terça-feira, 31 de dezembro de 2013

capítulo méxico (2)

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Índia tarahumara; casa da Frida; casa do Trotsky; entrada da luta-livre; Tepoztlán; cachoeira de Cusarare; Chichén Tzá; Boca Paila, Tulum; cachoeira de Basaseachi & Palenque (caveira do coelho + templo) 
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terça-feira, 24 de dezembro de 2013

capítulo méxico (1)

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Quarto em San Jose del Cabo; baleias em Cabo San Lucas; no trem, pelas Barrancas, 650km até o Pacífico; marina de Los Cabos vista da piscina; pequena Sophie; noite no Bates Motel & o mar de Cortés
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sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

dias de montezuma

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Texto novo no blog da Companhia das Letras.

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Sexta-feira

É dezembro, quero começar esse texto com alguma ideia sobre inícios de viagem. Enrique Vila-Matas escreveu a respeito: algo como toda viagem ter começo e fim bem definidos, uma estrutura ideal para narrar. Mas estou longe de casa, sem meus livros, não consigo lembrar onde foi que li isso.

Do aeroporto, mando um e-mail para o catalão, contando que acabei de chegar no México, que estou escrevendo sobre o assunto etc. Duas horas depois, vem a resposta, uma mensagem longa e loucona, com o seguinte trecho: “Em geral, me excitam mais os preparativos do que a viagem em si. Talvez porque neles a imaginação seja muito poderosa, e tudo é possível antes de se colocar em movimento. Os preparativos se parecem àquele momento extraordinário de liberdade que vivenciamos ao começar a escrever um texto, e não ignoramos que assim que colocamos o lápis no papel seremos prisioneiros do território verbal e moral contido na primeira linha. De todo modo, também gosto de viajar; viajar para despencar do sonho”.


Sábado

Para reparar erros de férias passadas (em que fui soterrado nas minas de carvão dos livros na bagagem), trouxe comigo um único volume: México, do Erico Verissimo. Estou convencido de que nessas ocasiões precisamos de um livro apenas; para que anos depois a memória da viagem se mescle ao livro, ou numa imagem mais literária e semicafona: como se duas pessoas estivessem conversando e, no chão, suas sombras se alongassem uma sobre a outra — a intersecção das sombras seria a sensação misteriosa livro/viagem.

Lendo México, penso que Veríssimo é uma espécie de Tintim de cabelo penteado e pulôver nos ombros. Na primavera de 1955, esgotado pela rotina no departamento de assuntos culturais da Organização dos Estados Americanos, em Washington, ele sai de férias e vai explorar o país das tortillas e do único goleiro possível: Jorge Campos.

No centro de Guadalajara, vejo uma criança de óculos e tampão no olho esquerdo. Um indiozinho pequeno e bochechudo, de nariz escorrendo. Penso que daria um bom livro infantil, uma história cujo protagonista fosse o menininho com o curativo, usado para exercitar o olho preguiçoso. Imagino a curiosidade das outras crianças, tentando descobrir o que existe atrás da gaze, o porquê daquilo estar ali, deve esconder algo aterrador.


Domingo

Vou com duas amigas editoras chilenas, Catalina e Paulina, a um bar chamado I Latina, recomendado pelo escritor Juan Pablo Villalobos. Segundo Villalobos, trata-se de seu lugar favorito no mundo. É, de fato, excelente local para se estar no universo. Passo a noite me alimentando de michelada com clamato — cerveja, limão, sal, gelo, pimenta & polpa de tomate enriquecida com molho de marisco. Mais tarde, no hotel, vejo que meu pai me escreveu. Diz que acompanhou no El País a cobertura dos debates da Feira do Livro.

“Li reportagens, vi fotos (parabéns). A preocupação dominante é sobre a divulgação da literatura, leitores novos, o papel da internet, economia, edição. Fiquei me perguntando quando é que vocês vão começar a falar de literatura. Temas, estilo, narrador. Também queria saber o porquê de nunca mais ter ouvido música mexicana, que sempre gostei quando era jovem. Na próxima oportunidade, se estiverem falando de economia e mercado, levante essa questão. Sucesso. Pai.”


Segunda-feira

Participo de um encontro com alunos do Instituto Esperanza. Jovens entre quinze e dezoito anos. É um colégio de freiras. Ao fim da conversa, as freiras Olga e Clara me levam a um povoado cujo nome é uma homenagem ao Deus Asteca da Onomatopeia: Tlaquepaque. Passo a tarde com elas. Visitamos a igreja local. Tomamos suco de frutas numa panelinha de barro. Clara passou sete anos numa missão em Angola. Olga foi missionária no Peru. Conto a elas minha ideia de ir ao norte, pegar El Chepe, o trem que corta as montanhas. Clara diz que lá faz frio e que devo levar agasalho.

Na despedida, me dão uma tequila de presente. Tiramos fotos juntos. Clara diz que vai me adicionar no Facebook, o que de fato faz, poucas horas depois — no chat, me manda o emoticon de um gato gordo e feliz.


Terça-feira

À noite, num lugar chamado La Favorita, festa da editora Almadía. Conheço a mexicana Valeria Luiselli. Em Los Ingrávidos, Valeria escreve sobre dormir em camas alheias: “Eu não gostava de dormir sozinha no meu apartamento. Morava em um sétimo andar. Certa noite, enquanto fumávamos um cigarro fora do edifício, disse ao porteiro: não sei dormir aqui. O que você tem que fazer — ele disse — é sair daqui o máximo que puder. Voltar só para comer e tomar banho, nunca para dormir, porque, à medida que a pessoa vai passando noites em lugares diferentes — pensões, hotéis, quartos emprestados, camas compartilhadas —, conhece mais sua intimidade”. No fundo, esta é a narrativa de toda viagem: passamos dias e dias dormindo em quartos e camas onde nunca estivemos antes.


Quarta-feira

Ônibus para a Cidade do México. Sete horas de viagem.


Quinta-feira

Que lugar dramático e maravilhoso, a Cidade do México. É uma metrópole espalhada. Tudo é longe. Há uma avenida, Insurgentes, que atravessa a capital, de norte a sul. Ando pelo centro. Vou ao Templo Maior. As construções ao redor foram erguidas sobre o cadáver da Tenochtitlán asteca, sobre um leito de areia, lava e rocha porosa. A impressão é de que tudo afunda. As fachadas dos prédios parecem estar fendidas, torres inclinadas. Mesmo com sol (o céu não tem uma nuvem), há um ar escuro. Na praça, o zócalo, fica a igreja que os conquistadores espanhóis ergueram com as mesmas pedras do templo asteca. O Palácio Nacional sobe no lugar onde foi a residência do imperador Montezuma. Vou até a pulqueria La Risa. É um lugar minúsculo, frequentado por jovens emos mexicanos. O pulque é a bebida clássica mexicana, muito antes do mezcal ou da tequila. Trata-se de uma água viscosa, extraída do maguey, um tipo de cacto. O líquido nefasto (nos sabores maçã, maracujá, aveia e mamão) é servido em canecas gigantes.


Sexta-feira

Passo a madrugada com febre, vomitando (a maldição de Montezuma). Havia combinado de ir ao povoado de Tepoztlán com a adorável tradutora Paula Abramo, seu marido Oscar e uma poeta israelense. Penso em escrever a eles, dizer que desisti do passeio.

Mas penso que se conseguir dormir, posso estar melhor pela manhã. Não prego os olhos. Às 10h30, ouço a campainha. É Paula. Estou um lixo humano. Mesmo assim, resolvo ir. Tepoztlán significa “lugar do cobre”, na língua asteca. No entanto, não há minas de cobre. Paula me diz que há uma explicação poética: a cor de cobre das montanhas, no fim da tarde.

Oscar e a amiga poeta sobem a trilha até a pirâmide, no alto da montanha. Paula e eu ficamos na cidadezinha. Caminhamos pela feira de comida. Visitamos o convento. Durmo algumas horas na biblioteca do convento.


