terça-feira, 21 de julho de 2009

dia de festa

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Jour de fête, Jacques Tati, 1949
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"Os famosos Comícios chegaram realmente! Já na manhã da solenidade todos os habitantes, em suas portas, entretinham-se com os preparativos; haviam enguirlandado com hera o frontão da prefeitura; no prado fora levantada uma tenda para o festim e, no meio da praça, diante da igreja, uma espécie de bombarda devia assinalar a chegada do Sr. Governador e o nome dos agricultores premiados. A guarda nacional de Buchy (ela não existia em Yonville) viera juntar-se ao corpo de bombeiros cujo capitão era Binet. Usava ele, naquele dia, um colarinho ainda mais alto do que o costume; e, apertado em sua túnica, tinha o busto tão duro e imóvel que toda a parte vital de seu corpo parecia ter descido às pernas, que se levantavam em cadência com passos marcados, em um só movimento. Como subsistia uma rivalidade entre o perceptor e o coronel, ambos, para mostrar seus talentos, faziam evoluir seus homens à parte. Viam-se, alternadamente, passar e passar de novo as dragonas vermelhas e os plastrões negros. O movimento não acabava e recomeçava sempre! Nunca houvera uma tal ostentação! Vários burgueses, já na véspera, haviam lavado suas casas; as bandeiras tricolores encimavam as janelas entreabertas; todos os botequins estavam cheios e, com o bom tempo que estava fazendo, os gorros engomados, as cruzes de ouro e os lenços coloridos pareciam mais brancos do que a neve, cintilavam ao sol claro e reanimavam, com sua miscelânea disseminada, a sombria monotonia das casacas e das blusas azuis. As granjeiras das redondezas, ao descer do cavalo, retiravam o grande alfinete que lhes mantinha o vestido arregaçado ao redor do corpo por medo das manchas; e os maridos, pelo contrário, a fim de defender seus chapéus, conservavam acima deles lenços de bolso mantendo presa entre os dentes uma de suas pontas.

A multidão chegava à rua principal pelas duas extremidades da vila. Transbordava das ruelas, das alamedas, das casas e ouvia-se, de tempos em tempos, recair a aldrava das portas atrás das burguesas com luvas de linha que saíam para ir ver a festa. O que todos admiravam sobretudo eram dois longos teixos cobertos de lampiões que ladeavam o palanque onde iriam colocar-se as autoridades; havia ainda, contra as quatro colunas da prefeitura, quatro espécies de varas, trazendo cada uma um pequeno estandarte de fazenda esverdeada, cheio de inscrições em letras de ouro. Lia-se num deles: Ao Comércio, num outro: À Agricultura, no terceiro: À Indústria e no quarto: Às Belas-Artes.

(...)

Todos se assemelhavam. Seus moles rostos claros, um pouco queimados pelo sol, tinham a cor da sidra doce e suas suíças fofas escapavam dos grandes colarinhos duros, seguros por gravatas brancas com o nó bem esticado. Todos os coletes eram de veludo e trespassados; todos os relógios traziam na ponta de uma longa fita um sinete oval de cornalina; e todos apoiavam as duas mãos sobre as duas coxas, puxando com cuidado a entreperna das calças cuja fazenda, ainda não deslustrada, brilhava mais do que o couro das fortes botas.

(...)

A praça, até às casas, estava cheia de gente. Viam-se pessoas debruçadas em todas as janelas, outras de pé em todas as portas e Justin, diante da vitrina da farmácia, parecia completamente cravado na contemplação do que estava olhando. Apesar do silêncio, a voz do Sr. Lieuvain perdia-se no ar. Somente chegavam aos ouvidos fragmentos de frases interrompidas pelo barulho das cadeiras na multidão; depois cada um ouvia, de repente, atrás de si, um longo mugido de boi ou então os balidos dos cordeiros que se respondiam nas esquinas das ruas. De fato, os vaqueiros e os pastores haviam levado até lá seus animais que mugiam de vez em quando, arrancando com a língua algum pedaço de folhagem que lhes pendia do focinho."

