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Em sua coluna na revista Época, Ruan S. Gabriel escarafuncha a "hora histórica" em alguns livros dos anos 10, entre eles o Sebastopol.
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Folheando Seja como for, livro lançado recentemente pela Editora 34 que reúne, entre outros textos, entrevistas concedidas pelo crítico literário Roberto Schwarz, topei, no meio de toda aquela vertiginosa dialética, com a seguinte frase: “Todo autor que se preza, quando pega a caneta, quer indicar entre outras coisas a hora histórica. Isso vale tanto para o ficcionista, como para o poeta, como para o crítico”. Depois, no Twitter, esbarrei num comentário do escritor espanhol Jorge Carrión que vai mais ou menos na mesma linha: “Minha ideia da crítica cultural e da docência: compartilhar com entusiasmo as poéticas que melhor escutam, representam e questionam o contemporâneo”.
Como a literatura brasileira tem escutado, representado e questionado o contemporâneo? Entre os livros que publicamos nos anos 2010, quais indicaram melhor a hora histórica?
Se pensarmos em nosso passado recente, o passado que se desdobrou neste presente que não promete futuro algum, algumas datas se destacam: 2013, quando tudo parecia calmo e de repente as ruas se encheram de raiva e esperança; 2016, quando Dilma Rousseff desceu a rampa do palácio e leu versos de Maiakóvski: o mar da história/ é agitado; e 2018, quando Jair Bolsonaro, que cita versículos bíblicos aqui e ali, mas cujo livro de cabeceira é A verdade sufocada, do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, foi eleito presidente. Como a literatura escutou, representou e questionou esses momentos?
Em julho de 2013, quando ainda nos perguntávamos atordoados como não tínhamos previsto as revoltas de junho, Ricardo Lísias lançou Divórcio, um romance que causou um extremo mal-estar no establishment cultural. No livro, um narrador chamado Ricardo Lísias lê o diário da mulher e descobre que ela, uma jornalista cultural, não apenas o desprezava, mas mantinha relações promíscuas com o mercado da cultura.
Divórcio escandalizou porque Lísias embaralhou realidade e ficção, levando muita gente (ok, nem tanta gente assim) a ler o livro apreensiva, com medo de topar consigo mesma ao virar a página. E também porque apontou o dedo para o mercado cultural, um mercado que não gosta de falar de dinheiro, que finge ser movido apenas por virtudes democráticas, nunca por interesses econômicos; um mercado que transforma a diversidade em mercadoria e disfarça de ato político o consumo.
Se criticar o mercado da cultura era impensável, encher as ruas de revolta depois de dez anos de governos petistas, quando havia pleno emprego e os poços do pré-sal jorravam otimismo, também era. Cada um a seu modo e com suas limitações, Divórcio e as jornadas de junho jogaram pedras (às vezes literais) nas vidraças, revelaram um mal-estar que já estava ali, mas que às vezes nos recusávamos a encarar.
Ao longo do livro, o narrador vai perdendo a pele e corre pela cidade em carne viva. Não foi mais ou menos isso que junho fez? Nos esfolou a pele até que não pudéssemos mais ignorar as feridas abertas? Divórcio não reproduz o noticiário político da época, não descreve nenhum protesto de rua a atrapalhar as corridas do narrador, mas indicou que o relógio que usávamos para checar a hora história (o futuro tinha enfim chegado?) talvez estivesse quebrado. Quem primeiro me sugeriu que Divórcio traduzia literariamente o mal-estar denunciado em junho foi Henrique Balbi, meu colega aqui no colunismo virtual de ÉPOCA.
Quando Bolsonaro foi eleito, houve quem sugerisse que se tivéssemos ficado quietinhos em casa em 2013, a extrema-direita não teria vencido – como se junho tivesse inventado, e não apenas apontado, a sujeira que tentávamos esconder debaixo de um grande tapete nacional.
Em outubro de 2018, no mesmo mês em que Bolsonaro ganhou a Presidência, Emilio Fraia lançou Sebastopol, um livro que, como eu próprio disse aqui há quase um ano, “retrata o ar de chumbo que pesa sobre o país”. Os três contos de Sebastopol têm títulos roubados do meses do ano: “Dezembro”, “Maio” e “Agosto”. Nenhum dos contos de chama “Junho”, mas a perplexidade, o desespero e a melancolia que tomaram o país depois dos protestos de 2013 perpassa todo o livro.
