terça-feira, 22 de dezembro de 2020

deve ser suficiente

"Quando Baal Schem, fundador do hassidismo, tinha uma tarefa difícil pela frente, ia a certo lugar no bosque, acendia um fogo, fazia uma prece, e o que ele queria se realizava. Quando, uma geração depois, o Maguid de Mesritsch viu-se diante do mesmo problema, foi ao mesmo lugar do bosque e disse: 'Já não sabemos acender o fogo, mas podemos proferir as preces', e tudo aconteceu segundo seus desejos. Passada mais uma geração, o Rabi Moshe Leib de Sassov viu-se na mesma situação, foi ao bosque e disse: 'Já não sabemos acender o fogo, nem sabemos as preces, mas conhecemos o local no bosque, e isso deve ser suficiente'; e, de fato, foi suficiente. 

Mas, passada outra geração, o Rabi Israel de Rijn, precisando enfrentar a mesma dificuldade, ficou em seu palácio, sentado em sua poltrona dourada, e disse: 'Já não sabemos acender o fogo, não somos capazes de declamar as preces, nem conhecemos o local do bosque, mas podemos narrar a história de tudo isso'. E, mais uma vez, isso foi suficiente." 

O fogo e o relato, Giorgio Agamben, 2014
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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

suécia & uk

Sobre o Sebastopol, no site do Brazilian Publishers:

The year of 2020 has been a great year for Emilio Fraia so far. After having the rights of his book Sebastopol sold for an adaptation to the big screen, the Brazilian writer now has his work arriving on the shelves of Swedish bookshops. The title is being released in that country by Tranan, a traditional publisher. The company has already published books by writers like Clarice Lispector, Jorge Luis Borges, and Roberto Bolaño. In Brazil, Sebastopol was published by the imprint Alfaguara, owned by Companhia das Letras, a member of Brazilian Publishers — an industry project fostering the exports of Brazilian editorial content by means of a partnership between the Brazilian Book Chamber and the Brazilian Trade and Investment Promotion Agency (Apex-Brasil). 

The book is also being translated into English, and in 2021 it will be released by American publisher New Directions. Sebastopol is divided into three short stories that work independently but are subtly connected to one another somehow. “The seed of what became one of such stories was sowed back in 2012, in a short story selected and published in Granta magazine”, said the author in an interview to the Brazilian Publishers website. That issue of the British magazine chose the best Brazilian writers under 40 years old, and one of them was Emilio Fraia. 

In the first story, a female climber decides to climb the Everest and suffers an accident that changes her life forever. Years later, she finds a video in which an artist (her ex-boyfriend) seems to be narrating her story. In the second story, set in the Midwest region of Brazil, a man goes to an abandoned inn and then vanishes. The reader slowly discovers the history of that man. In the third and last story, a young woman, together with an old theater director, writes about a Russian painter who has never finished one of his most famous paintings. The artist lived during the Siege of Sevastopol (1854-1855), the main battle during the Crimean War, which involved some Western powerful countries against the Tsarist Russia in the 19th Century. 

Sebastopol was one of the winners of the Brazilian National Library Award (3rd place) and shortlisted for the Jabuti and Oceanos Awards. Last year, one of its three stories was also published in the December issue of The New Yorker magazine. 

Emilio is one of the 30 artists selected for the residency program of the Civitella Ranieri Foundation, located in a castle in the Umbria region, in Italy. The writer was chosen among 165 candidates. 

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Sebastopol (Sevastopol, 2018), Emilio Fraia’s successful book, is taking over the world. After he has signed contracts to have his work released in Sweden and the United States, where translations are being produced, the Brazilian writer is having the title published in the United Kingdom, too. 

According to Emilio, independent publisher Lolli Editions has shown interest in the story and decided to take it to the UK bookshops. The company had the first contact with his work by means of the anthology “Tools for Extinction”, to which he wrote a short story. “The publisher in charge of the anthology, Denise Rose Hansen, selected writers I admire a lot. It was an honor to me to be part of it. The idea was to try to reflect, in the heat of the moment, on the world of uncertainties, fear and social distancing we began to live in”, explains Fraia. 

Excited about the opportunity, Emilio says Lolli is a publishing house that is “strongly connected with the world of arts”, and although it is an independent company, it has a good space reserved in the bookshops at the Barbican Centre, in London. “Lolli editions are beautiful and I am really thrilled with the release”, adds the author. 

The date for the release of Sebastopol in the UK has not been set yet, but it is expected to be published by 2021. 