Madame Bovary, Flaubert, 1857 (Tradução de Fúlvia M.L. Moretto)
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domingo, 12 de julho de 2009

o amigo da família renana

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Foi o Samuel (Titan Jr.) quem me apresentou, no ano da glória de 2006, e atende por Johann Peter Hebel. Parecem histórias tiradas da caixinha de tesouros do Reader's Digest, que eu lia quando era menor -- porque um dia meu pai assinou a revista e passamos a fazer parte do seletíssimo grupo que recebeu pelo resto da vida (mesmo depois de cancelar a assinatura) histórias como a do cachorro Bill que salvou toda uma família de um incêndio, da fabulosa casa mais cara da América ou do imigrante ilegal que colhia tomates e graças-a-seu-esforço-e-superação transformou-se num neurocirurgião de sucesso. Nessa época, eu só queria saber das grandes obras, como a enciclopédia Caldas Aulete (com especial apreço pelos verbetes "bandeiras", "pássaros", "homem da caverna", "sistema solar" e "Turquia") e os almanaques Disney. Hebel tem um certo parentesco com isso tudo. Mas, como nota o Samuel, não há nos relatos de Hebel "um tom único, popularesco ou folclórico", há sim uma mistura de "oralidade e armação da sintaxe; (...) às vezes, sua matéria provém da tradição imemorial, mas há ocasiões em que se faz de repórter para relatar passagens das guerras napoleônicas; sabe contar histórias de proveito sem dispensar o paradoxo; tem intenção edificante, mas sua religião é feita menos de dogmas do que de uma moralidade esclarecida, coisa de quem não passou em vão pelo Iluminismo".

Ou seja, muito verão.

Hebel nasceu na Basiléia em 1760 e foi o responsável por redigir entre 1807 e 1815 o almanaque oficial de Baden, rebatizado por ele de O amigo da família renana. A revista chegou a vender quarenta mil exemplares por ano e em 1811 ganhou uma antologia, que reunia algumas das historietas publicadas, a Caixinha de tesouros do amigo da família renana. Foi esta obra que tornou Hebel conhecido e o fez ganhar fãs como Benjamin e Elias Canetti, que disse:

"Hebel possui aquele dom que esperamos ver num professor: fala claramente e fala para todos. Tem sede de saber e aprendeu muita coisa, mas isso só se nota quando ele transmite um quinhão de conhecimento: explica de tal modo que ninguém esquece mais. Leva todos a sério e sabe ouvir antes de responder, não para um fim estreito, mas porque participa do impulso alheio. Quem lê a Caixinha de tesouros não tem jamais a sensação de que ali haja coisa de somenos: ele sabe relatar alguma coisa de notável sobre o que quer que seja, tudo importa, porque tudo tem vida própria, não apenas a espécie humana, mas também a toupeira, a aranha, o lagarto e até os planetas e cometas, como se também estes fossem vivos".