“Dezembro” é narrado por Lena, uma moça rica que sonhava em ser a primeira brasileira a alcançar o topo do Everest, mas por causa de um acidente nas alturas foi forçada a abandonar o alpinismo e se reinventar como palestrante, dessas que contam histórias lacrimosas de superação para plateias corporativas.
O acidente ocorreu em 13 de junho de 2013, o dia em que a Polícia Militar reprimiu com covardia um protesto em São Paulo. O dia em que junho mudou o rumo e as ruas se abriram para as pautas verde-amarelas apropriadas depois pelo bolsonarismo.
O último conto de Sebastopol, “Agosto”, é desolador: descreve a angústia de Nadia, uma moça que ajuda um dramaturgo maldito a encenar uma peça enquanto tenta, ela própria, escrever um conto.
Nadia diz frases como “voltei a pensar no estado geral das coisas, na minha geração, que seria esmagada por mais dez, quinze anos de paralisia” e Lena, “sei que estamos em 2018, mas a minha impressão é ter vivido esses anos todos sem ter vivido nada”.
De fato, depois de 2013, atravessamos anos de paralisia — política, econômica etc. Sebastopol descreve impiedosamente essa paralisia sem precisar se remeter uma única vez ao noticiário.
Nadia tem razão ao reclamar dos anos de paralisa, dos anos que vivemos anos sem ter vivido nada, mas não dá para entender como as coisas pioraram tanto de 2013 a 2018 sem se deter um pouco em 2016. Em agosto de 2016, dias antes do julgamento de Dilma no Senado, chegou às livrarias um dos melhores romances da última década: O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer.
Homens avulsos é narrado por Camilo, um cinquentão manco que passa os dias a remoer os 14 dias de felicidade adolescente que viveu ao lado de Cosme (ou Cosmim, num diminutivo mineiro), seu primeiro amor. Camilo e Cosmim cresceram no subúrbio carioca, onde todos os meninos eram negros ou quase negros – menos Camilo, que era branco e filho de médico, quase o “sinhozinho” do bairro.
O amor dos meninos é interrompido pelo assassinato de Cosmim. Décadas depois, Camilo assiste pela televisão aos preparativos para a corrida eleitoral de 2014 e se envolve numa estranha amizade com um menino negro, neto do assassino de Cosmim.
Está tudo lá, em Homens avulsos: a violência brasileira, a desigualdade que faz com que só o menino negro e pobre apanhe quando o menino branco e rico pecou junto com ele, a alegre subserviência das classes médias ao autoritarismo, o desconforto com a sexualidade.
Mas Heringer tentou abrir uma brecha no tecido social brasileiro, oferecer um antídoto a toda essa miséria: a ternura. Homens avulsos propunha que nos armássemos de afeto para responder à barbárie. Como também sugeriu certo progressismo que, nos últimos anos, pensou que apelar para os bons sentimentos dos eleitores, para seus valores, os impediria de votar na extrema-direita. Mas não impediu. As brechas que Heringer tentou abrir acabaram dinamitadas, destruídas.
As respostas afetivas, talvez porque fechassem os olhos para as difíceis origens históricas de toda essa violência, acabaram esmagadas. Até que chegamos ao fim da década “sem ter vivido nada”. E o que é essa impressão de não ter vivido senão uma sensação de entorpecimento, de desesperança, provocada pela derrota política e afetiva?
Essa tentativa de pensar em alguns marcos da literatura brasileira nos anos 2010 tem um punhado de limitações. Não deixa de ser uma lista um pouco aleatória, que reflete, principalmente, os gostos e interesses de quem a esboçou.
E não é nada diversa: os três autores citados são todos homens brancos publicados pelo Grupo Companhia das Letras. Por que não seria possível livros assinados por negros, mulheres, escritores que cresceram pobres e foram publicados por editoras independentes sem acesso à imprensa terem indicado melhor a hora histórica do que Lísias, Heringer e Fraia?
A resposta a essa pergunta passa, outra vez, pelas limitações, gostos e interesses de quem propôs essa leitura, e também pelas várias razões que fazem com que determinados livros circulem, sejam lidos e elogiados — e outros não.
A lista, além disso, para em 2018. E 2019? Como a literatura brasileira escutou, representou e questionou o ano do qual acabamos de nos despedir?