Sebastopol includes three short stories that work independently but are subtly connected to one another somehow. In the first story, a female climber decides to climb the Everest and suffers an accident that changes her life forever. Years later, she finds a video in which an artist (her ex-boyfriend) seems to be narrating her story. 

In the second story, set in the Midwest region of Brazil, a man goes to an abandoned inn and then vanishes. The reader slowly discovers the history of that man. In the third and last story, a young woman, together with an old theater director, writes about a Russian painter who has never finished one of his most famous paintings. 

Sebastopol was one of the winners of the Brazilian National Library Award (3rd place) and shortlisted for the Jabuti and Oceanos Awards. Last year, one of its three stories was also published in the December issue of The New Yorker magazine. 

Besides being published abroad, Emilio Fraia was also selected for the Shanghai Writing Program, a literature residency program created in 2008 in China. “I am glad that I’m going to have the chance of writing in a country that has a very unique culture”, he completes.
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quinta-feira, 9 de julho de 2020

em que montanha azul a nossa meta?

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"Estuários freqüentes
Desviam nossas velas.
E de que lado, onde
Uma visão mais bela
Se o único prazer
É ter o mar, o vento
E naufrágios além
E descobertas
E permanências veladas...
Muita ausência...
Em que montanha azul a nossa meta?"

Hilda Hilst, "Ode Fragmentária", Exercícios, 2002
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segunda-feira, 29 de junho de 2020

é difícil falar de si

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Sobre Natalia Ginzburg e o lançamento de Todos os nossos ontens pela TAG Livros, entrevista para a Fernanda Grabauska.


No prefácio à edição da Companhia das Letras de Léxico familiar, Alejandro Zambra enumera uma série de razões para ler Natalia Ginzburg. Uma delas é que seus relatos são tão inspiradores que, ao terminar o livro, o leitor tem vontade de escrever o seu próprio relato como forma de agradecimento. E você, por que acha que se deve ler Natalia Ginzburg?

Em livros como Todos os nossos ontens e Léxico familiar, Natalia Ginzburg narra pequenas histórias da sua família. E somos surpreendidos, ao fundo, com os acontecimentos sangrentos do seu tempo. A retórica de Ginzburg, no entanto, nunca é enfática, documental, de denúncia. Mas ela consegue de um modo singular e emocionante que a atmosfera íntima seja, de repente, atravessada pela guerra, pela imprevisibilidade, pelo terror. Isso me faz pensar no que estamos vivendo hoje, com o vírus — é mais ou menos como uma guerra, muitos dizem, embora, claro, seja outra coisa — e ler Natalia Ginzburg nestes dias de preocupação, medo e cansaço tem sido uma experiência única. Nos seus romances, o plano mais doméstico — brigas, alegrias, decepções — convive com uma realidade cruel, que revira a vida de todos. Como neste trecho de Léxico familiar: “E não havia mais ninguém que pudesse fingir que nada estava acontecendo, fechar os olhos e tapar os ouvidos, enfiar a cabeça embaixo do travesseiro, não havia.”

Quais foram as principais mudanças da edição de 1986 para a que sai pela TAG? Por que a mudança de título de Todas as nossas lembranças para Todos os nossos ontens?

A Maria Betânia Amoroso voltou à sua tradução dos anos 80, fez uma revisão diligente, encontrou novas soluções de ritmo, sintaxe, vocabulário. A Silvia Massimini, preparadora de texto, e o Fábio Bonillo, tradutor também, que faz parte do departamente de texto da Companhia das Letras, acompanharam o trabalho, fizeram ótimas sugestões. Acredito que tudo tenha ficado mais próximo das intenções da autora. Quanto ao título do romance, o original é Tutti i nostri ieri. A tradução de “ieri” é “ontem”. Achamos importante resgatar esta palavra – e há algo que nunca deveríamos esquecer, como leitores, escritores ou editores: para além do enredo e dos temas, dos personagens e do tom, há sempre as palavras. Embora possa soar um pouco estranho à primeira vista, por conta do plural da palavra “ontem”, é um título mais fiel ao original, mais concreto. A palavra “lembranças” soa como uma abstração, um tanto sentimental, e Ginzburg é uma autora que caminha no sentido oposto, de desdramatizar. Há também uma epígrafe no livro, retirada de Macbeth, que diz: “And all our yesterdays have lighted fools/ The way to dusty death”. Por fim, é preciso notar o aspecto visual e sonoro: a repetição das letras “t”, “i” e “r” do título em italiano encontra uma equivalência bonita nos “t”, “o”, “n” e “s” do nome em português.

O que você pensa dos paralelos normalmente traçados entre Elena Ferrante e Natalia Ginzburg?