Sábado

Consigo me recuperar a tempo da conversa na Universidade do México (UNAM). Lá, conheço um grupo de tradutores de literatura brasileira. Consuelo, uma das tradutoras, acaba de ler Barba ensopada de sangue e está empolgada. A cidade universitária mexicana lembra a USP. O Estádio Olímpico, dos Pumas, é um dos mais bonitos que já vi. A biblioteca é um prédio de treze andares coberto por murais coloridos com motivos astecas, cenas que representam bons e maus aspectos da Conquista.

No fim da tarde, tomo o caminho de volta. Estou hospedado na casa de uma amiga mexicana, Claudia. Ela mora com Mario, um barbudo dono de uma loja que vende, conserta e projeta bicicletas. Também residem no lugar três gatos, Tito, Yoshi e José Guadalupe Flores. À noite, vamos à luta-livre. Confronto entre El Místico y Valiente e Psyco Ripper. Há luta entre anões também (um deles, o anão vestido de macaco, com uma roupa azul e peluda). Perto da uma da manhã, reencontro as chilenas, Catalina e Paulina, que acabam de chegar de Guadalajara. Vamos a um bar em La Condesa chamado Salinger.

Tomamos mojito e ficamos tentando lembrar das últimas frases do Apanhador, quando Holden diz que mal acaba de contar e começa a sentir uma espécie de saudade de todo mundo que entrou na história.

Nos despedimos. Pego um táxi. O taxista, de uns oitenta anos, conta que foi mariachi. Abaixa o som do rádio e canta uma música.


Domingo

Acordo, nova mensagem de Vila-Matas:

“Emilio, fiquei muito impressionado quando li uma microbiografia do poeta do século dezenove Antero de Quental, incluída em Dama de Porto Pim, de Antonio Tabucchi. Nela se contava que depois de uma longa temporada em Lisboa, o poeta dos Açores, o mais trágico de todos, regressa a suas ilhas cheio de sonhos — sonhos que caem por terra poucos meses depois.

Em sua pátria, desesperado com a solidão, descobre a existência do nada e se mata em Ponta Delgada, com um tiro, em um banco verde em frente ao mar, em pleno meio-dia, sob o muro branco do Convento da Esperança, onde existe uma âncora azul desenhada na parede caiada.

Um meio-dia, em minha primeira viagem para os Açores, fui ao tal convento, para me sentar no banco verde em que Antero se matou. Encontrei tudo exatamente igual, inclusive seguia ali a âncora azul desenhada na parede branca. Todavia, de todos os bancos da área, o de Antero era o único que estava ocupado. Era quase propriedade de uns mendigos que não arredavam pé. Tive que esperar duas horas até que fossem embora. Então, me sentei no banco. Havia o mesmo mar daquele distante meio-dia. A mesma praça, as mesmas árvores, o mesmo brilho na água — nada muda, tudo segue igual, eu pensei. Esse é o tipo de viagem que gosto de fazer.

Abraço, espero vê-lo em São Paulo, na próxima viagem. Enrique.”
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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

meia branca, fio de cabelo, caroço de ameixa

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Texto novo no blog da Companhia das Letras.
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Mother, do sul-coreano Joon-ho Bong, começa assim:



Apesar da dança excelente, esta cena de abertura pode sugerir que pela frente vamos esbarrar numa história: lírica, existencial, morosa e/ou contemplativa. Nada mais errado. Mother é um thriller dos melhores, conduzido por roteiro de fazer o cinema recente argentino esturricar e cair para o lado — em notas relacionadas: o melhor filme que vi em 2013 foi de um sul-coreano também, A visitante francesa, de Sang-soo Hong.

Joon-ho Bong é um dos meus diretores favoritos. É dele O hospedeiro, filme de monstro e mutações genéticas divertido até para quem nutre interesse negativo por filmes de monstro e mutações genéticas — para quem gosta de H.P. Lovecraft vale muito. Recentemente, foi lançada a primeira produção de Bong fora da Coreia (com Tilda Swinton e Chris Evans), Snowpiercer. O argumento é animador: o mundo sofreu um colapso climático, e um grupo de humanos sobrevive e evolui num trem, que dá voltas pela Terra, sem nunca parar. Mas confesso que o trailer me deixou meio triste (muita LUTA, tudo muito grandioso demais), e parece que o estúdio interferiu e o diretor não gostou nada do corte final também.

Mas voltemos a Mother.

A premissa do filme é simples: uma mãe superprotetora quer provar a inocência do filho adolescente num caso de assassinato. Uma colegial da pequena cidade foi morta de maneira brutal e pendurada de cabeça para baixo na sacada de uma casa, à vista de todos. Há policiais ineficientes (que assistem CSI e não se lembram da última vez que investigaram um homicídio); há um drama do passado (instalado de maneira rápida e sem muitas explicações — como se deve ser); há uma mãe que, espécie de Charles Bronson versão coreana acupunturista de meia-idade, se vê sozinha e decide fazer justiça com as próprias mãos.

Com as próprias mãos é uma expressão adequada aqui, já que Hye-ja, a mãe do título, carrega sempre consigo seu estojinho com agulhas de acupuntura. Esse detalhe (o estojinho, o fato de a personagem fazer acupuntura) está longe de ser apenas pitoresco. Pensei nisso dia desses ao rever um outro filme, Aqui é o meu lugar, de Paolo Sorrentino, em que Sean Penn vive um astro de rock velho e decadente.

Quando assisti ao filme de Sorrentino, fiquei com a impressão de que a história se afogou em uma espécie de excesso de extravagâncias. Era como se a sequência de esquisitices e de tiradas espirituosas do personagem, o tempo todo, sem descanso, fizesse tudo parecer amorfo, gratuito. Nada se destacava nem repercutia na trama. Todos os detalhes e imagens criados por Sorrentino pareciam simplesmente a serviço deles mesmos (veja como sou estranho!). Em Mother, ao contrário, a acupuntura e o estojinho com as agulhas, detalhes simples, estão no coração do enredo, de maneira tão exata que dão a impressão de que sempre estiveram ali. Não posso me estender em como isso se desenvolve, estaria incorrendo no crime do spoiler, mas creia: são detalhes que atuam como fios condutores, leitmotivs.

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Nem todos detalhes e objetos de uma trama devem funcionar assim, claro.

Mas essa era uma das formas como Robert Louis Stevenson (1850-1894) pensava o detalhe em suas histórias. O autor de A ilha do tesouro pregava certa economia no seu uso. Acreditava que contra um fundo escasso o efeito seria mais eficaz, mais plástico, mais visual. Stevenson se insurge contra certos autores de seu tempo que, “após Sir Walter Scott”, passaram a encher de detalhes seus relatos. Queixa-se de que os detalhes ou particularidades dominaram o romance até o ponto em que já não existe mais lugar para a imaginação do leitor.

O que parece ocorrer é um congestionamento visual, seja através do excesso de detalhes realistas evocado por Stevenson, ou do excesso de detalhes cool-extravagantes à Sorrentino — importante dizer que nem Aqui é o meu lugar, nem Mother são filmes que se pretendem realistas.

Do lado realista-sério, James Wood dedica ao detalhe todo um capítulo de Como funciona a ficção. E confessa também “certa ambivalência em relação ao uso do detalhe”. “Gosto, saboreio, reflito sobre ele [...]”, afirma. “Mas o excesso de detalhes me sufoca, e acho que certa tradição claramente pós-flaubertiana os transformou em fetiches”.

Num dos momentos mais interessantes do livro, o crítico inglês responde a um famoso texto de Roland Barthes, “O efeito do real”, em que Barthes argumenta a partir de um trecho do conto “Um coração simples”, de Flaubert (“Rente ao lambril, pintado de branco, alinhavam-se oito cadeiras de mogno. Um velho piano sustentava, logo abaixo de um barômetro, uma pilha piramidal de caixas e cartões”). O piano, diz Barthes, está ali para sugerir uma condição social burguesa, as caixas e cartões talvez para sugerir desordem. Mas por que há um barômetro? O barômetro não denota nada; é um objeto aparentemente “irrelevante”.