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Em sua coluna na revista Época, Ruan S. Gabriel escarafuncha a "hora histórica" em alguns livros dos anos 10, entre eles o Sebastopol.
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Folheando Seja como for, livro lançado recentemente pela Editora 34 que reúne, entre outros textos, entrevistas concedidas pelo crítico literário Roberto Schwarz, topei, no meio de toda aquela vertiginosa dialética, com a seguinte frase: “Todo autor que se preza, quando pega a caneta, quer indicar entre outras coisas a hora histórica. Isso vale tanto para o ficcionista, como para o poeta, como para o crítico”. Depois, no Twitter, esbarrei num comentário do escritor espanhol Jorge Carrión que vai mais ou menos na mesma linha: “Minha ideia da crítica cultural e da docência: compartilhar com entusiasmo as poéticas que melhor escutam, representam e questionam o contemporâneo”.
Como a literatura brasileira tem escutado, representado e questionado o contemporâneo? Entre os livros que publicamos nos anos 2010, quais indicaram melhor a hora histórica?
Se pensarmos em nosso passado recente, o passado que se desdobrou neste presente que não promete futuro algum, algumas datas se destacam: 2013, quando tudo parecia calmo e de repente as ruas se encheram de raiva e esperança; 2016, quando Dilma Rousseff desceu a rampa do palácio e leu versos de Maiakóvski: o mar da história/ é agitado; e 2018, quando Jair Bolsonaro, que cita versículos bíblicos aqui e ali, mas cujo livro de cabeceira é A verdade sufocada, do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, foi eleito presidente. Como a literatura escutou, representou e questionou esses momentos?
Em julho de 2013, quando ainda nos perguntávamos atordoados como não tínhamos previsto as revoltas de junho, Ricardo Lísias lançou Divórcio, um romance que causou um extremo mal-estar no establishment cultural. No livro, um narrador chamado Ricardo Lísias lê o diário da mulher e descobre que ela, uma jornalista cultural, não apenas o desprezava, mas mantinha relações promíscuas com o mercado da cultura.
Divórcio escandalizou porque Lísias embaralhou realidade e ficção, levando muita gente (ok, nem tanta gente assim) a ler o livro apreensiva, com medo de topar consigo mesma ao virar a página. E também porque apontou o dedo para o mercado cultural, um mercado que não gosta de falar de dinheiro, que finge ser movido apenas por virtudes democráticas, nunca por interesses econômicos; um mercado que transforma a diversidade em mercadoria e disfarça de ato político o consumo.
Se criticar o mercado da cultura era impensável, encher as ruas de revolta depois de dez anos de governos petistas, quando havia pleno emprego e os poços do pré-sal jorravam otimismo, também era. Cada um a seu modo e com suas limitações, Divórcio e as jornadas de junho jogaram pedras (às vezes literais) nas vidraças, revelaram um mal-estar que já estava ali, mas que às vezes nos recusávamos a encarar.
Ao longo do livro, o narrador vai perdendo a pele e corre pela cidade em carne viva. Não foi mais ou menos isso que junho fez? Nos esfolou a pele até que não pudéssemos mais ignorar as feridas abertas? Divórcio não reproduz o noticiário político da época, não descreve nenhum protesto de rua a atrapalhar as corridas do narrador, mas indicou que o relógio que usávamos para checar a hora história (o futuro tinha enfim chegado?) talvez estivesse quebrado. Quem primeiro me sugeriu que Divórcio traduzia literariamente o mal-estar denunciado em junho foi Henrique Balbi, meu colega aqui no colunismo virtual de ÉPOCA.
Quando Bolsonaro foi eleito, houve quem sugerisse que se tivéssemos ficado quietinhos em casa em 2013, a extrema-direita não teria vencido – como se junho tivesse inventado, e não apenas apontado, a sujeira que tentávamos esconder debaixo de um grande tapete nacional.
Em outubro de 2018, no mesmo mês em que Bolsonaro ganhou a Presidência, Emilio Fraia lançou Sebastopol, um livro que, como eu próprio disse aqui há quase um ano, “retrata o ar de chumbo que pesa sobre o país”. Os três contos de Sebastopol têm títulos roubados do meses do ano: “Dezembro”, “Maio” e “Agosto”. Nenhum dos contos de chama “Junho”, mas a perplexidade, o desespero e a melancolia que tomaram o país depois dos protestos de 2013 perpassa todo o livro.
