quinta-feira, 28 de outubro de 2010

ela me odeia, ultimamente

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Quatro mulheres do Uma mulher, do Péter Esterházy
(tradução do Paulo Schiller)
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"Há uma mulher. Eu a amo. Ela é do tamanho de um armário. De um prédio. De uma montanha. De um búfalo. Se me desse um tapa eu voaria pela janela, mas por que ela faria isso? Decide coisas o tempo todo, telefona, providencia, manda faxes, funda empresas, ou coisa parecida, e tem também algo a ver com os impostos sobre a circulação de mercadorias. Sua cama é a cabine de comando de onde ela dá as ordens. Não usa calcinha. Telefona deitada de barriga, sobe uma das coxas, com isso a saia desliza para cima, e nessas horas aparece a sombra escura. Sombra, é como a chamo. Quando estou bem-humorado, eu grito: é pela sombra que se respeita a velha árvore! Por exemplo, digo: É aqui que você se esconde, sombra? Ou que enquanto o homem projetar sombras sempre haverá desgraças! A visão me faz sonhar. Ela aperta o telefone com a cabeça contra o ombro para que as mãos fiquem livres, mulher de negócios experiente.

Tem o raciocínio rápido, é loira, me ama. Pergunta se eu a amo; enquanto isso, naturalmente, toma notas. O que posso responder. Hein, carinha? Seu vocabulário lembra o de um hooligan dos anos 60. Eu te desejo, respondo, constrangido. Olha para mim como quem não entende o que eu disse. Meu pau levanta, explico. Ela se põe numa posição visivelmente expectante. Enquanto você telefona, e na verdade você telefona quase o tempo todo, eu te desejo. Está tudo certo no registro de imóveis?, resmunga no bocal, e para mim faz um gesto para que eu venha, vamos, “me pega”. Além disso, também gosto de conversar com você. Mais, mais. As duas coisas já bastam, não? Desejar e conversar, isso já seria o famoso eu te amo, não? Faz um gesto delicado como um armário na minha direção, e enquanto eu saio pela janela – vejo que vou despencar justamente sobre um congestionamento de trânsito, imagino a situação desagradável – ainda a ouço convencendo alguém a tomar um empréstimo."
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"Há uma mulher. Ela me ama. Ela me tranquiliza o tempo todo, acredite, diz, a título de exemplo, eu não te odeio nem um pouco. E, sufocando de emoção, acrescenta: agora vou andar de bicicleta para arejar a cabeça. Como se isso me dissesse respeito. Ou ela me acalma dizendo que não está grávida. Ou melhor, está no sexto mês, veja a barriguinha, mas não se preocupe, ela assume tudo, e, na verdade, com certeza vai ser um menino. Garantido, e me bate nas costas. Quer tudo na hora. Como se a vida, a vida dela, fosse um filme acelerado. Mal tínhamos ido para a cama e ela já se angustiava com a educação da futura criança. As línguas, o mais importante são as línguas, mas não se preocupe, eu resolvo, Instituto Goethe. Com isso tudo ela não deixa de ser atenciosa quando vê que me deprime muito, diz, levante a cabeça, não sou o único homem na vida dela (para diminuir a minha responsabilidade). E eu, estando ou não preocupado, de fato me tranquilizo. Na verdade, quando um dia eu descobrir por que ela tem pressa, por que atropela tudo, por que também me empurra para frente, para uma dieta vegetariana, vai ser tarde demais."
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"Há uma mulher. Ela me odeia, ultimamente. Porque ultimamente ando atormentado por problemas financeiros, deve estar acontecendo alguma coisa com o tal do PIB ou com o preço do leite. Mas ela não precisa se angustiar, eu vou sustentá-la, só que a boa vida vai acabar, azeite italiano e pão com sementes de gergelim, não vai ser mais assim. Como vai ser? Atualmente ficamos nos perguntando como vai ser. Como um homem pode sustentar uma mulher. Com uma quantia mensal? Uma quantia assim chamada justa, cuidadosamente calculada, uma quantia negociada em florins? E o que vai ser se durante a semana eu lhe der um chute? Problema seu. E seu. De fato. Dar todos os dias ou a cada encontro? Só que desse jeito só falaríamos de dinheiro, todos os dias. Desde que rejeitamos a ideia de eu sustentá-la em segredo – um doador anônimo, cédulas discretamente largadas sobre a penteadeira etc. – chegamos a um acordo em que, ao contrário, ela vai ao lugar previamente estabelecido (bolso interno do paletó, aba do chapéu e assim por diante) em segredo para pegar a quantia combinada. Por conta do segredo o dinheiro não vai ser mais tema, mas pelo fato dela pegá-lo também não será como se não tivesse acontecido nada. E posso pegar quanto eu quiser?

Exatamente, digo, por fim, mortalmente sério."
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"Há uma mulher. E assim por diante. Odeia todo mundo. Se estiver no clima, é má. Não transmite recados; inventa recados falsos, faz intrigas com as crianças; com os meus pais; com os dela; com os vizinhos, entre eles, todos contra todos, eles contra nós. Seus recursos são ilimitados, às vezes desiste da arma mais eficaz, o disfarce. É sincera, não usa máscara, é permanentemente nojenta. Sente-se mal quando não faz mal. Salga a comida de propósito; enfia passagens vencidas em meio aos passes de ônibus das crianças; não desliga o telefone e denuncia o dono da linha compartilhada, estende uma corda no quarto e quando a minha mãe tropeça, põe a culpa em mim; atrasa os despertadores de noite, para que de manhã todos percam a hora; nega os orgasmos, sem piscar os olhos, embora esteja babando até; em segredo modifica a minha declaração de renda, e me adverte com uma carta anônima. Esse ímpeto, ânsia de realização, prontidão permanente para o mal (maldade), o desejo ardente de prejudicar o tempo todo, de lesar, é como uma maravilha da natureza. Podem existir outros assim, entregues a uma relação passional com a vida. Para estragar a vida – com uma exceção. De tempos em tempos, ela escolhe um livro que lhe agrada na minha biblioteca e cola uma a uma as páginas (ou melhor, aos pares). Quando depois pego um Borges, para reler o conto “Pierre Ménard, autor do Quixote”, tenho o livro nas mãos como um tijolo desajeitado, um enigma secreto, como um escudo vazio, e não sou mais ninguém, ou, mais exatamente, não seria mais ninguém se nessa hora, como sempre, ela não me odiasse intensamente."
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