Wood, com sua verve habitual, comenta que Barthes “é rápido demais em decidir qual detalhe é relevante e qual é irrelevante” na cena, e anota que “a categoria do irrelevante ou inexplicável existe na vida, assim como o barômetro, com toda a sua inutilidade, existe em casas reais”. O barômetro, portanto, não é “irrelevante”; é “significativamente insignificante” — o objeto revelaria, afinal, algo sobre o tipo de casa do personagem em questão: de classe média, e não alta; convencional; aparentemente antiquada. Wood diz, por fim, que o romance pós-Flaubert pede uma “combinação de detalhes: alguns relevantes, outros estudadamente irrelevantes”.

Em A Note on Realism, Stevenson volta ao tema, parece dialogar com Wood. (E acho bonito pensar em como Wood e Stevenson podem estar próximos — apesar de Wood não citá-lo nenhuma vez em seu livro, o que considero injusto, já que Stevenson pensou e polemizou como poucos sobre essas questões, e eu talvez esteja escrevendo este texto apenas para vê-los assim, de mãos dadas).

Stevenson diz que tem o costume de usar poucos detalhes supérfluos em suas histórias, mas que dá muita importância ao emprego sutil de certo tipo de detalhe. Faz então uma distinção, divide os detalhes em duas categorias. Há, para ele, uma categoria de detalhes que une diferentes momentos de um relato (atuando como leitmotivs) ou que ajuda a reforçar uma cena importante e emblemática; e outra de detalhes pouco relevantes, “inexplicáveis ou anômalos”, mas que levam o leitor a imaginar uma história para justificar a presença deles.

Nas mãos de Stevenson, o detalhe “significativamente insignificante” de Wood abre “perspectivas de relatos secundários”. Um exemplo, dado pelo crítico Daniel Balderston: a lista de coisas encontradas no baú do pirata Billy Bones em A ilha do tesouro. Uma caixa de lata, cigarros, dois pares de pistolas, um velho relógio espanhol, bússolas de bronze, cinco ou seis conchas raras das Índias Ocidentais. Esses detalhes poderiam ser trocados por outros; não têm nenhuma importância crucial. Mas aqui o leitor se vê obrigado a ir além do texto, a inventar (ou ao menos vislumbrar) as histórias que ocultam esses compassos, pistolas, relógio espanhol, conchas raras etc.

Lendo, fico feliz quando um detalhe RELUZ, assim, como o estojinho das agulhas de acupuntura de Hye-ja — ou como o barômetro de Flaubert, as bússolas de Stevenson.

Meus três detalhes/objetos preferidos do universo estão em Lolita, de Nabokov, numa cena que é também uma aula excelente de como antecipar a entrada de um personagem em cena. Levado pela criada, o narrador do livro, Humbert Humbert, visita a residência da sra. Haze, em busca de um quarto para alugar. Ele sabe que não vai ficar ali, desgosta de tudo. Mas vai passando de cômodo em cômodo, torcendo o nariz, pensando os piores pensamentos possíveis. Até que Humbert tem uma visão do banheiro, onde “coisas úmidas e informes pendiam acima da banheira duvidosa”, entre elas “o ponto de interrogação de um fio de cabelo colado a uma das paredes”.

Depois, atravessa a cozinha no final do hall, passa por uma despensa, entra na sala de visitas. Lá, percebe, no meio do caminho, uma meia branca atirada no chão, um único pé — que a sra. Haze apressa-se a jogar dentro de um armário. Mais adiante, quase no pátio, sobre a mesa de mogno, vê uma fruteira, vazia; no centro apenas um caroço, ainda úmido, de uma ameixa. Então, pouco mais de uma página depois, surge Lolita.
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quarta-feira, 9 de outubro de 2013

the arm is not an arm, the arm is a head

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"In the backseat, Chibo was breathing hard—my brother hunkered down, his wheels spun in the void, the cables were cut, his wings would free themselves from the wreckage, and we’d all fall. I already knew that we’d lost contact with the base, but I didn’t tell Moptop, who looked anxiously at his insideout shirt, looked at the three small stones in his hand, looked at me.

Falling, falling, more than 20,000 feet, Moptop inserted the transmitters into his pocket, into the package of gumdrops. It was as if he were archiving the definitive evidence of the case. Through static I heard Bruno repeating: Moptop goes west. My area’s the pond. Nobody talks to nobody. Whoever gets captured better—and he was cut off by a noise, a shrill sound, heavy breathing. Then we started walking, me and Moptop (and it was an odd day), until we split up. He waved back, then kept going, singing softly:

'The arm is not an arm, the arm is a head.' I went in the opposite direction, toward the red-all-over tree, 'the mouth is not a mouth, the mouth is a bellybutton,' until the sound fadedaway."

Trecho d'O Verão do Chibo, traduzido pela Katrina Dodson, no número especial da revista da Biblioteca Nacional, publicado na Feira de Frankfurt.

Capítulo inteiro aqui.
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terça-feira, 1 de outubro de 2013

blue

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"She Found Now", My Bloody Valentine, m v b, 2013
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terça-feira, 24 de setembro de 2013

antídoto contra adulto

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Texto novo para o blog da Companhia das Letras:
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Na época em que registrava minhas eletrizantes atividades diárias numa agendinha com adesivos de surfwear (a saber: “acordei, tomei café, vi televisão, joguei videogame, jantei e dormi”), eu tinha duas leituras prediletas: a revista Mad e a Seleções do Reader’s Digest.

Ao contrário da Globo Ciência cuja assinatura pedi para o meu pai e a revista bateu à nossa porta apenas duas ou três vezes, a Seleções nós recebemos pelo resto de nossas vidas, mesmo depois de a assinatura expirar, e de ter sido cancelada, e de ninguém saber ao certo se chegou a ter realmente assinado a revista algum dia. O fato é que durante anos fizemos parte do seletíssimo grupo que travava contato mensal com histórias como a do avô que lutou com um crocodilo para salvar a vida de seu cachorro ou a da mulher para quem o incêndio da própria casa acabou sendo inspirador.

Na Mad, o que eu mais gostava era de uma seção chamada “A Mad Look At...”. Eram quatro ou cinco páginas sem diálogos com tirinhas relacionadas a um determinado tema. A seção contemplava um amplo espectro de assuntos, que iam de “Mad vê o namoro” a “Mad vê os contos-de-fada”, passando por “instrumentos musicais”, “enfermeiras”, “dinossauros”, “camping”, “serviço militar”, “zumbis” “aquecimento global”, “cabelo” etc.

Seu autor, o espanhol radicado nos Estados Unidos Sergio Aragonés, é até hoje um dos principais colaboradores da revista. A Mad foi fundada em 1952, Aragonés estreou em 1963 e até a edição de número 500, publicada em 2009, havia contribuído em 424 números. Seu traço arredondado, seus personagens desajeitados, seu sarcasmo simpático: para mim, o desenhista era o centro, terno e afetivo, da revista. (Em tempo: Aragonés é autor também de outra série emblemática, a das pequenas charges feitas nos cantinhos das páginas da Mad, as “Marginais”. São vinte e cinco desenhos por edição, e nos últimos cinquenta anos apenas um número da revista ficou sem as miniaturas — porque foram extraviadas pelo correio).

Lembro de uma de suas tirinhas em que um caminhão passava em frente à porta da Mad e despejava um latão cheio de lixo. No quadro seguinte, os editores, redatores e desenhistas iam até a calçada e, felizes da vida, recolhiam o lixo para dentro da redação. Lixo, afinal, era o que se dizia ser a matéria-prima da revista — o que inclui o papel-jornal ISO 9000 do Horror em que a Mad era impressa. No prefácio que escreveu para um dos mais destemidos romances do século XX, Ferdydurke, de Witold Gombrowicz, Susan Sontag diz algo que me faz pensar nessa charge — e na Mad, na Reader’s Digest e em todas as leituras ruins (mas boas), em todas as capas de livros feias (mas bonitas), em tudo aquilo que não faz sentido (mas faz): “A adolescência porca pode parecer um antídoto drástico para a maturidade presunçosa, e é exatamente isso o que Gombrowicz tem em mente”.


