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"Antes de dormir, fiz a ronda habitual pela casa, para ver se tudo estava em ordem; a janelinha do banheiro, nos fundos, estava aberta — para secar durante a noite a camisa que eu usaria no dia seguinte —; fechei a porta (para evitar correntes de ar); na cozinha, a torneira da pia pingava e eu a apertei, a janela estava aberta e a deixei assim — fechando a persiana —; o lixo já havia sido levado para fora, os três botões do fogão elétrico estavam em zero, o botão de controle da geladeira dizia 3 (refrigeração suave) e a garrafa de água mineral aberta estava com a tampa hermética, de plástico; na sala de jantar, o grande relógio tinha corda para mais alguns dias e a mesa havia sido levantada; na biblioteca, tive que desligar a caixa de som, que alguém havia deixado ligada, mas o toca-discos se desligara automaticamente; o cinzeiro da cadeira havia sido esvaziado; a máquina de pensar em Gladys estava conectada e produzia o ronronar suave habitual; a janelinha alta que dava para o poço de ar estava aberta, e a fumaça dos cigarros do dia escapava, lentamente, por ela; fechei a porta; na sala, encontrei uma ponta de cigarro no chão; coloquei-a no cinzeiro alto, que a faxineira costuma esvaziar pela manhã; no quarto dei corda no despertador, verificando se a hora indicada coincidia com a do relógio no meu pulso, e programei-o para tocar meia hora mais tarde na manhã seguinte (porque eu havia decidido não tomar banho; me sentia um pouco resfriado); deitei e apaguei a luz.
De madrugada acordei inquieto, um barulho incomum me causou um sobressalto; me enrolei na cama e me cobri com travesseiros, coloquei as mãos na nuca e esperei o fim de tudo com meus nervos em tensão: a casa estava desmoronando."
"A máquina de pensar em Gladys", Mario Levrero, 1966
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"Antes de dormir, fiz a ronda habitual pela casa, para ver se tudo estava em ordem; a janelinha do banheiro, nos fundos, estava aberta — para secar durante a noite a camisa que eu usaria no dia seguinte —; fechei a porta (para evitar correntes de ar); na cozinha, a torneira da pia pingava e eu a apertei, a janela estava aberta e a deixei assim — fechando a persiana —; o lixo já havia sido levado para fora, os três botões do fogão elétrico estavam em zero, o botão de controle da geladeira dizia 3 (refrigeração suave) e a garrafa de água mineral aberta estava com a tampa hermética, de plástico; na sala de jantar, o grande relógio tinha corda para mais alguns dias e a mesa havia sido levantada; na biblioteca, tive que desligar a caixa de som, que alguém havia deixado ligada, mas o toca-discos se desligara automaticamente; o cinzeiro da cadeira havia sido esvaziado; a máquina de pensar em Gladys estava conectada e produzia o ronronar suave habitual; a janelinha alta que dava para o poço de ar estava aberta, e a fumaça dos cigarros do dia escapava, lentamente, por ela; fechei a porta; na sala, encontrei uma ponta de cigarro no chão; coloquei-a no cinzeiro alto, que a faxineira costuma esvaziar pela manhã; no quarto dei corda no despertador, verificando se a hora indicada coincidia com a do relógio no meu pulso, e programei-o para tocar meia hora mais tarde na manhã seguinte (porque eu havia decidido não tomar banho; me sentia um pouco resfriado); deitei e apaguei a luz.
De madrugada acordei inquieto, um barulho incomum me causou um sobressalto; me enrolei na cama e me cobri com travesseiros, coloquei as mãos na nuca e esperei o fim de tudo com meus nervos em tensão: a casa estava desmoronando."
"A máquina de pensar em Gladys", Mario Levrero, 1966
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