Elena Ferrante sem dúvida leu muito bem Natalia Ginzburg. E uma geração de leitores de Ferrante está entrando em contato nos últimos tempos com livros como Léxico familiar, As pequenas virtudes e Todos os nossos ontens, o que é espetacular. A chamada Tetralogia Napolitana, de Ferrante, e os principais textos de Ginzburg têm a atmosfera do pós-guerra italiano, são narrados por mulheres. Mas há muitas diferenças também. O aspecto romanesco dos livros de Elena Ferrante, por exemplo, nós não encontramos na obra de Ginzburg. Poderíamos dizer, num papo de bar, que Ferrante está mais para Balzac, enquanto Ginzburg é Flaubert – de quem ela era grande admiradora e traduziu, aliás, Madame Bovary. Ginzburg trabalha com a elipse, há espaço entre as frases. Ela é mais clara, elegante. Mais moderna. Há na sua prosa um realismo cotidiano nunca óbvio, uma atenção única para o detalhe. E há, além disso, um jogo entre realidade e ficção muito interessante. “Neste livro, lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada”, adverte na famosa nota introdutória a Léxico familiar. Mas logo adiante diz: “Embora extraído da realidade, acho que [este livro] deva ser lido como se fosse um romance”. Não é ficção e, no entanto, quer ser lido como ficção, na contramão de obras que buscam a condescendência do leitor ao ancorar suas histórias em “fatos reais”.

Por fim, o que você indicaria para o associado da TAG que deseja conhecer mais da obra de Natalia Ginzburg?

Além dos livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras (até aqui, Léxico familiar, As pequenas virtudes e A família Manzoni), eu recomendaria uma entrevista que Ginzburg deu à Radio 3 italiana pouco antes de morrer, em 1991, que foi transcrita no livro È difficile parlare di sé – há uma edição em inglês também, It’s hard to talk about yourself. Recentemente, por conta da redescoberta da sua obra nos Estados Unidos, uma série de críticas e resenhas foram publicadas em veículos como New York Times, New York Review of Books, New Yorker, vale a pena buscar na internet. A Vilma Arêas publicou um texto notável sobre Caro Michele, “Ofício de escrever”, talvez a melhor análise brasileira a respeito da autora italiana. E há três autores, de quem Natalia Ginzburg era fã, que podem iluminar muito o tipo de prosa feito por ela: Flannery O’Connor, Tchekhov e Hemingway. Ela dizia amar os contos de Hemingway, foi sua editora na Einaudi, aliás. Parece ter aprendido com ele muito sobre clareza e simplicidade – sobretudo como, no lugar do mundo interior das ideias e sentimentos, dar forma ao mundo exterior dos lugares e objetos.
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quinta-feira, 4 de junho de 2020

a um velho poeta no peru

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"Porque nos conhecemos no entardecer
Debaixo da sombra do relógio da estação
de trens
Enquanto minha sombra estava visitando Lima
E o seu fantasma estava morrendo em Lima
uma cara velha precisando ser barbeada
E minha jovem barba que brotava
magnífica como cabelo morto
nas areias de Chancay
Porque pensei equivocadamente
que você estava melancólico
Cumprimentando seus pés de 60 anos
que cheiravam à morte
das aranhas na calçada
E você cumprimentou meus olhos
com sua voz de anis
Equivocadamente pensando que eu era genial demais
para um jovem
(meu rock and roll é o movimento de um
anjo sobrevoando uma cidade moderna)
(sua obscura confusão é o movimento
de um serafim que perdeu
as asas)
Dei um beijo na sua bochecha gorda (e amanhã de novo
debaixo do estupendo relógio da estação Desamparados)
Antes de ir ao encontro da minha morte num acidente aéreo
na América do Norte (há muito tempo)
E você seguir na direção do seu ataque cardíaco
numa rua indiferente da América do Sul
(Nós dois cercados de
comunistas gritando com flores
enfiadas no rabo)
— você muito antes do que eu —
ou uma longa noite sozinho num quarto
do velho hotel do mundo
observando uma porta negra
...cercado de pedaços de papel."