Esse é o grande tema de Gombrowicz. Como declarou no fim da vida: “Imaturidade — que palavra contemporizadora e desagradável! — tornou-se o meu grito de guerra”. Ferdydurke é a história de um homem de trinta anos que é raptado e se vê subitamente de volta ao colégio. Em meio a duelos de caretas e professores que mais parecem fatias de uma pizza amanhecida, ele proclama a imaturidade como a única maturidade possível.

É conhecida a história de que em 1939 Gombrowicz saiu da sua Polônia natal para fazer a viagem inaugural de um navio rumo a Buenos Aires. Depois de uma semana na cidade, a Alemanha declarou guerra a seu país, obrigando o escritor a permanecer na Argentina. Sua estadia, que seria de alguns dias, durou vinte e quatro anos. (O caráter acidental deste exílio, no entanto, acaba de ganhar nova versão, com o recém-lançado Kronos, um complemento de seu Diário que só agora veio a público — neste novo relato, Gombrowicz revela que sua permanência na Argentina não fora casual: a viagem havia sido estimulada por sua família, que queria afastar do território polonês o jovem autor, ante a ameaça de iminentes ações bélicas.) Seja como for, Gombrowicz se viu, assim, longe da Europa e lançado no “imaturo” Novo Mundo. 

“A principal característica da Argentina é a de uma beleza jovem e baixa, próxima do chão”, escreveu em seu Diário argentino. “Aqui, somente o vulgo é distinto. Apenas a juventude é infalível. É um país ao contrário, onde o vendedor ambulante de uma revista literária tem mais estilo do que todos os colaboradores da mesma revista.” Longe de casa, Gombrowicz vai precisar aprender os códigos locais, se adaptar, e não conhece ninguém, não sabe falar a língua, está sozinho e numa posição inferior. “Sempre tive inclinações a buscar na juventude, na própria ou na alheia, um refúgio frente aos ‘valores’, ou melhor, frente à cultura. A juventude é um valor em si, é destruidora de todos os outros valores, porque ela se basta, não necessita de nada mais. Diante do aniquilamento de tudo o que até agora possuía: pátria, casa, situação social e artística, eu me refugiei na juventude.” 

Ferdydurke foi publicado no fim de 1937, dois anos antes da viagem de Gombrowicz. A Mad tornou-se famosa durante os anos 60 e 70, no auge da contracultura. Em seu prefácio, para a edição da Yale University Press (de 2001), Sontag diz que, apesar de Ferdydurke ser um romance extravagante, brilhante, audaz e perturbador, a defesa que o autor faz da imaturidade, da juventude e de tudo o que é inferior: envelheceu. Os alvos contra os quais Gombrowicz se insurge já não existem mais. “Os ideais, de estilo europeu, de maturidade, de cultura, de sabedoria cederam claramente seu lugar às celebrações, de estilo americano, do Jovem Para Sempre”, escreve a crítica. 

Para o olhar (maduro) de Sontag, o descrédito da literatura e de outras expressões da “alta” cultura como elitistas e antivida é um produto da nova cultura presidida pelos valores do entretenimento. “Hoje, quem proclama que ama o ‘inferior’, alegará que isso não é nada inferior; é na verdade superior”, anota a norte-americana. “Dificilmente haverá, entre as acalentadas opiniões contra as quais Gombrowicz se batia, alguma que ainda seja acalentada.” 

Sontag tem um ponto. Mas, ao mesmo tempo, me parece uma alegria que em algum lugar exista Witold Gombrowicz e que possamos voltar a ele de vez em quando. Quando os tempos ficam estranhos e tudo parece igual e ditado por certo “bom-gosto” orgulhoso de si — um “bom” livro, “bom” vinho, “boa” música, “boa” arquitetura, “boa” maneira de se vestir —, faz sentido ler Gombrowicz e a sua defesa furiosa e amalucada do imperfeito. 

Como um Lewis Carrol às avessas (se pensarmos na moral vitoriana e nos jogos verbais engraçadinhos e assexuados de Carrol), Gombrowicz funda um país das maravilhas turbinado por sexo, acaso, ironia e desejo, e coloca em questão as formas cristalizadas e convencionais da língua literária. Nesse sentido, tanto ou mais que Ferdydurke, Cosmos é a sua obra-prima. O que Gombrowicz parece nos dizer é: só assim, em lugares escuros, toscos, arriscados e inesperados, é possível captar os tons de um novo estilo. 

Antes do ponto final: a leitura mais interessante e surpreendente de Gombrowicz quem fez foi Ricardo Piglia. Em “O romance polonês”, ensaio de Formas breves, o escritor argentino aproxima Gombrowicz de Borges, o que à primeira vista parece impossível — Borges, o europeu; o escritor sério e maduro por excelência. Não vou entrar em detalhes aqui, a coluna ficaria muito longa, mas vale a pena dar uma olhada: o texto de Piglia faz todo sentido e coloca em perspectiva a leitura histórica feita por Sontag, dando ainda mais brilho ao sempre jovem Gombrowicz. 
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domingo, 1 de setembro de 2013

duas entrevistas + booktrailer

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No Em Movimento, do Arte 1, em 2013:
http://arte1.band.uol.com.br/familia-e-memoria

No Entrelinhas, da Cultura, em 2010:
http://www.youtube.com/watch?v=kBmXF0K89to

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quarta-feira, 21 de agosto de 2013

dar a real

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Texto novo para o blog da Companhia das Letras:
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Na literatura (e na vida, e nas redes sociais, que cada vez mais se embaralham), há narradores cuja principal característica é DAR A REAL sobre o mundo. Os de Thomas Bernhard, por exemplo.

Como se fossem cromos autocolantes do desprezo e da maledicência, é possível colecionar as passagens, de um mau humor cáustico (e cômico), em que os narradores de Bernhard esmagam e pisoteiam a Áustria, a Suíça & tudo que se move por ali, onde o “ar é irrespirável” e “as pessoas insuportáveis”. Para eles, Salzburgo é uma “estúpida cidadezinha provinciana, cheia de idiotas, onde com o tempo tudo se reduz à estupidez, sem exceção”. De Viena a Linz, a viagem é uma verdadeira “jornada pelo mau gosto”. E em Chur, basta dormir uma única noite para que “um homem se arruíne para toda a vida”. Isso sem falar nas apreciações sobre o ambiente artístico desses lugares. Diante de narradores tão simpáticos, podemos fazer aquela perguntinha assaz estimada pela sensibilidade do nosso tempo: o que há de Thomas Bernhard nestes narradores? É isso que o autor pensa de fato?

Conhecendo os relatos “não-ficcionais” de Bernhard (como o magnífico Origem), a resposta dele seria algo como: “sim, no geral penso exatamente como o narrador de O náufrago, abs”. O que, no fundo, claro, não faz diferença. Porque sendo as mesmas de seu autor ou não, as opiniões e vozes de personagens e narradores de um romance estão contidas na visão de mundo do autor. Assim, a complexidade moral de um romance é diretamente proporcional à complexidade moral de seu autor, cuja visão de mundo está difusa, sempre, por toda a obra (e uma visão de mundo pode ser cheia de nuances — caso de Bernhard, cujo narrador-assertivo-que-dá-a-real faz parte, em seu exagero e intransigência, de um complexo maquinário narrativo — ou estreita, maniqueísta, baseada num episódio dos Ursinhos Carinhosos, que protegem a Terra do mal e do temido vilão Coração Gelado, que tenta a todo custo acabar com o amor no planeta — nada contra o desenho dos ursos, que entendo, admiro e respeito).

Em textos que jogam declaradamente com a ideia de autoficção, esse movimento de DAR A REAL ganha especificidades. Um exemplo interessante é o de Diário de um ano ruim, de J. M. Coetzee. De forma esquemática, e pelo efeito dramático da frase, dá para dizer que neste romance Coetzee se propõe a dar a real sobre o narrador que dá a real. Na forma de uma impressionante reflexão sobre as “opiniões fortes” do personagem-assertivo-que-dá-a-real, Coetzee põe em perspectiva todo discurso panfletário e “combativo”, marcado por um “tom de sabe-tudo”, de alguém que tem “todas as respostas” e diz “é assim que é”.

