quinta-feira, 8 de setembro de 2011

história do cabelo

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Passei o último mês cercado por 1) expressões do tipo: "selva de cabelo", "juba de eletrocutado", "molotov capilar"; 2) produtos como o: Regenerador de Cabelo com Baba de Caracol; 3) salões de nome majestoso, com destaque para: Stilo Stella, Coca Peinados, Voilà, Vivian de Lyon; 4) e toneladas de: tintura, escova, pente, gel, gomalina, rede, bobe, grampos, alisamento quente, xampu, loção, tesoura, implante, peruca e água oxigenada. Tudo graças a um romance que editei, li e reli, História do cabelo, do argentino Alan Pauls. É a SAGA de um sujeito obcecado por cabelo. Enquanto entra e sai dos salões — em busca do seu Santo Graal: o corte perfeito —, tudo a sua volta passa pelo cabelo; desde a infância, namoradas, amigos, seu casamento, tudo. 

Gosto das frases longas, o narrador em terceira pessoa, distanciado, mas ao mesmo tempo tão próximo deste protagonista que vaga feito um fantasma por Buenos Aires, refém de seu "probleminha", a obsessão com as coisas do cabelo. E gosto especialmente quando Celso, o genial cabeleireiro paraguaio, entra em cena. Celso corta o cabelo do protagonista, que segue desconfiado: "É a lei pérfida mas fatal do corte, que — como toda droga — põe em primeiro plano um de seus efeitos, o efeito imediato, 'bom', e faz com que passe despercebido o outro, o efeito tempo, que previsivelmente nunca traz senão deterioração, tristeza, decadência." Mas, ao se despedir do cliente, Celso diz: "Nos vemos em um mês". E isso tem um efeito de laquê no cérebro do protagonista de Pauls: 

"Dez minutos mais tarde, enquanto atravessa a cidade como se estivesse sedado, com as pálpebras pesadas, ele se toca: é a primeira vez que um cabeleireiro lhe revela o horizonte de vida de um corte. Nenhum corte é eterno. Celso, pensa, é o primeiro que corta no tempo, ao contrário dos outros, que apostam tudo no ato de cortar e ficam cegos perante a única coisa que não deveriam perder de vista: a vida do corte, esse futuro sem o qual não é nada. [...] Quarenta e oito horas mais tarde, intervalo mais do que suficiente para que o trabalho que lhe fizeram mostre a que veio, se é que veio, e o decepcione de uma vez, o corte não só continua vivo e viçoso como melhora. [...] Celso é um gênio. O tempo, o travesseiro, o despertar, a ducha, a toalha, a oleosidade, a luz, os espelhos, o cabelo dos outros, o vento, a vida no mundo: não há prova que o corte não tenha superado, e superou todas elas sem o menor esforço, com uma folga aristocrática". 

Abaixo, mais um trecho e a maior capa de todos os tempos.
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“[...] ter cabelo é uma condenação porque é ter a possibilidade de perdê-lo, é uma condenação atroz porque, assim que descobre que pode perdê-lo, quem tem cabelo sabe que deixou de ser inocente, sabe que daí até a sua morte, na melhor das hipóteses, ou até que seu cabelo comece a cair, na pior, está fadado a um calvário perfeitamente estéril: conjurar o perigo cuidando do cabelo. E isso não é nada. Porque a essa atrocidade perpétua se soma outra: também a evidência de que ter cabelo é ter de cortá-lo, e que cortá-lo é exatamente o contrário de perdê-lo, porque só se perde o cabelo uma vez e para sempre, de maneira defnitiva, como se fica de cabelos brancos da noite para o dia em decorrência de um trauma ou de um golpe de terror, ao passo que um corte é apenas o ponto de partida de uma série, a primeira de um infinito rastilho de repetições, porque se cada corte é único, fruto de um conjunto complexo de variáveis, o estado em que o cabelo chega ao corte, o pedido exato de quem vai cortá-lo, o cabeleireiro a quem se confia seu cabelo, o ponto em que está nesse momento a técnica do ofício de cabeleireiro, as ferramentas utilizadas no corte, o nível de estresse ou de calma que impera no salão no momento do corte – todos se parecem, todos são de algum modo um único, um mesmo corte e ninguém, nunca, dá nem dará a quem corta o cabelo o que ele realmente quer. Não é o mal nem o bem; é o fantasma, a besta negra, o demônio da irregularidade que se apossa de seu corpo. Aprende basicamente que não há cabeleireiro que corte duas vezes do mesmo jeito. No seu caso, ou porque não consegue pedir o que quer duas vezes da mesma forma, ou porque o cabeleireiro nunca entende o pedido do mesmo jeito ou porque – mesmo que o corte seja o mesmo, o cabelo, flagrado em determinada fase de crescimento, diferente, quase com certeza, em minutos, horas ou dias da fase em que foi cortado pela última vez – acaba por interpretá-lo e modulá-lo de maneira diferente, quase sempre desviando-o de seu sentido original. Aprende a dor da insatisfação, esse misto tortuoso de tédio, fome e insônia que leva muitos dos que chafurdam com ele naquela época a botar uma arma na cintura, a se infiltrar no vestiário de um clube para roubar carteiras e porta-documentos alheios ou aproveitar a casa de uma avó permissiva para desdobrar mapas de unidades militares sobre as toalhas de macramê. A insatisfação: que não cortem bem o seu cabelo, que cortem bem mas que o efeito só dure alguns dias, que aquele corte fantástico que ilustra a foto da revista que ele leva como modelo não se afine com o seu cabelo, ou não combine com o seu rosto, ou se afine e combine mas o transforme numa estúpida cara de foto de revista.”

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