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Texto do mês para o Outlook, do Fred Melo Paiva. Sobre figurinha.
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Desde a última semana, quando o roubo de figurinhas da Copa (135 mil pacotes; 675 mil cromos) substituiu o assalto a banco, o dinheiro como conhecemos perdeu a graça. O beija-flor, a onça-pintada e o mico-leão-dourado (notas de cem, cinquenta e vinte reais, respectivamente) deram lugar a expressões faciais como a do norte-coreano Mun In-Guk (feliz) e do sul-africano Siphiwe Tshabalala (aflito), ao corte de cabelo de Charles Puyol e ao Ronaldinho Gaúcho.
Os cromos circulam, se desvalorizam, se entesouram; há inflação, há escassez. Na feira, o maço de brócolis já custa dois atletas de Honduras. O quilo do feijão, no supermercado, não sai por menos que um escudo australiano. As promoções anunciam televisores por dez cromos de meio-campistas de Gana. Há, no fim do mês, as contas a pagar: de luz (“Lionel Messi”), água (“mascote e estádio Nelson Mandela”), telefone, internet e tevê a cabo (“por mais cinco chilenos e duas brilhantes, você leva o pacote premium, senhor”). E muitos dependem do salário mínimo, que terá reajuste de Gilberto Silva, para desespero geral.
Se na Copa de 2006, meu amigo Antonio quase chorou sangue quando, num churrasco da família, um garoto se aproximou de seu escudo brilhante do Togo com as mãos sujas de sanduíche de linguiça vazando vinagrete, a situação agora ganha contornos ainda mais dramáticos. O sucesso das figurinhas da Copa (espera-se que até agosto 150 milhões de envelopes sejam vendidos) fez com que elas deixassem de ser apenas mania, para se tornarem a gloriosa moeda de um país. Basta olhar a sua volta – ou, claro, no próprio bolso.
Há, naturalmente, os obcecados pela usura. Sob elásticos equivalentes a caixas-fortes, senhas e contas na Suíça, se amontoam pilhas e pilhas de cromos autocolantes. Entre os usurários, existe aquele que se aproveita do poder (cinquenta Julio Cesar repetidos) para fazer amigos e sentir-se querido e admirado; o que não aceita que ninguém o ultrapasse na quantidade de escudos brilhantes; o que não se desfaz, em hipótese alguma, de sua coleção de Samuel Eto’o.
Do outro lado, no time dos que esbanjam, é conhecida a história de que James Joyce estabelecia uma conexão entre sua escrita e o desperdício de dinheiro (cromos). Famoso por distribuir generosas gorjetas (mesmo quando estava na pior), Joyce costumava dizer, frente às críticas da esposa, que o fluxo de dinheiro estava secretamente ligado a sua criatividade. E há a especulação, os empréstimos, o crédito, o lucro.
O jogo de bafo, prática outrora comum entre crianças, foi proibido, mas sobrevive na clandestinidade. Nas ruas em que piscam letreiros de peep show, segunda porta à esquerda, desce escada, fim do corredor, parede falsa: o jogo de bafo movimenta milhões de cromos. Isso sem falar nas operações de lavagem de figurinhas, figurinha na meia, na cueca.
Na nossa nova realidade monetária, a dos cromos autocolantes, é preciso investigar nossas relações com escudos reluzentes, David Beckham repetidos e a produtividade (geradora de figurinhas). Só assim poderemos nos posicionar diante de tal lógica econômica.
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