O crítico Adriano Schwartz faz uma análise precisa do referido romance neste ótimo texto sobre certa “tendência autobiográfica no romance contemporâneo”. Diário de um ano ruim, cuja primeira parte chama-se, justamente, “Opiniões Fortes”, é a história de J.C., um escritor velho e cansado que passa a duvidar do impacto, da autoridade e da relevância da ficção no mundo contemporâneo — “não tenho mais paciência para escrever um romance”, diz. A convite de um editor alemão, passa então a redigir opiniões sobre os mais diversos assuntos (“quanto mais controverso melhor”). É nesse contexto que conhece a belíssima Anya, uma jovem filipina de vinte e nove anos, a quem propõe um trabalho: ajudá-lo a passar para o papel esses textos, essas opiniões. Ele dita, ela datilografa. As “opiniões fortes” de J.C. versam sobre tudo: Guantánamo, design inteligente, o apartheid, direitos dos animais etc. Muitas delas são ideias defendidas ou debatidas pelo próprio Coetzee, de quem o personagem fictício toma emprestado parte das iniciais, bem como uma série de outros dados biográficos (ambos escreveram um romance chamado À espera dos bárbaros, ambos possuem um volume de ensaios sobre a censura, ambos são sul-africanos radicados na Austrália).

Há, portanto, um jogo duplo. Coetzee faz uso de elementos não-ficcionais para escrever um romance que problematiza justamente a descrença na ficção — é a autoficção debruçando-se sobre si mesma. Num primeiro momento, o que Coetzee parece dizer é: num contexto em que “verdade” e “autenticidade” carregam um valor em si mesmo, a enunciação de afirmações reais e definitivas toca o leitor com muito mais eficácia. Para que então submeter o leitor aos artifícios do romance?

Só que Coetzee, através da jovem Anya, vai colocar isso tudo em questão. Para ela, as “opiniões fortes” do velho escritor não passam de textos chatos que causam bocejos e tédio profundo. Além disso, aponta Schwartz, esse “dar a real” é um grito que busca silenciar todo o resto. O que se assemelha à retórica política — e “política é berrar para calar a boca dos outros e conseguir o que você quer”, diz Anya.

No início, J.C. não concorda, os dois discutem, ela chega a dizer que não vai mais datilografar as tais opiniões. Mas, aos poucos, o romance avança, e a jovem filipina vai conseguindo modificar o velho homem. Então, em determinado ponto, numa demonstração plena do alcance da sensibilidade de Coetzee, J.C. comenta: “o que começou a mudar desde que eu entrei na órbita de Anya não são tanto as minhas opiniões em si, mas minha opinião sobre as minhas opiniões”.

O ponto de partida de J.C. não está errado: para a nossa sensibilidade (criada à base de reality shows, imagens amadoras captadas por celular, redes sociais etc.), a autoficção parece mesmo levar vantagem em comparação ao romance. Nela, há um pacto com o leitor: a matéria-prima do relato são experiências “reais”, “vividas”. E, hoje, quando sabemos que estamos diante de uma narrativa “baseada em fatos reais”, nossa atenção parece ser capturada com mais facilidade. Mesmo que o texto de um romance e de uma autoficção sejam absolutamente os mesmos, a disposição do leitor será distinta em cada uma das experiências.

Todavia, para além deste proveito (maior autoridade do narrador), decidir embaralhar verdade e ficção, e apresentar uma narrativa como autoficcional, tem suas implicações. Ou, pelo menos, deveria ter; senão, de outra forma, bastaria escrever um romance tradicional.

No caso de Coetzee, um parâmetro ético de toda prosa que se pretende autoficção parece ser estabelecido: colocar em xeque as convicções de seu protagonista. A autoficção seria o lugar de pensar contra si mesmo. Não há espaço para autopiedade. Não há heroísmo. A autodilaceração não é feita com a faquinha do bolo Pullman. O que existe é tentar diagnosticar as próprias limitações, analisá-las mesmo que a contragosto; deixar que nossas certezas sejam ameaçadas.

Seja colocando em perspectiva as “opiniões fortes” de J.C. em Diário de um ano ruim, seja no dilacerante autoescrutínio que realiza o narrador frio e distante da “trilogia autobiográfica” Infância, Juventude e Verão, os personagens de Coetzee se expõem verdadeiramente. E há uma diferença cabal que deve ser notada aqui. Se alguém nos pergunta “qual o seu principal defeito?”, pode-se responder, de maneira hipócrita: “a sinceridade, sou muito sincero, sabe?”. No caso dos protagonistas da autoficção de Coetzee, a resposta nunca vai ser menos do que: sou um “mosca-morta”, um “tapado distante da realidade”, um homem “sem presença sexual nenhuma”. Além disso, há outro ponto a ser considerado: o da autoridade e complexidade de quem enuncia essas apreciações.

Em Verão, o escritor John Coetzee já está morto quando um biógrafo inglês decide escrever um livro sobre ele. Sem ter conhecido pessoalmente o biografado, o pesquisador consulta cadernos de anotações e decide falar com algumas fontes. Uma delas é Julia, vizinha de John Coetzee na Cidade do Cabo, com quem o escritor-personagem teve um caso. Coetzee, autor, constrói Julia de maneira complexa. O que significa dizer: alguém nem totalmente bom, nem totalmente ruim; nem esplêndido, nem convencional etc. Sentimos empatia por John, mas também sentimos por Julia. Dessa forma, se as opiniões de Julia sobre ele não são verdades absolutas (é um ponto de vista, afinal), estão longe de serem absurdas. Ao submeter John Coetzee a um exame desse tipo, o relato de Coetzee ganha força e se afasta de qualquer hipocrisia.

Em determinado momento da entrevista, por exemplo, Julia conta sobre a noite em que Coetzee chegou à sua casa com um pequeno toca-fitas e um K7, um quinteto para cordas de Schubert. “Não era o que se pudesse chamar de música sexy, nem eu estava muito no clima”, diz Julia, “mas ele queria fazer amor e, especificamente — perdoe se sou explícita —, queria que a gente coordenasse nossas atividades com a música, com o movimento lento. [...] Não sei se lembra do movimento lento, mas tem uma longa ária de violino com a viola pulsando por baixo, e dava para sentir John tentando manter o mesmo ritmo. A coisa toda me parecia forçada, ridícula. [...] ‘Esvazie a mente!’, ele sussurrou para mim. ‘Sinta através da música!’ Bom, não tem nada mais irritante do que dizerem o que você tem que sentir. Eu me afastei dele e esse pequeno experimento erótico desmoronou na hora. [...] Eu nunca contei isso para ninguém antes do senhor. Por que não? Porque achei que ia lançar uma luz muito ridícula sobre John. Quem, senão um pateta total, mandaria a mulher por quem deveria estar apaixonado tomar lições de sexo com um compositor morto? [...] Não dá para saber se é para rir ou chorar!”

Ao final do relato de Julia, o biógrafo-entrevistador comenta: “A senhora está sendo um pouco dura com ele, se me permite dizer”. Ao que Julia responde, fechando o capítulo: “Não, não estou. Só estou dizendo a verdade. Sem a verdade, por mais dura que seja, não pode haver cura.” Coetzee parece, assim, conferir à autoficção aquela que poderia ser sua norma de arte e ética: dar a real, sim, mas sobre si mesmo.
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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

nem totalmente bom, nem totalmente ruim; nem heroico, nem destituído de heroísmo; nem esplêndido, nem privado de momentos luminosos

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"É óbvio que Homero e a natureza não são uma coisa só, e que Tolstói e a natureza não são uma coisa só. De fato, aquilo que chamam de objetividade de Homero, ou de Tolstói, não é objetividade de maneira nenhuma. Muito ao contrário, trata-se da mais opulenta e pródiga subjetividade possível, pois cada objeto na Ilíada e em Anna Kariênina existe no ambiente daquilo que devemos denominar de amor do autor. Mas tal amor é tão generalizado, tão constante e tão equitativo que cria a ilusão da objetividade, pois tudo na narrativa, sem exceção, existe na narrativa, assim como tudo, sem exceção, na natureza existe no tempo, no espaço e na atmosfera. Para perceber o caráter da objetividade de Tolstói, basta compará-la à de Flaubert. Da forma como a palavra é empregada na crítica literária, Flaubert deve ser considerado tão objetivo quanto Tolstói. No entanto, está claro que a objetividade de Flaubert é carregada de irritabilidade, e a de Tolstói, de afeição.