"A um velho poeta no Peru", Allen Ginsberg, 1960, tradução minha. Ginsberg visitou Lima há exatos 60 anos, em maio de 1960, e escreveu este poema em homenagem ao escritor peruano Martin Adán, autor de La casa de cartón. Ginsberg se hospedou num quarto de hotel em frente à estação de trens, a Estação Desamparados, e conheceu Adán na porta do Bar Cordano, que abriu em 1905 e existe até hoje.
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quinta-feira, 21 de maio de 2020

uma luz muito forte de repente

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Então você conta uma história a si mesma. Ela fica ali por umas horas, se fixando. Primeiro, parece que a história poderia ter sido contada de um outro jeito. Mas logo você se surpreende com a ideia de que não, talvez não exista nenhum outro jeito de contar aquilo. Você bem que tentou, você tentou, sim. Alguns dias se passam e agora, para dizer a verdade, você não quer contar a história de nenhum outro jeito que não exatamente aquele. A história encontrou sua forma. Você olha para ela, como se olhasse para um buraco negro, e diz: bem, não vamos mudar nada por aqui. É o tipo de história confusa. Só você sabe o quanto custou. É melhor tocar a vida e cuidar para que o significado não se mova, ou pelo menos não se mova muito. Por um tempo, a história segue sendo repetida, quando vem à cabeça, e é preciso admitir que por conta de tanta coisa que foi acontecendo você não tem pensado nela mais tanto assim. Ela se torna uma montanha. Ela se torna uma onda contra a pedra. Quer dizer, às vezes a história volta com sua luz metálica, o brilho de explosão atômica que tanto te assustou no início. Mas você respira, e tudo está no lugar.





Você toma um copo de leite, come uma banana, dá mais uma volta na chave da porta. A história começa a ficar para trás. Semanas passam. A vida tem o seu ritmo, afinal. Mas um dia você acorda um pouco estranha, é um dia igual a todos os outros, você está tomando café na mesa da cozinha, e é mais uma sensação, como se alguém tivesse tirado uma chapa da sua cabeça. Como se alguém tivesse acendido uma luz muito forte de repente.









Aos poucos você entende que a montanha, aquela montanha, uma velha conhecida, por um segundo ela agora é uma outra coisa. Uma lona cobrindo máquinas e ferramentas na garagem? Você não sabe muito bem. E tudo fica assim, incerto. São dias, semanas. Há um incômodo. Você tenta se organizar. Mas alguma coisa na história, quando você pensa, faz seu coração tremer. É como se por cima dela agora houvesse uma lâmina transparente. A história é a mesma, mas entre você e ela existe alguma outra coisa.

Uma tarde, você deixa o carro num estacionamento e caminha através de uma praça até a rua onde fica a casa da história. Você precisa procurar. Fazia tempo que você não passava por ali. Mudou muito. Quando reconhece enfim a casa, você busca a história e tenta contá-la mais uma vez. Há um prazer um pouco falso nisso, a história se reveste de um ar remoto, deslocado. Na sua superfície agora você distingue manchas. Riscos, um granulado que parece a neve. Mas não é a neve. A história está sendo distorcida pelo calor, pela luz, pelo barulho da rua? Ou é você que está agindo sobre ela. Ecos, uma noite de ano-novo, bicicletas, o mar.



Embora seja exatamente a mesma, a história não se parece muito mais com aquela que você contou um dia a si mesma. A história se combinou também a outras histórias recuperadas pela própria história, e começa a ser difícil separá-las umas das outras, entender onde uma começa e termina a outra. Elas vão se sobrepondo. Isso se torna um problema, ou pelo menos é um problema quando você tenta reordenar aquilo. Você contou a história tantas vezes para si mesma. Não é possível que agora não possa mais. É como se a história escorresse, borrasse… e de repente você pensa, não sem assombro: o que era mesmo aquela história que existiu por tanto tempo? Você não sabe mais o que te levou a contá-la daquele jeito; nada nela te dá segurança. Você coloca a palma da mão sobre a chama de um isqueiro. Você rega a jabuticabeira do quintal. Você faz um barquinho de papel. Você tricota um cachecol, porque o inverno chegou. Na sala, há uma luz mortiça de abajur, uma poltrona, tudo está silencioso. Na cozinha também. Você diz, com raiva, para que todos te ouçam: eu vou dar uma volta! E pega a bolsa, e bate a porta. É tarde, faz frio. No escuro, enquanto caminha, você conta a história para si mesma. Mas a origem e os detalhes se perderam. Há noites no deserto. Há uma noite em que você ajudou um gato a voltar para casa. Há a noite em que você não conseguiu falar e sentiu muito medo. Aquilo tudo fica ali por um tempo, te observando. Você aperta o passo e quando percebe, você está chorando. Mas você não deveria estar chorando. É preciso encontrar um jeito de contar a história. Deve estar aqui em algum lugar.







