sábado, 20 de setembro de 2008

tomado de furores abstratos

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"Eu, naquele inverno, estava tomado de furores abstratos. Não direi quais, não é isso que me proponho a contar. Mas é preciso dizer que eram abstratos, nada heróicos, nem vivos; de qualquer maneira, furores pelo gênero humano perdido. Vinha assim há muito tempo, e andava cabisbaixo. Via manchetes nos jornais sensacionalistas e abaixava a cabeça; estava com os amigos, uma hora, duas horas, e ficava com eles sem abrir a boca; abaixava a cabeça; e tinha uma moça ou uma mulher que me esperava, mas nem com ela eu trocava uma palavra, mesmo com ela eu abaixava a cabeça. Chovia o tempo todo, passavam-se os dias, os meses, e eu tinha os sapatos furados, a água me entrando nos sapatos, e não era mais nada que isso: chuva, carnificinas nas manchetes dos jornais, e água nos meus sapatos furados, amigos mudos, a vida em mim como um sonho surdo, e não-esperança, calmaria. Isso era terrível: a calmaria na não-esperança. Dar o gênero humano como perdido e não ter vontade de fazer coisa alguma quanto a isso, nem vontade de me perder, por exemplo, com ele. Eu estava perturbado por furores abstratos, não no sangue, e ficava quieto, sem vontade de nada. Não importava que minha namorada estivesse me esperando, estar com ela ou não, ou folhear o dicionário, era para mim a mesma coisa; e sair para ver os amigos, ou ficar em casa, era o mesmo para mim. Estava quieto; como se nunca tivesse tido um dia de vida, nem jamais soubesse o que é ser feliz, como se nada tivesse a dizer, a afirmar, a negar, nada de meu para pôr em jogo, nada a escutar, a dar, e nenhuma disposição de ganhar, como se em todos os anos de minha vida nunca tivesse comido pão, bebido vinho, ou tomado café, nunca tivesse estado na cama com uma mulher, nunca tivesse tido filhos, nunca tivesse brigado a socos com alguém, ou não achasse tudo isso possível, como se eu nunca tivesse tido uma infância na Sicília, entre os figos-da-índia e o enxofre das minas, nas montanhas; mas, dentro de mim, eu me agitava com os furores abstratos, e pensava sobre o gênero humano perdido, abaixava a cabeça, e chovia, não dizia uma só palavra aos amigos, e a água me entrava nos sapatos."

(Elio Vittorini; Conversa na Sicília)
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