Para Tolstói, todos e tudo possuem uma graça salvadora. A exemplo de Homero, ele dificilmente nos permite optar entre os antagonistas — assim como não nos atrevemos a dar toda a nossa solidariedade nem para Heitor nem para Aquiles, ou, em sua cena decisiva, nem para Aquiles nem para Príamo, também não podemos dizer, entre Anna e Aleksei Kariênin, ou entre Anna e Vrónski, quem está certo ou errado. Mais que qualquer outra coisa, e sem dúvida anterior a qualquer habilidade especificamente literária que possamos isolar, é essa faculdade moral, essa faculdade de afeição que explica a singular ilusão de realidade que Tolstói cria. Ele é capaz de mostrar seus personagens em sua inteireza e em sua contradição, em seus fracassos e em seus grandes momentos, em sua banalidade e em seu fascínio. [...]

Aquilo que chamamos de a objetividade de Tolstói é simplesmente a capacidade de seu amor não sofrer nenhum enfraquecimento ante a constatação e a conclusão que disso decorre, de que a vida em geral fica abaixo do ideal que ela forma de si mesma. Constitui um sutil triunfo da arte de Tolstói a circunstância de ela nos induzir a aderir com entusiasmo à sua representação da maneira como são as coisas. Afirmamos com tanta alegria nossa adesão ao que Tolstói nos mostra e com tão boa vontade chamamos isso de realidade porque temos algo a ganhar com o fato de isso ser realidade. Pois a esperança de toda pessoa digna, razoavelmente honesta, é ser julgada à luz da representação da natureza humana criada por Toltstói. Talvez o que Tolstói tenha feito, na verdade, seja instituir como realidade o julgamento que toda pessoa digna e razoavelmente honesta provavelmente faz de si mesma — alguém nem totalmente bom, nem totalmente ruim; nem heroico, nem destituído de heroísmo; nem esplêndido, nem privado de momentos luminosos; alguém que não pode ser entendido mediante nenhuma fórmula, mas que tem seu princípio de vida, e que de algum modo, e a despeito de ideias convencionais, consegue manter uma inesperada dignidade."

Lionel Trilling, The Opposite Self: Nine Essays in Criticism, 1955
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terça-feira, 13 de agosto de 2013

próximo sábado

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Lançamento do Campo em branco, em Curitiba, na Itiban Comic Shop

A partir das 17h.
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segunda-feira, 5 de agosto de 2013

carmen e seus precursores

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Sobre a Carmen, de Prosper Mérrimée, na Bravo! final.
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Carmen faz parte do seleto time de personagens da literatura que conhecemos antes de ler os livros. Não são muitos. O que sabemos dela está na ópera de Georges Bizet, levada à cena em 1875; em filmes como os de Otto Preminger (1954, apenas com atores negros) e Carlos Saura (1983, com dançarinos de flamenco), em musicais da Broadway, séries de tevê, HQs, comercial de lingerie, canecas, chaveiros, camisetas etc. Por isso, é possível ler a novela de Prosper Mérrimée (1803-1870), hoje, como se fosse uma espécie de fan fiction — “ficção criada por fãs”, em que uma nova história é criada a partir do enredo oficial — e, numa inversão cronológica, analisar as contribuições do “fã” Mérrimée para a trágica paixão entre a cigana e dom José.

Publicado em 1845, o livro é cheio de meandros e se assemelha a uma volta (bêbado) pelas ruelas de Sevilha, onde se passa parte da trama. Mérrimée nos conduz pela jornada da cigana de “beleza estranha e selvagem”, que requebra “como uma potra do haras de Córdoba”. Mas principalmente nos leva pela voz de dois narradores. Essa é uma de suas “inovações”. É através deles que enxergamos Carmen, e isso transforma toda a história.

“De maneira esquemática, podemos dizer que a ópera é sobre a paixão e o livro, sobre o ciúme”, observa Samuel Titan Jr., que assina a tradução e o posfácio desta nova edição brasileira, a ser lançada este mês — parte da Coleção Fábula, da editora 34. Se na ópera todos os olhares se voltam para Carmen, e ela é o centro; na novela, só acessamos a personagem a partir dos narradores. A todo momento, por exemplo, vemos dom José desconfiado, sem saber se Carmen realmente o está traindo. “Não por acaso, Machado de Assis foi buscar na obra um dos elementos centrais de caracterização de sua Capitu: os olhos oblíquos, de cigana”, lembra Titan, evocando a primeira aparição de Carmen na novela, quando são descritas sua pele (de cobre), sua boca (que deixa entrever “dentes mais brancos que amêndoas sem casca”) e seus olhos (“oblíquos e admiravelmente rasgados”).

A história começa e termina conduzida por um narrador empolgadamente pedante. No início, ele está na Andaluzia no outono de 1830, empreendendo uma diligente busca para situar com exatidão o local onde se desenrolou a batalha de Munda, um dos capítulos da conquista da península ibérica por César, “o lugar memorável em que César apostara tudo contra os campeões da república”.  Espera que sua dissertação sobre o tema “resolva enfim o problema geográfico que mantém em suspenso toda a Europa erudita”. Nessa solene errância, conhece dom José, um ex-militar de carreira promissora, que, apaixonado por Carmen, sofre uma série de quedas e reveses, até assassinar um homem e entregar-se a uma vida de “azares e rebelião” ao lado da cigana. “Uma moça bonita”, reflete dom José, imerso no pote da ruína, “faz o sujeito perder a cabeça, brigar, cair em desgraça, fugir para a montanha, e de contrabandista a ladrão é só um passo”.

A novela é dividida em quatro partes, e é apenas na terceira que o tal narrador erudito dá lugar a dom José. Na prisão e condenado à morte, dom José vai contar a ele (e a nós) a aventura que viveu ao lado de Carmen. Tudo o que a gente sabe sobre Carmen diz respeito a este capítulo, cheio de ação. A ópera de Bizet, por exemplo (que nas palavras de Alan Raitt, biógrafo britânico de Mérrimée, “não passa de uma versão emasculada e enfeitada da novela”).

À medida que dom José relata sua história, um episódio da segunda parte do livro volta com força: o breve encontro do narrador inicial com Carmen, no cais, às margens do rio Guadalquivir, em Córdoba. Ela surge de repente, como que saída das águas (e este é um tema que mereceria um texto à parte: as aparições de Carmen ao longo da história). É a única vez que este narrador fica diante dela. Imediatamente, ele sente o perigo, o poder de atração. E se afasta. “Ele não vive uma história com ela, ao contrário de Dom José que, sim, vai se deixar levar — e pagar o preço”, comenta Titan. “É dom José quem vai se aproximar da cigana, viver na pele e, como uma espécie de emissário do real, contar ao outro o que viu, porque esteve lá.” Não por acaso, o mito evocado na cena do rio é o de Acteão e Diana, em que o caçador Acteão surpreende Diana à hora do banho. A deusa o transforma em cervo, e Acteão é devorado por seus próprios cães — ele chega perto demais, vê mais do que podia ver. Toda a novela é sobre isso: um jogo de aproximações e afastamentos.