Conto publicado no blog Entretempos, da Folha de S.Paulo. Fotos do artista japonês Daisuke Yokota.
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quarta-feira, 20 de maio de 2020

da série personagens horríveis

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ZOOM

Mas minha cena preferida é uma cena de sexo em que o sexo na verdade não existe, está num conto do Tchékhov, é quando um personagem, Gurov, seduz uma jovem, Ana. Eles vão para a casa dela, e entram no quarto, e em vez de narrar o que acontece na cama, Tchékhov leva a gente para dentro da cabeça desse homem, Gurov, e ele passa então a lembrar e a fazer uma lista de outras mulheres com quem saiu e transou. Tchékhov narra a cena desse jeito, trocando o ato por essa lista de mulheres. Depois, Ana, que é casada, fica sentada na cama, pensativa, desolada, "como a pecadora de uma tela antiga", é assim que Tchékhov, ou melhor Gurov, horrivelmente a descreve. Ele vai então até uma mesa no canto do quarto, onde tem uma melancia. Corta um pedaço e começa a comer a melancia. Veja bem. Passa-se mais de uma hora nisso. Pelado, que é como eu imagino ele, olhando para a Ana, cada um do seu lado, sem dizer nada, ela olhando pra ele, ele do lado de cá, olhando pra ela, comendo, mastigando a melancia. 

Miniconto para a edição especial sexo na quarentena da Gama Revista.
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domingo, 3 de maio de 2020

dormir e sonhar

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"Él venía de una semana de trabajo en el campo
en casa de un hijo de puta y era diciembre o enero,
no lo recuerdo, pero hacía frío y al llegar a Barcelona la nieve
comenzó a caer y él tomó el metro y llegó hasta la esquina
de la casa de su amiga y la llamó por teléfono para que
bajara y viera la nieve. Una noche hermosa, sin duda,
y su amiga lo invitó a tomar café y luego hicieron el amor
y conversaron y mucho después él se quedó dormido y soñó
que llegaba a una casa en el campo y caía la nieve
detrás de la casa, detrás de las montañas, caía la nieve
y él se encontraba atrapado en el valle y llamaba por teléfono
a su amiga y la voz fría (¡fría pero amable!) le decía
que de ese hoyo inmaculado no salía ni el más valiente
a menos que tuviera mucha suerte."

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"Escucho a Barney Kessel
y fumo fumo fumo y tomo té
e intento prepararme unas tostadas
con mantequilla y mermelada
pero descubro que no tengo pan y
ya son las doce y media de la noche
y lo único que hay para comer
es una botella casi llena
con caldo de pollo comprado por la
mañana y cinco huevos y un poco
de moscatel y Barney Kessel toca
la guitarra arrinconado entre la
espada y un enchufe abierto
creo que haré consomé y
después me meteré en la cama
a releer La invención de Morel
y a pensar en una muchacha rubia
hasta que me quede dormido y
me ponga a soñar."

"La suerte", 1987 & "Escucho a Barney Kessel", 1981, Roberto Bolaño
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quarta-feira, 22 de abril de 2020

um perfil

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Sobre o Sebastopol e meus outros livros, perfil no Brazilian Publishers.

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Brazilian writer Emilio Fraia sold to Prodigo Films the rights of his book Sebastopol (Sevastopol) to be adapted for the big screen. The feature film will be directed by Caio Ortiz and produced by Beto Gauss and Francesco Civita. Alfaguara, the publisher of the title in Brazil, put the author in touch with the production company. “The initial idea is to use the three stories in the film, but anything can happen”, says Emilio. The book that inspired the movie is being translated into English, and the translation will be published in 2021 by American publisher New Directions.

Sebastopol includes three short stories that work independently but are subtly connected to one another somehow. “The seed of what became one of such stories was sowed back in 2012, in a short story selected and published in Granta magazine”, says the author. That issue of the British magazine chose the best Brazilian writers under 40 years old, and one of them was Emilio Fraia. In the first story, a female climber decides to climb the Everest and suffers an accident that changes her life forever. Years later, she finds a video in which an artist seems to be narrating her story. In the second story, set in the Midwest region of Brazil, a man goes to an abandoned inn and then vanishes. The reader slowly discovers the history of that man. In the third and last story, a young woman, together with an old theater director, writes about a Russian painter who has never finished one of his most famous paintings. The artist lived during the Siege of Sevastopol (1854-1855), the main battle during the Crimean War, which involved some Western powerful countries against the Tsarist Russia in the 19th Century.

“There’s always someone telling stories, imagining and remembering things in the book”, points out the author. The story, expressed in such way, ends up working as comments to the main narrative – and to the book as a whole. The stories, as a group, give more complexity to the book.