Abaixo, três historietas, traduzidas pelo Samuel Titan Jr. (entre elas, "Reencontro inesperado", que é uma aula de como fazer o tempo passar em uma narrativa, e que segundo o professor de natação Franz Kafka é "a história mais maravilhosa que há").
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O juiz astuto
É bem sabido que nem tudo vai tão mal no Oriente. Dizem que justamente por lá deu-se o episódio que segue. Um homem rico perdera por descuido uma considerável soma de dinheiro costurada num pano. Anunciou a perda e, como é de costume, ofereceu ao bom sujeito que o encontrasse uma recompensa - e de cem táleres. Logo apareceu um homem direito e honrado. "Encontrei o dinheiro! Deve ser este aqui! Tome o que é seu!" Disse isso com o olhar desanuviado de um homem honesto e de uma consciência em paz, o que era bonito de ver. O outro também se alegrou, mas só porque reencontrara o tesouro perdido - logo se verá a quantas andava sua honra. Contou o dinheiro enquanto pensava depressa em como negar a recompensa prometida. "Meu bom amigo," começou, "havia oitocentos táleres costurados no pano. Mas só restam setecentos. Imagino que tenha aberto uma das costuras e retirado os cem táleres da recompensa. E fez muito bem. Muito obrigado!" Isso não foi nada bonito. Mas a coisa não ficou por aí. A mentira tem pernas curtas, e quem com ferro fere, com ferro será ferido. O bom sujeito, que se importava menos com os cem táleres que com a reputação imaculada, assegurou que trouxera a trouxa assim como a encontrara e que a encontrara assim como a trouxera. No fim, foram ter com o juiz. Ambos confirmaram suas histórias: um, que havia oitocentos táleres costurados dentro do pano; o outro, que não tirara nada do achado e não tocara na trouxinha. Era um mato sem cachorro. Mas o juiz astuto, que parecia conhecer de antemão a honradez de um e as más intenções do outro, resolveu o caso da seguinte maneira. Ordenou que ambos confirmassem firme e solenemente tudo o que haviam dito e sentenciou: "Assim sendo, se um perdeu oitocentos táleres e o outro encontrou apenas setecentos, então o dinheiro deste último não pode ser aquele a que o primeiro tem direito. Você, honrado amigo, fique com o dinheiro que encontrou e conserve-o até que apareça quem tiver perdido apenas setecentos táleres. E a você, não sei qual conselho dar, exceto que tenha paciência até que se apresente alguém com os oitocentos táleres". Assim falou o juiz, e assim a coisa ficou.
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Pouso breve
O chefe da posta disse a um judeu que chegara à estação com dois cavalos: "Daqui para a frente são precisos três cavalos. A estrada segue ladeira acima e o leito está cheio de valas. São três horas até o final". O judeu perguntou: "E quanto tempo levo com quatro cavalos?". "Duas horas." "E com seis?" "Uma hora." "Sabe de uma coisa?", disse por fim. "Atrele oito, assim não preciso nem partir!"
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Reencontro inesperado
Em Falun, na Suécia, há bons cinqüenta anos ou mais, um jovem mineiro despediu-se com um beijo da noiva jovem e bela e lhe disse: "No dia de Santa Lúcia nosso amor será abençoado pela mão do pastor. Então seremos marido e mulher, e vamos construir nosso próprio ninho". "Onde a paz e o amor vão sempre morar", respondeu a bela noiva, com um sorriso gentil, "pois você é tudo para mim, e sem você eu prefiro o túmulo a qualquer outro lugar." Mas quando, pouco antes do dia de Santa Lúcia, ela pediu ao pastor que conclamasse pela segunda vez à igreja "quem soubesse de obstáculo que impedisse estas pessoas de se unirem em matrimônio", foi a morte que se apresentou. Pois no dia seguinte, ao passar pela casa da noiva em seus trajes negros de mineiro - o mineiro veste sempre o seu sudário -, o jovem bateu duas vezes à janela e ainda lhe desejou "Bom dia!"- mas "Boa noite!", nunca mais. Nunca mais voltou da mina, e foi em vão que, naquela mesma manhã, ela bordou para ele, para o dia do casamento, um lenço negro de barra vermelha; como ele não voltasse, ela abandonou o lenço, chorou por ele e jamais o esqueceu. Nesse meio-tempo, a cidade de Lisboa, em Portugal, foi destruída por um terremoto e a Guerra dos Sete Anos chegou ao fim e o imperador Francisco I morreu e os jesuítas foram suspensos e a Polônia, dividida e a imperatriz Maria Teresa morreu e Struensee foi executado, a América se libertou e as forças combinadas da França e da Espanha não puderam conquistar Gibraltar. Os turcos encurralaram o general Stein na Cova dos Veteranos, na Hungria e o imperador José morreu também. O rei Gustavo da Suécia conquistou a Finlândia aos russos e a Revolução Francesa e a grande guerra irromperam e o imperador Leopoldo II desceu também ao túmulo. Napoleão conquistou a Prússia e os ingleses bombardearam Copenhague e os lavradores semeavam e ceifavam. O moleiro moía, os ferreiros martelavam e os mineiros cavavam atrás dos veios de metal em sua oficina subterrânea. Mas no ano de 1809, pouco antes ou depois do dia de São João, quando tentavam praticar uma passagem entre dois poços a bons trezentos côvados sob a terra, os mineiros de Falun retiraram do entulho e do vitríolo o cadáver de um rapaz, todo embebido em sulfato ferroso, de resto intacto e inalterado, a tal ponto que era perfeitamente possível reconhecer suas feições e sua idade, como se ele tivesse morrido uma hora antes ou cochilado durante o trabalho. Mas quando o trouxeram para o ar livre, pai e mãe, amigos e conhecidos, todos tinham morrido havia muito, ninguém conhecia o rapaz adormecido ou sabia de sua desgraça, até que chegou a antiga amada do mineiro que um dia descera para o seu turno e nunca mais voltara. Envelhecida e encarquilhada, chegou apoiada numa muleta e reconheceu o noivo; mais radiante que sofredora, deixou-se cair ao lado do querido cadáver e, depois de se refazer do abalo na alma, disse por fim: "É o noivo por quem chorei durante cinqüenta anos e que Deus me permite ver de novo antes do meu fim. Oito dias antes do casamento, ele desceu à mina e nunca mais voltou". Então o ânimo de todos à volta foi tomado de tristeza e lágrimas, ao ver como a noiva de outrora tinha as feições murchas e sem viço da velhice e o noivo conservava sua beleza juvenil; e como, depois de cinqüenta anos, tornava a despertar nela a chama do amor juvenil, sem que ele abrisse a boca para sorrir ou os olhos para reconhecê-la; e como finalmente ela, a única a conhecê-lo e a ter direitos sobre ele, finalmente pediu aos mineiros que o levassem até a sua casinha, enquanto preparavam o túmulo no cemitério. No dia seguinte, quando o túmulo ficou pronto no cemitério e os mineiros vieram buscar o moço, ela abriu uma caixinha, tirou para ele o lenço de seda negra e barra vermelha e o acompanhou em seus trajes domingueiros, como se fosse dia de casamento e não de enterro. E no cemitério, quando o deitaram no túmulo, ela disse: "Durma em paz, mais um dia ou dez, no frio leito de núpcias, e não se aborreça. Tenho pouco a fazer, venho logo, e logo será um novo dia". "O que a terra devolveu, ela não tira outra vez", disse ainda, afastando-se, e olhou uma vez mais para trás.
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sábado, 11 de julho de 2009