“Dezembro” é narrado por Lena, uma moça rica que sonhava em ser a primeira brasileira a alcançar o topo do Everest, mas por causa de um acidente nas alturas foi forçada a abandonar o alpinismo e se reinventar como palestrante, dessas que contam histórias lacrimosas de superação para plateias corporativas.
O acidente ocorreu em 13 de junho de 2013, o dia em que a Polícia Militar reprimiu com covardia um protesto em São Paulo. O dia em que junho mudou o rumo e as ruas se abriram para as pautas verde-amarelas apropriadas depois pelo bolsonarismo.
O último conto de Sebastopol, “Agosto”, é desolador: descreve a angústia de Nadia, uma moça que ajuda um dramaturgo maldito a encenar uma peça enquanto tenta, ela própria, escrever um conto.
Nadia diz frases como “voltei a pensar no estado geral das coisas, na minha geração, que seria esmagada por mais dez, quinze anos de paralisia” e Lena, “sei que estamos em 2018, mas a minha impressão é ter vivido esses anos todos sem ter vivido nada”.
De fato, depois de 2013, atravessamos anos de paralisia — política, econômica etc. Sebastopol descreve impiedosamente essa paralisia sem precisar se remeter uma única vez ao noticiário.
Nadia tem razão ao reclamar dos anos de paralisa, dos anos que vivemos anos sem ter vivido nada, mas não dá para entender como as coisas pioraram tanto de 2013 a 2018 sem se deter um pouco em 2016. Em agosto de 2016, dias antes do julgamento de Dilma no Senado, chegou às livrarias um dos melhores romances da última década: O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer.
Homens avulsos é narrado por Camilo, um cinquentão manco que passa os dias a remoer os 14 dias de felicidade adolescente que viveu ao lado de Cosme (ou Cosmim, num diminutivo mineiro), seu primeiro amor. Camilo e Cosmim cresceram no subúrbio carioca, onde todos os meninos eram negros ou quase negros – menos Camilo, que era branco e filho de médico, quase o “sinhozinho” do bairro.
O amor dos meninos é interrompido pelo assassinato de Cosmim. Décadas depois, Camilo assiste pela televisão aos preparativos para a corrida eleitoral de 2014 e se envolve numa estranha amizade com um menino negro, neto do assassino de Cosmim.
Está tudo lá, em Homens avulsos: a violência brasileira, a desigualdade que faz com que só o menino negro e pobre apanhe quando o menino branco e rico pecou junto com ele, a alegre subserviência das classes médias ao autoritarismo, o desconforto com a sexualidade.
Mas Heringer tentou abrir uma brecha no tecido social brasileiro, oferecer um antídoto a toda essa miséria: a ternura. Homens avulsos propunha que nos armássemos de afeto para responder à barbárie. Como também sugeriu certo progressismo que, nos últimos anos, pensou que apelar para os bons sentimentos dos eleitores, para seus valores, os impediria de votar na extrema-direita. Mas não impediu. As brechas que Heringer tentou abrir acabaram dinamitadas, destruídas.
As respostas afetivas, talvez porque fechassem os olhos para as difíceis origens históricas de toda essa violência, acabaram esmagadas. Até que chegamos ao fim da década “sem ter vivido nada”. E o que é essa impressão de não ter vivido senão uma sensação de entorpecimento, de desesperança, provocada pela derrota política e afetiva?
Essa tentativa de pensar em alguns marcos da literatura brasileira nos anos 2010 tem um punhado de limitações. Não deixa de ser uma lista um pouco aleatória, que reflete, principalmente, os gostos e interesses de quem a esboçou.
E não é nada diversa: os três autores citados são todos homens brancos publicados pelo Grupo Companhia das Letras. Por que não seria possível livros assinados por negros, mulheres, escritores que cresceram pobres e foram publicados por editoras independentes sem acesso à imprensa terem indicado melhor a hora histórica do que Lísias, Heringer e Fraia?
A resposta a essa pergunta passa, outra vez, pelas limitações, gostos e interesses de quem propôs essa leitura, e também pelas várias razões que fazem com que determinados livros circulem, sejam lidos e elogiados — e outros não.
A lista, além disso, para em 2018. E 2019? Como a literatura brasileira escutou, representou e questionou o ano do qual acabamos de nos despedir?
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