Sebastopol was one of the winners of the Brazilian National Library Award and shortlisted for the Jabuti and Oceanos Awards. Last year, one of its three stories was also published in the December issue of The New Yorker magazine. Emilio’s first book, O Verão de Chibo (The Summer of Chibo), also published by Alfaguara, was written in a partnership with Vanessa Barbara, in 2008. The title was shortlisted for the São Paulo Prize for Literature and was well received by critics. “Vanessa and I were guests in the Paraty International Literary Festival that year. We both were 25 years old”, says the writer. In his career, the author developed three works that are very different from one another in terms of format. The first of them was the rich experience of writing a fiction novel with Vanessa Barbara. “It was very challenging because the story often took directions we did not expect, but we had to make it work.” The result was so good that the four-handed book was shortlisted for important prizes.

Exploring a different format, in 2013 Emilio wrote the plot and the script of Campo em Branco (Blank Space), a graphic novel developed in a partnership with visual artist DW Ribatski and published by Companhia das Letras. “I had the opportunity to explore further some themes that were already present in my previous book: the relationship between brothers, the attempt to bring back something that no longer exists”, explains the author.

The partnership with DW Ribatiski was a completely new experience. First, Emilio thought he could write a long story for DW to adapt it. But in his deep dive in the universe of comic books Emilio learned new ways of thinking and producing stories. “During the process I understood that, in order to express certain atmospheres, pace, times and intentions that were inside my head, I had to follow other paths”. Thinking on how the story goes forward by moving from one frame to the next and from one page to the next while immersed in the process was an extremely positive experience for the writer.

Asked about novelties, the author excited our curiosity and said he is working on a novel: “All I can say for now is that it’s the story of two sisters”.
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quarta-feira, 1 de abril de 2020

a máquina de pensar em gladys

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"Antes de dormir, fiz a ronda habitual pela casa, para ver se tudo estava em ordem; a janelinha do banheiro, nos fundos, estava aberta — para secar durante a noite a camisa que eu usaria no dia seguinte —; fechei a porta (para evitar correntes de ar); na cozinha, a torneira da pia pingava e eu a apertei, a janela estava aberta e a deixei assim — fechando a persiana —; o lixo já havia sido levado para fora, os três botões do fogão elétrico estavam em zero, o botão de controle da geladeira dizia 3 (refrigeração suave) e a garrafa de água mineral aberta estava com a tampa hermética, de plástico; na sala de jantar, o grande relógio tinha corda para mais alguns dias e a mesa havia sido levantada; na biblioteca, tive que desligar a caixa de som, que alguém havia deixado ligada, mas o toca-discos se desligara automaticamente; o cinzeiro da cadeira havia sido esvaziado; a máquina de pensar em Gladys estava conectada e produzia o ronronar suave habitual; a janelinha alta que dava para o poço de ar estava aberta, e a fumaça dos cigarros do dia escapava, lentamente, por ela; fechei a porta; na sala, encontrei uma ponta de cigarro no chão; coloquei-a no cinzeiro alto, que a faxineira costuma esvaziar pela manhã; no quarto dei corda no despertador, verificando se a hora indicada coincidia com a do relógio no meu pulso, e programei-o para tocar meia hora mais tarde na manhã seguinte (porque eu havia decidido não tomar banho; me sentia um pouco resfriado); deitei e apaguei a luz.

De madrugada acordei inquieto, um barulho incomum me causou um sobressalto; me enrolei na cama e me cobri com travesseiros, coloquei as mãos na nuca e esperei o fim de tudo com meus nervos em tensão: a casa estava desmoronando."

"A máquina de pensar em Gladys", Mario Levrero, 1966
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domingo, 1 de março de 2020

onde a água se junta a outra água

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Eu amo os riachos e a música que eles fazem
E os regatos, nos prados e clareiras, antes
de terem a chance de se tornar riachos.
Talvez eu os ame sobretudo
por seu sigilo. E quase me esqueço
de falar sobre as fontes
Existe algo mais maravilhoso que uma nascente?
Mas as grandes corredeiras desaguam em rios.
As bocas abertas dos rios, onde se juntam ao mar.
Os lugares onde a água se junta
a outra água. Esses lugares resplandecem
na minha mente como locais sagrados.
Mas esses rios perto da costa
Eu os amo do jeito que alguns homens amam cavalos
ou mulheres glamourosas. Tenho uma queda
por aquela água fria e veloz.
Só de vê-la o meu sangue acelera
e a pele arrepia. Posso me sentar
e passar horas observando esses rios.
Nenhum deles é igual a outro.
Tenho 45 anos.
Alguém acreditaria se eu dissesse
que já tive 35?
Meu coração vazio e seco aos 35.
Mais cinco tiveram de passar
para que ele começasse a fluir novamente.
Esta tarde eu vou me dar todo o tempo que quiser
antes de deixar meu lugar na beira deste rio.
Gosto de amar os rios.
Amá-los inteiros, até
suas nascentes.
Amar tudo aquilo que me faz crescer.

