em certo sentido, não há nada mais íntimo. 

O livro faz parte de uma trilogia, junto com História do pranto e o ainda não finalizado História do dinheiro. Por que partir desses três elementos para falar dos anos 70 na Argentina?

Há algo em comum entre esses elementos: as lágrimas, o cabelo e o dinheiro são coisas que estamos destinados a perder. Minha ideia era escrever uma série de romances sobre os anos 70 na Argentina, porque os anos 70 na Argentina – e suponho que também no Brasil e em grande parte da América Latina – foram uma época maiúscula: a última época histórica realmente importante. Foram anos atravessados por um enorme entusiasmo político e, ao mesmo tempo, por grande horror. Então me pareceu que para abordar essa época tão maiúscula eu teria que escolher elementos minúsculos, entradas laterais, como se fosse acessar um grande edifício pela porta de serviço. O cabelo, o pranto e o dinheiro funcionam, nos livros, como fósseis de um período. Trabalhei como um arqueólogo que começa a escavar e de repente encontra um punhado de lágrimas, uma mecha de cabelo, um maço de notas, e se propõe a reconstruir uma civilização em que esses elementos faziam sentido. O herói dos romances, que é de certa forma o mesmo personagem, é uma espécie de louco, um alucinado que lê toda uma época a partir desses elementos. A obsessão dele é sua enfermidade, sua maneira de se relacionar com o mundo. E o mundo é o mundo dos anos 70 na Argentina.

Mais do que a memória, o que parece lhe interessar nestes livros é justamente a ideia de perda, de esquecimento. No seu livro sobre Borges, El factor Borges, você diz que perder não é uma fatalidade, e sim uma construção. Como isso acontece? 

Quando se perde algo, algo começa. A perda é o início de alguma coisa, sempre. Quando damos conta de que algo se perdeu, começamos a imaginar, alucinar, recordar. Quando tinha 25 anos, Borges escreve sobre Buenos Aires, sobre uma Buenos Aires que não existia mais, mas como se fosse a Buenos Aires de sua época. Tudo sobre o que Borges escreve no presente, de maneira muito nítida e precisa, tudo isso havia morrido há mais de trinta, quarenta anos – o que me faz pensar nas relações entre perder e imaginar. É preciso que se passe um certo tempo entre o acontecimento e o momento em que se escreve. Isso tem a ver com a ideia de que para contar (e imaginar e recordar) é sempre necessário que algo tenha desaparecido. Porque se algo está aí, se algo interessante está aí, podemos simplesmente contemplar, ou travar algum tipo de contato, ou deixar-se levar. Por outro lado, a experiência da perda, por mais traumática que possa ser, por mais dolorosa, sempre nos obriga a algum tipo de trabalho imaginativo, para tapar o buraco, para recordar, para modificar, transformar o que se perdeu.

No início de História do cabelo, o protagonista, que é tradutor, traduz Sonho de uma noite de verão para uma companhia de teatro. Ele diz que a experiência no teatro o obriga a “submeter seu trabalho à opinião, às ideias, ao gosto dos outros”. Como foi atuar no filme de Santiago Palavecino, La vida nueva? Consegue ver alguma relação entre o trabalho do ator e a escrita?

Atuar foi um alívio, um enorme alívio. Quando um autor escreve, ele está só e, sobretudo, é responsável por cada uma das palavras que escreve. Como ator, eu não tinha que ser autor de nada. Era apenas um ventríloquo, um boneco, e descobri que ser títere é melhor do que ser o titereiro. Foi uma experiência de confiança. Em vez de só confiar em mim, que é o que acontece quando escrevo, para atuar é preciso confiar no outro. Tinha que confiar que o diretor não estava louco e confiar no que ele me dizia. Porque eu não sou ator, não quero ser ator, sou um ator ruim, não entendo nada de atuação. Se o diretor acreditava que eu podia atuar, eu podia atuar; se os outros atores me tratavam como um ator, eu devia ser um ator. Eu estava totalmente definido pelos outros. Pensei que isso ia me complicar a vida, porque eu iria resistir, dizendo “não, não sou ator”, “não, não posso fazer”, mas encontrei ali um relaxamento incrível. Estava num estado zen, muito estranho. E sempre tive interesse pelo cinema, fui crítico de cinema e roteirista. Eu ia às filmagens e achava que aquilo tinha um clima de quartel, como se fosse um pequeno exército. Uma comunidade em que as pessoas se adoram, se odeiam, mas vivem juntas, sobretudo quando se filma fora das cidades. A verdadeira ficção do cinema está nessa experiência de todos estarem juntos, envolvidos em um projeto que, na verdade, é ameaçado por todos os lados. No cinema, tudo é ameaçado o tempo todo. Ou o produtor fugiu com o dinheiro, ou o ator se apaixonou pela atriz, ou faz sol quando deveria chover, ou o microfone quebrou. Tudo está sempre sob ameaça.

