terça-feira, 6 de janeiro de 2009

as montanhas tirolesas me afligem

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"Mesmo permanecendo uma única noite em Chur, um homem pode se arruinar para a vida toda." Ou então: "A viagem de Viena a Linz não passa de uma viagem pelo mau gosto. E de Linz a Salzburgo a situação não é melhor. Além disso, as montanhas tirolesas me afligem." Daria pra colecionar as passagens, de um mau humor muito querido tipo Bernard Shaw ("se mais de 10% da população gostar de um quadro, ele deveria ser queimado. Deve ser muito ruim"), em que o narrador d'O náufrago esmaga e pisoteia a Áustria, a Suíça & tudo que se move por ali, onde o "ar é irrespirável" e "as pessoas insuportáveis". O náufrago, do holandês/austríaco Thomas Bernhard, é a história de dois pianistas que desistem, cada um a sua maneira, de se tornarem virtuoses do piano. Um deles, o narrador, doa seu Steinway e muda-se para Madri, porque, entre outras coisas, chega à conclusão de que não quer passar a vida inteira precisando comprovar seu valor perante um público idiota e que "ser concertista é uma das coisas mais horríveis que se pode imaginar, tocar piano diante de um público é horrível". O outro, Wertheimer, se vê paralisado diante da genialidade de um terceiro pianista, o fabuloso Glenn Gould, um dos principais pianistas do século vinte. Os três se conhecem em um curso do Mozarteum de Salzburgo, durante o pós-guerra. Wertheimer é golpeado mortalmente quando escuta os primeiros acordes das Variações Goldberg, de Bach, tocada por Gould. Esta é a tese do narrador. "Estudamos por uma década inteira um instrumento que escolhemos e então, depois dessa década mais ou menos deprimente e de muito empenho, ouvimos dois ou três compassos de um gênio e estamos acabados". Anos depois, Wertheimer acaba se suicidando, e o narrador vai relacionar o suicídio do amigo ao dia em que, em uma das salas do Mozarteum, Wertheimer foi aniquilado ao ouvir pela primeira vez as Variações Goldberg e perceber que jamais poderia equiparar-se ao gênio Glenn Gould. Não tem muito a ver, mas quando o narrador doa o seu piano à filha de um professor do interior, "um homem bastante primitivo, casado com uma mulher ainda mais primitiva", pensei no meu pai. (Na década de 60, quando abandonou a filosofia -- a Usp ainda na Maria Antonia, todos mortos, lendo Kant -- meu pai doou uma parte da sua biblioteca e deixou a outra parte, uma montanha tirolesa de livros, em um casarão velho que havia comprado perto da serra da Cantareira, onde ninguém da nossa família nunca morou. Até que os livros mofaram, ficaram imprestáveis.) O Steinway do narrador d'O náufrago ficou imprestável: em pouquíssimo tempo, a filha do professor arruinou o piano — "um dos melhores, mais raros, mais procurados e, portanto, mais caros pianos". "Mas o que eu desejara", fala, "havia sido precisamente esse processo de destruição do meu adorado piano." Talvez esteja nisso, nesse dispêndio, uma das principais diferenças entre o narrador e Wertheimer, os dois desistentes. "Hoje ninguém sabe que um dia estudei piano, que freqüentei uma escola superior de música e concluí meu curso, que assim como Wertheimer fui de fato um dos melhores pianistas da Áustria. (...) Eu sempre extraí forças desse ocultamento, que a Wertheimer, no entanto, sempre aborreceu e abateu", diz o narrador. "Eu era muito melhor do que a maioria dos outros estudantes da academia e de um momento para outro parei; isso me fez forte, mais forte do que aqueles que não pararam e que não eram melhores do que eu, que encontraram no diletantismo um refúgio perpétuo, autodenominando-se professores e se deixando cobrir de distinções e condecorações. Todos esses idiotas musicais que concluíram os estudos nas academias e se puseram a atuar como concertistas." O narrador, em uma das passagens mais bonitas do livro, fala de como Wertheimer sempre quis ser Glenn Gould, de como Wertheimer fracassou e naufragou justamente porque julgou-se aniquilado diante da genialidade de Gould, diante de um outro que parecia sempre melhor do que ele. "Ao contrário de Wertheimer, que com certeza teria gostado de ser Glenn Gould, eu jamais quis ser Glenn Gould, sempre quis ser somente eu mesmo; Wertheimer, porém, sempre esteve entre aqueles que a vida toda, até o desespero prolongado, querem ser outra pessoa, mais favorecida pela vida, como querem acreditar. Ele teria gostado de ser Glenn Gould, é provável que também tivesse gostado de ser Gustav Mahler ou Alban Berg. Não era capaz de ver a si próprio como uma pessoa única, como todos fazem e precisam fazer, se não querem para si o desespero; seja a pessoa quem for, ela é única, vivo dizendo a mim mesmo, o que me salva. Wertheimer jamais foi capaz de levar em conta essa âncora salvadora, ou seja, contemplar a si próprio como alguém único; para tanto lhe faltavam todos os requisitos. Todo homem é único e, contemplado em sua individualidade, ele é com efeito a maior obra de arte de todos os tempos — sempre pensei assim, sempre pude fazê-lo. Wertheimer não teve essa possibilidade, por isso sempre quis ser Glenn Gould ou, como disse, Gustav Mahler, Mozart e companhia. Isso o mergulhou desde cedo, e de forma constante, na infelicidade. Não precisamos ser gênios para sermos únicos e reconhecer o que somos. Wertheimer era um competidor incansável; emulava todos quantos julgasse estarem em melhor condição do que ele; embora não dispusesse dos requisitos necessários, como percebo agora, quis de todo modo ser artista e com isso tomou o rumo da catástrofe. Daí, aliás, seu desassossego, seu constante e insistente caminhar, correr, sua incapacidade de ficar em paz."
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