“Onde a água se junta a outra água”,
 Raymond Carver, 1985, tradução de Cide Piquet
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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

a hora histórica

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Em sua coluna na revista Época, Ruan S. Gabriel escarafuncha a "hora histórica" em alguns livros dos anos 10, entre eles o Sebastopol.

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Folheando Seja como for, livro lançado recentemente pela Editora 34 que reúne, entre outros textos, entrevistas concedidas pelo crítico literário Roberto Schwarz, topei, no meio de toda aquela vertiginosa dialética, com a seguinte frase: “Todo autor que se preza, quando pega a caneta, quer indicar entre outras coisas a hora histórica. Isso vale tanto para o ficcionista, como para o poeta, como para o crítico”. Depois, no Twitter, esbarrei num comentário do escritor espanhol Jorge Carrión que vai mais ou menos na mesma linha: “Minha ideia da crítica cultural e da docência: compartilhar com entusiasmo as poéticas que melhor escutam, representam e questionam o contemporâneo”.

Como a literatura brasileira tem escutado, representado e questionado o contemporâneo? Entre os livros que publicamos nos anos 2010, quais indicaram melhor a hora histórica?

Se pensarmos em nosso passado recente, o passado que se desdobrou neste presente que não promete futuro algum, algumas datas se destacam: 2013, quando tudo parecia calmo e de repente as ruas se encheram de raiva e esperança; 2016, quando Dilma Rousseff desceu a rampa do palácio e leu versos de Maiakóvski: o mar da história/ é agitado; e 2018, quando Jair Bolsonaro, que cita versículos bíblicos aqui e ali, mas cujo livro de cabeceira é A verdade sufocada, do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, foi eleito presidente. Como a literatura escutou, representou e questionou esses momentos?

Em julho de 2013, quando ainda nos perguntávamos atordoados como não tínhamos previsto as revoltas de junho, Ricardo Lísias lançou Divórcio, um romance que causou um extremo mal-estar no establishment cultural. No livro, um narrador chamado Ricardo Lísias lê o diário da mulher e descobre que ela, uma jornalista cultural, não apenas o desprezava, mas mantinha relações promíscuas com o mercado da cultura.

Divórcio escandalizou porque Lísias embaralhou realidade e ficção, levando muita gente (ok, nem tanta gente assim) a ler o livro apreensiva, com medo de topar consigo mesma ao virar a página. E também porque apontou o dedo para o mercado cultural, um mercado que não gosta de falar de dinheiro, que finge ser movido apenas por virtudes democráticas, nunca por interesses econômicos; um mercado que transforma a diversidade em mercadoria e disfarça de ato político o consumo.

Se criticar o mercado da cultura era impensável, encher as ruas de revolta depois de dez anos de governos petistas, quando havia pleno emprego e os poços do pré-sal jorravam otimismo, também era. Cada um a seu modo e com suas limitações, Divórcio e as jornadas de junho jogaram pedras (às vezes literais) nas vidraças, revelaram um mal-estar que já estava ali, mas que às vezes nos recusávamos a encarar.

Ao longo do livro, o narrador vai perdendo a pele e corre pela cidade em carne viva. Não foi mais ou menos isso que junho fez? Nos esfolou a pele até que não pudéssemos mais ignorar as feridas abertas? Divórcio não reproduz o noticiário político da época, não descreve nenhum protesto de rua a atrapalhar as corridas do narrador, mas indicou que o relógio que usávamos para checar a hora história (o futuro tinha enfim chegado?) talvez estivesse quebrado. Quem primeiro me sugeriu que Divórcio traduzia literariamente o mal-estar denunciado em junho foi Henrique Balbi, meu colega aqui no colunismo virtual de ÉPOCA.

Quando Bolsonaro foi eleito, houve quem sugerisse que se tivéssemos ficado quietinhos em casa em 2013, a extrema-direita não teria vencido – como se junho tivesse inventado, e não apenas apontado, a sujeira que tentávamos esconder debaixo de um grande tapete nacional.