Assim que dom José termina de contar sua saga, o pedante estudioso reassume o comando da narrativa. A parte final da novela é surpreendente — e também pelo que não se diz. Estranho à primeira vista (há um corte na história), o fim parece expor uma espécie de solução encontrada pelo narrador para se relacionar com a figura fatal de Carmen. É como se, depois de tudo o que foi contado por dom José, o narrador pensasse: bem, vou me calar e me distanciar, e discursar friamente sobre os ciganos. E, assim, salvar a minha pele. Nisso, nessa moldura narrativa (os dois narradores, uma história dentro de outra), está o trunfo da novela de Mérrimée —que depois de Carmen passou vinte anos (praticamente o resto da vida) sem escrever ficção, dedicando-se ao cargo de inspetor geral dos monumentos históricos da França.
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quinta-feira, 1 de agosto de 2013

suas certezas não são de nada

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Sobre o Campo em branco: crítica do Mario Bresighello, no Guia de Livros da Folha de S.Paulo (1). E texto do Arthur Tertuliano, no Posfácio (2).
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(1)

Campo em branco trata daquilo que parece oculto, ausente ou que fica subentendido. Dois irmãos que há muito não se veem decidem refazer uma viagem da infância. A bordo de um velho Fiat 147, dirigem-se para um ponto qualquer do planeta onde o vento parece determinar o ritmo do mundo.

Quem conta a experiência é Lucio, o mais novo, que não se lembra de nada e, na tentativa de resgatar e entender o relacionamento com o irmão, decide seguir a memória dele. Mas de repente dá um branco e ele se perde em lembranças e em outras histórias que completam o sentido do que quer fazer.

Se fizermos uma analogia com a função da cor branca na linguagem das HQs, logo percebemos estar diante de uma obra-prima. A novela gráfica é um exemplo de estilo figurativo que tem nos jogos com o branco um de seus pontos de força. Nela, a cor é usada até mesmo como textura, um papel que, em geral, cabe ao preto.

Aqui, o projeto gráfico em preto, dois tons de azul e branco, é perfeito para a história. No lugar de prejudicar a leitura, o efeito é desconcertante.

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(2)

Besouro, libélula e outros insetos estampam a capa de Campo em branco. E tudo o que eu sabia sobre a hq se resumia a isso, praticamente – and that’s how I rule. (“Besouro” é uma palavra importante; reserve-a para o final desse texto.) Contudo, mesmo sem saber grandes coisas da história, eu tinha alguns parâmetros de expectativa: toda leitura é uma comparação com as anteriores; nunca resetamos o cérebro ou zeramos totalmente nossas concepções prévias ao iniciarmos um novo livro.

O álbum em questão é a quinta publicação de um “combo brasileiro” (roteirista + desenhista tupiniquins) pelo selo Quadrinhos na Cia – se não me engano, estava previsto para ser o segundo, não fossem os constantes adiamentos. Depois dos excelentes Cachalote e A máquina de Goldberg, percebi que o projeto da editora encontrou alguns percalços no caminho. Guadalupe, obra que faz bonito pelo lado do roteiro (Angélica Freitas criou uma história graciosa, tocante, feminista e engraçada – muitos adjetivos pra dizer que, enfim, é uma boa história), peca na qualidade do desenho, muito aquém da capacidade de Odyr Bernardi. Tenho a impressão de que, se dessem a ele a oportunidade de fazer algo colorido e mais elaborado, Guadalupe mataria a pau um livrinho como o do ET do Mutarelli, por exemplo. V.I.S.H.N.U., por sua vez, é uma bagunça só. As coisas mais legais deste são: o formato (é um quadradão pesado, que deve fazer bonito, fechado, numa mesa de centro); e uma memória involuntária (lembrei-me da criatividade por trás de toda a construção narrativa de Matrix e fiquei com vontade de rever The Animatrix – isso, sim, valia a pena). Uma pena, pois realmente gostei do perfil do casal Gregório Duvivier & Clarice Falcão escrito pelo roteirista – Ronaldo Bressane – para a Bravo!.

Enfim, esse foi um longo preâmbulo para dizer que uma das comparações inevitáveis seria com os outros livros da coleção. “Uma das”, não a única: já tinha lido algumas coisas, tanto do Emilio Fraia (O verão do Chibo o conto dele para a Granta dos melhores jovens escritores brasileiros são bem bons) quanto do DW Ribatski (o rapaz é um capista excepcional e fez um bom trabalho no álbum Vigor Mortis, mas me perdeu no La naturalesa). Mais e mais comparações a caminho.

Minha intenção não é a de criar suspense ou de deixá-lo curioso a respeito da minha opinião, caro leitor. Mais direto, impossível: primeiro, eu li e achei massa. Depois de ler uma boa resenha, reli o livro, repensei algumas coisas e gostei menos. Foi então que resolvi reler mais uma vez e… não é que tinha tido razão na primeira leitura?

A fim de manter o estilo “mais direto, impossível”, um resuminho básico do enredo, com todos os defeitos, elipses e incompletudes das sinopses. O narrador (Lúcio) encontra seu irmão (Mirko) após um longo tempo sem se verem. Este convence o outro a refazer uma viagem que fizeram com o tio durante a infância – Cabo Bianco é o destino final. Há uma diferença nas memórias: o que foi antológico para um, foi totalmente esquecido pelo outro – nada mais natural, em sendo irmãos. Cabo Bianco, portanto, também seria parte da viagem: o bendito destino final talvez fosse a “Lembrança de 1987”, subtítulo da obra.

It’s the same old story: eu poderia citar “Buscar por lembranças/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã.”, se não tivesse percebido que estava mais uma vez suecando os versos de Drummond. Seria uma apenas uma rima, não uma solução.

Lembranças. Não são poucos os flashbacks da narrativa – algumas cenas até dão abertura para serem interpretadas como flashforwards, mas, por alguma razão, decidi que na minha leitura todas elas seriam flashbacks mesmo. Enfim, são tantas as interrupções na trama descrita logo acima que chega a ser sedutora a ideia de definir a obra como fragmentária e experimental.

Engraçado que eu só tenha percebido isso na segunda leitura, a mesma em que repensei minhas impressões iniciais: provavelmente fiquei tão envolvido com a primeira leitura que não dei muita bola para os “cortes”, que estão lá e realmente demandam uma participação ainda mais ativa do leitor. O meu problema com o caráter “essencialmente fragmentário e experimental” é o seguinte: tenho compreendido isso (especialmente nas histórias em quadrinhos) mais e mais como uma forma de (1) dissimular a falta de imaginação para os rumos da história e de (2) esconder os furos do roteiro – e, portanto, menos como um exercício de liberdade do formato. Em outras palavras: tais cortes servem para fazer o leitor esquecer que a história tem uma boa premissa e só. Em outras palavras: se eu visse o livro daquela forma, minha tendência seria a de enquadrá-lo nessas conclusões pré-estabelecidas.

Na terceira leitura, no entanto, meu cérebro pôs o preenchimento automático de lacunas para funcionar novamente. Consegui, inclusive, considerar a narrativa bastante convencional: com flashbacks, sequências oníricas e discussões filosófico-científicas, mas convencional. O que, ressalto, não é um defeito – ao menos para mim. Não há nada muito diferente do que já nos acostumamos a ver em muitos filmes contemporâneos.

Aliás, o álbum parece pedir para ser “lido como cinema”. Os créditos que aparecem depois de uma cena breve, já na nona página, e se repetem na p. 95; os flashbacks; os closes; as transições de cena; as sequências oníricas. Ok, tais recursos não são exclusivos do cinema; porém, este certamente os utilizou com tanta frequência que nos acostumou a identificá-los. Assim como não fugimos do trem que vem em nossa direção, pois sabemos que ele é apenas a projeção de luz em uma tela branca, já não precisamos de nuvenzinhas e cores diferentes para identificar um flashback.

Eu nem ia tocar no assunto, mas o selo da RT Features na ficha catalográfica talvez sirva de indicativo para uma futura adaptação cinematográfica. É esperar para ver.

Mas Cabo Bianco seria “apenas uma história legalzinha e tal”, se não houvesse o “campo em branco” – ou melhor, se não houvesse todo o diálogo que culmina na citação do título do livro. Em um dos tantos flashbacks, Lúcio conversa com o tio Bernardo – aquele que “viu o apartamento pegar fogo”, aquele “que os levou para viajar quando crianças” – sobre pontos e trajetórias e distrações e concentração e determinismos e surpresas. E é esse o grande jenesequá de Campo em branco.