E para o escritor, quais são as ameaças?

A ameaça máxima é o tédio. O tédio de quando a relação com o texto não produz nenhum tipo de excitação. Não é algo que acontece necessariamente quando as coisas vão mal. Às vezes, tudo vai mal e é muito excitante. Às vezes, tudo corre bem e não funciona. Esse para mim é um ponto perigoso. Tem a ver com a ideia de ofício: não creio que escrever seja um ofício. O escritor adquire uma destreza que faz com que escrever seja apenas resolver tecnicamente os problemas. Escrever não pode ser isso nunca.

Como é o seu ritmo de trabalho? 

Eu me forço a sentar e escrever. O problema de escrever não é escrever, é sentar para escrever. Para mim, não deveria ser preciso sentar, deveríamos escrever em pé. Hemingway escrevia em pé. Uma vez que me ponho a escrever, não há nada mais agradável e prazeroso, inclusive quando as coisas vão mal. Mas sentar-se para escrever é sempre difícil. Como passar da vida real a esse estado estranho, meio autista, que é escrever. A única rotina que tenho é me obrigar a escrever. E se as coisas não vão bem e não posso escrever, ou não está saindo, faço algo que tenha a ver com o que estou escrevendo. Tomar notas, ou corrigir, ou fazer um pequeno plano para os próximos passos; orbitar, dar voltas ao redor daquilo em que estou trabalhando. Preciso de certa solidão, é difícil para mim escrever quando há alguém andando pela casa. Também não consigo escrever em lugares muito bonitos. Sou monástico, gosto de paredes brancas, não gosto de paisagens espetaculares para escrever, porque tudo me distrai.

A internet te distrai? 

Não, porque felizmente sou velho. Não sou antitecnologia, tenho meu computador, meu iPod, mas vou até aí. Odeio celular. Detesto. Aderiria facilmente a um partido político cujo programa fosse contra o celular.

Falávamos sobre quem cresceu nos anos 70, 80, sobre os programas de TV, as novelas, seriados, música pop, videogame. Isso tem algum impacto na sua literatura? 

Não me parece possível que, hoje, um escritor consiga escrever somente a partir da relação que tem com a chamada alta cultura. Se fosse possível, seria quase como um experimento, como os experimentos com as crianças selvagens, que são criadas na selva por lobos ou, sei lá, tucanos. Todavia, estamos acostumados a nos relacionar com um tipo específico de cultura de massa, a que alguém mais ou menos sofisticado elege, como uma atitude sofisticada. Quando temos dez, onze, doze anos é diferente. Não temos nenhum critério artístico nem intelectual para escolher nada e somos invadidos, seduzidos e abusados por uma cultura imunda, muito barata. Hoje, Roberto Carlos se transformou em algo chique. Mas nos anos 60, era muito baixo, pelo menos na Argentina. No entanto, para mim, criança, Roberto Carlos era como um deus, sobretudo quando cantava em espanhol. Todos os cantores estrangeiros desse tipo que iam a Buenos Aires cantavam em espanhol, um espanhol péssimo. Mas para mim aquilo era sexy, irresistível. Só fui me dar conta de que havia sido esculpido por essa cultura depois dos trinta anos. Durante vinte anos, entre os dez e os trinta, vivi lutando contra isso, reprimindo. Isso é algo que me interessa: os péssimos artistas que nos enganam quando somos criança. Nos anos 90, era muito comum nos Estados Unidos a síndrome da memória reprimida, gente que de repente lembrava que havia sido abusado quando criança, e isso se tornou um problema médico muito complexo. Para mim, há algo disso, uma espécie de abuso, que passa pela cultura. E que vamos carregar conosco, sempre.
 .