Em outubro de 2018, no mesmo mês em que Bolsonaro ganhou a Presidência, Emilio Fraia lançou Sebastopol, um livro que, como eu próprio disse aqui há quase um ano, “retrata o ar de chumbo que pesa sobre o país”. Os três contos de Sebastopol têm títulos roubados do meses do ano: “Dezembro”, “Maio” e “Agosto”. Nenhum dos contos de chama “Junho”, mas a perplexidade, o desespero e a melancolia que tomaram o país depois dos protestos de 2013 perpassa todo o livro.

“Dezembro” é narrado por Lena, uma moça rica que sonhava em ser a primeira brasileira a alcançar o topo do Everest, mas por causa de um acidente nas alturas foi forçada a abandonar o alpinismo e se reinventar como palestrante, dessas que contam histórias lacrimosas de superação para plateias corporativas.

O acidente ocorreu em 13 de junho de 2013, o dia em que a Polícia Militar reprimiu com covardia um protesto em São Paulo. O dia em que junho mudou o rumo e as ruas se abriram para as pautas verde-amarelas apropriadas depois pelo bolsonarismo.

O último conto de Sebastopol, “Agosto”, é desolador: descreve a angústia de Nadia, uma moça que ajuda um dramaturgo maldito a encenar uma peça enquanto tenta, ela própria, escrever um conto.

Nadia diz frases como “voltei a pensar no estado geral das coisas, na minha geração, que seria esmagada por mais dez, quinze anos de paralisia” e Lena, “sei que estamos em 2018, mas a minha impressão é ter vivido esses anos todos sem ter vivido nada”.

De fato, depois de 2013, atravessamos anos de paralisia — política, econômica etc. Sebastopol descreve impiedosamente essa paralisia sem precisar se remeter uma única vez ao noticiário.

Nadia tem razão ao reclamar dos anos de paralisa, dos anos que vivemos anos sem ter vivido nada, mas não dá para entender como as coisas pioraram tanto de 2013 a 2018 sem se deter um pouco em 2016. Em agosto de 2016, dias antes do julgamento de Dilma no Senado, chegou às livrarias um dos melhores romances da última década: O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer.

Homens avulsos é narrado por Camilo, um cinquentão manco que passa os dias a remoer os 14 dias de felicidade adolescente que viveu ao lado de Cosme (ou Cosmim, num diminutivo mineiro), seu primeiro amor. Camilo e Cosmim cresceram no subúrbio carioca, onde todos os meninos eram negros ou quase negros – menos Camilo, que era branco e filho de médico, quase o “sinhozinho” do bairro.

O amor dos meninos é interrompido pelo assassinato de Cosmim. Décadas depois, Camilo assiste pela televisão aos preparativos para a corrida eleitoral de 2014 e se envolve numa estranha amizade com um menino negro, neto do assassino de Cosmim.

Está tudo lá, em Homens avulsos: a violência brasileira, a desigualdade que faz com que só o menino negro e pobre apanhe quando o menino branco e rico pecou junto com ele, a alegre subserviência das classes médias ao autoritarismo, o desconforto com a sexualidade.

Mas Heringer tentou abrir uma brecha no tecido social brasileiro, oferecer um antídoto a toda essa miséria: a ternura. Homens avulsos propunha que nos armássemos de afeto para responder à barbárie. Como também sugeriu certo progressismo que, nos últimos anos, pensou que apelar para os bons sentimentos dos eleitores, para seus valores, os impediria de votar na extrema-direita. Mas não impediu. As brechas que Heringer tentou abrir acabaram dinamitadas, destruídas.

As respostas afetivas, talvez porque fechassem os olhos para as difíceis origens históricas de toda essa violência, acabaram esmagadas. Até que chegamos ao fim da década “sem ter vivido nada”. E o que é essa impressão de não ter vivido senão uma sensação de entorpecimento, de desesperança, provocada pela derrota política e afetiva?

Essa tentativa de pensar em alguns marcos da literatura brasileira nos anos 2010 tem um punhado de limitações. Não deixa de ser uma lista um pouco aleatória, que reflete, principalmente, os gostos e interesses de quem a esboçou.

E não é nada diversa: os três autores citados são todos homens brancos publicados pelo Grupo Companhia das Letras. Por que não seria possível livros assinados por negros, mulheres, escritores que cresceram pobres e foram publicados por editoras independentes sem acesso à imprensa terem indicado melhor a hora histórica do que Lísias, Heringer e Fraia?

A resposta a essa pergunta passa, outra vez, pelas limitações, gostos e interesses de quem propôs essa leitura, e também pelas várias razões que fazem com que determinados livros circulem, sejam lidos e elogiados — e outros não.

A lista, além disso, para em 2018. E 2019? Como a literatura brasileira escutou, representou e questionou o ano do qual acabamos de nos despedir?
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