enquetes pilosas

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Em 1963, aos 77 anos, Manuel Bandeira cortou-se fazendo a barba. Para disfarçar a ferida sob o nariz, decidiu deixar crescer o bigode. Acabou se afeiçoando ao amigo piloso e resolveu promover um plebiscito para ver se devia ou não "renunciar ao acréscimo fisionômico".

A polêmica dividiu a intelectualidade da época. "Não conheço o bigode de Bandeira, mas sou contra", rebelou-se o acadêmico Viriato Correia. "Bandeira não deve prejudicar com um feio bigode o seu aspecto sempre jovial. Além do mais, bigode é mais uma complicação para a vida do indivíduo", opinou o acadêmico Ivan Lins. "Admiro os dois estilos de Bandeira", ponderou Josué Montello. Para a poeta Eduarda Duvivier, o bigode caiu bem ao escritor. "Além disso bigode impõe respeito", disse. Pedro Bloch defendeu a liberdade de escolha do poeta: "Manuel Bandeira é dono do próprio nariz e adjacências". No ano passado, antes da Flip, a Folha perguntou ao Xico Sá, ao Michel Laub, a Adriana Lunardi, Contardo Calligaris, Vanessa Barbara e para mim o que era a literatura para cada um. Aqui, os depoimentos.
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