segunda-feira, 4 de julho de 2011

suéter vermelho vivo, calça rasgada na coxa

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"[...] Eu próprio, até essa data, passara anos sem usar terno, apresentando-me até então sempre de calça e suéter; mesmo ao teatro, quando ia, ia apenas de calça e suéter, de preferência uma calça cinza de lã e um suéter vermelho vivo de lã de ovelha, tricotado com pontos grossos, que um americano bem-humorado me dera de presente logo depois da guerra. Nesses trajes, lembro-me bem, viajei algumas vezes para Veneza e fui ao célebre Teatro La Fenice, numa dessas ocasiões a uma encenação do Tancredi de Monteverdi dirigida por Vittorio Gui, mas estive também com a mesma calça e o mesmo suéter em Roma, Palermo, Taormina, Florença e em quase todas as capitais europeias, à parte o fato de que essas eram as peças de roupa que quase sempre usava em casa também, e quanto mais gastos a calça e o suéter, mais eu gostava de vesti-los, durante anos a fio as pessoas me conheceram naquela calça e naquele suéter, e ainda hoje os amigos antigos me perguntam pela calça e pelo suéter, os mesmos que uso há mais de vinte e cinco anos."

Thomas Bernhard, "O prêmio Grillparzer", trecho de Meus prêmios, 2010

"Queridas calças, agora /rasgadas nas coxas /(dois rasgos horizontais /do uso intenso) /creio não mais precisar /de seus serviços, portanto /as aposento e agradeço. /Mas não sem antes cantar /a alegria que foi andar /por vocês vestida /e a sorte de não precisar /usar vestidos. /Com vocês passeei /por Lisboa, Madri e /Paris; sentei /nos jardins do palácio /em Fontainebleau. /O tecido macio /e generoso, que suportou /meu aumento de peso, /esgarçou pouco /no início, mas só /em dois anos cedeu. /O corte me permitiu /fazer poses de balé /nos jardins do palácio. /A cor, entre o verde /e o marrom, /disfarçava sujeiras. /Nos seus bolsos /guardei poemas, /recibos de supermercado, /tickets do metrô. /Perfeitas para /pernas e passeios, /descansem. /Tive outras calças, /mas vocês foram /as preferidas.

Angélica Freitas, "Para as minhas calças", 2009
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