Ciência e natureza. Há um padrão científico na natureza, aparentemente caótica. Ao mesmo tempo, o caos permeia a ciência, apesar de esta desejar ter uma fórmula para tudo. Lúcio, um físico, um cara científico (ou pelo menos é o que parece); Mirko, um porra louca, uma força da natureza (ou pelo menos é o que parece).

A partir dessas digressões, comecei a pensar no trabalho de um roteirista e um desenhista criando, juntos, uma história em quadrinhos. Por alguma razão, comecei a associar a figura do Lúcio ao Emilio e a do Mirko ao DW. Digo “por alguma razão”, como se não soubesse como tudo começou. Sei muito bem que, por não haver fotografias dos autores no livro, passei a identificar a quarta capa (que também é a p. 57) como representação destes. Aliás, não seria novidade alguma se os autores fossem representados por meio de desenhos nas hqs dessa coleção: o mesmo expediente já fora utilizado em Cachalote e A máquina de Goldberg.

De La naturalesa a Campo em branco, creio que o salto de DW Ribatski foi significativo. Não falo especificamente do traço – acredito que este tenha melhorado, ainda que mantenha o estilo do quadrinista (ele, às vezes, aparenta ser bem desleixado e feito às pressas, mas, na página seguinte, vai lá e tira o fôlego do leitor com uma composição vibrante). Quando falo em salto, me refiro propriamente à narrativa. Se em La naturalesa meu maior questionamento era o “de que adianta ter liberdade criativa se você a usa para fazer isso?”, hoje acredito que tenha partido do quadrinista (não do roteirista) a pulsão para a atenção tão destacada que se dá à natureza em Campo em branco – uma visão mais interessante, madura e bem elaborada que a observada anteriormente, sem dúvidas.

As lembranças de infância, os insetos (que me lembraram de O verão do Chibo, coescrito por Vanessa Barbara) e uma piscina (também presente no conto da Granta n. 9) – e a ligação destes com o narrador – me fizeram associá-lo, prontamente, ao Emilio. Todo o questionamento científico que perpassa a narrativa 5 parece apontar para o momento em que o roteiro foi criado: “Eu adiciono isto, nesse campo em branco, e… tudo muda”. Talvez eu tenha levado muito a sério essa leitura metalinguística, mas o fato é que percebi, em quase todas as páginas, referências visuais a entrecruzamentos, bifurcações, pontos e mudanças de trajetória. Talvez isso tudo seja apenas o estilo do quadrinista. Mas, talvez, essa recorrência de temas visuais seja algo intencional – folhas nas pontas de galhos, parecidas com os pontos (átomos?) conectados com retas (ligações atômicas?), como os desenhados nos diagramas de um quadro negro.

E é nisso que prefiro acreditar. Nessa síntese de duas mentes (tese e antítese) em busca da obra de arte perdida. Nessa conjunção de forças, aparentemente voltadas em direções opostas, mas que resultam em algo maior do que a soma das duas. “Síntese” e “conjunção” são duas palavras muito boas para o que vemos nas páginas finais.

Comparações com obras anteriores dos autores: feitas. Falta só situar a obra no panorama da coleção “combo brasileiro” do selo Quadrinhos na Cia – então, me darei por satisfeito.

As mudanças da data de lançamento, a presença de uma dupla de homens barbados pensando uma hq em conjunto e o ar meio cinematográfico (possivelmente influenciado pelo envolvimento da RT Features) pareciam facilitar a comparação entre Campo em branco e Cachalote. Não é o que farei, no entanto. O álbum irmão de Campo em branco é outro: é A máquina de Goldberg. Confesso que cogitei compará-las antes mesmo de conferir o resultado do trabalho do Emilio e do DW pelas seguintes razões: (1) as duas hqs chegaram juntas à minha caixa de correspondências – o que não é nada surpreendente, pois fui eu o responsável por essa “coincidência” quando as encomendei no mesmo pedido; e (2) os dois roteiristas já haviam trabalhado em conjunto num romance citado algumas vezes no decorrer deste texto – O verão do Chibo, finalista do prêmio São Paulo de Literatura (ou, menos relevante, “um livraço”, segundo a minha pessoa). Pareceu-me uma boa ideia analisar como os dois voltaram a ser bem-sucedidos ao trabalharem em duplas diferentes, mas, se fosse só isso, o reconhecimento de padrões não passaria da mera curiosidade de caixa de cereal: “Você sabia que Vanessa Barbara e Emilio Fraia nasceram no mesmo ano e cidade (São Paulo, 1982) e dedicaram seu primeiro romance ao Mandaqui?”.

Juro que tentei me distanciar desse plano, mas as coincidências começaram a pipocar – ao menos para a minha mente semi-obsessiva. As duas hqs têm insetos mortos logo em suas primeiras páginas. Nas duas, a natureza tem um papel importante (seria ela um dos protagonistas?), o que é provocado por uma viagem que distancia os narradores dos grandes centros urbanos em que vivem. Em ambas, foi verificada tanto a presença de quelônios e felinos quanto a proeminência do tema da infância no desenvolvimento do enredo (e, isso sim, era de se esperar dos criadores do Cabelo, do Bruno, do Chibo, do besouro chamado Bob, da rainha da Bulgária, da canção “Eu Sou um Bolinho de Arroz” e do narrador fofo encarregado de contar essa história toda). Não podemos nos esquecer de que alguns dos momentos mais inspirados – visualmente falando – ocorrem durante sequências oníricas, em que a gravidade parece simplesmente deixar de funcionar. Quando percebi que certas cenas submersas das duas mexeram comigo, decidi que me arriscaria numa ligeira comparação – e o mundo que se adapte.

Num primeiro olhar, A máquina de Goldberg soa como um elogio ao controle absoluto, ao passo que Campo em branco enaltece a aleatoriedade da vida: nada mais controlador que uma máquina que tem como objetivo “dificultar atividades consideradas simples demais” e que não pode ser auxiliada em nenhuma de suas fases; nada mais aleatório do que saber que qualquer coisinha muda tudo ou que “a concentração exagerada é um tipo de distração”. No entanto, a contradição dessas mesmíssimas ideias também se faz presente nas histórias – seja quando Getúlio admite as diversas “fugas” do roteiro da máquina de Goldberg projetada pelo velhote para o clímax da hq de Barbara, seja quando percebemos que as possibilidades da aleatoriedade se manifestar foram drasticamente reduzidas quando Emilio Fraia preencheu alguns (muitos) campos em branco. Ambas, enfim, proclamam suas concepções de mundo ficcional: elas gritam “O mundo é uma máquina de Goldberg gigante!” e “O mundo é um imenso campo em branco!”.

Mas por que restringir tais concepções ao campo da ficção? As duas hqs estão mesmo gritando “O mundo é uma máquina de Goldberg gigante!” e “O mundo é um imenso campo em branco!”. Em outras palavras: “Preste atenção nos seus atos! Todos eles têm consequências! Você não terá consciência de metade delas!” e “Você não conhece toda a sua história! Preste atenção nos outros! Suas certezas não são de nada!”. Bem por aí.

O leitor que não sufocar esses gritos – ao pensar, por exemplo, “pfff, são apenas histórias em quadrinhos” – terá um baita trabalho pela frente. E verá o mundo com novos olhos.
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segunda-feira, 22 de julho de 2013

boa semana

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"Lover's Cave", Is Tropical, I'm Leaving, 2013
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quinta-feira, 18 de julho de 2013

é maravilhoso acordar juntos

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"It is marvellous to wake up together
At the same minute; marvellous to hear
The rain begin suddenly all over the roof,
To feel the air clear
As if electricity had passed through it
From a black mesh of wires in the sky.
All over the roof the rain hisses,
And below, the light falling of kisses.

An electrical storm is coming or moving away;
It is the prickling air that wakes us up.
If lightning struck the house now, it would run
From the four blue china balls on top
Down the roof and down the rods all around us,
And we imagine dreamily
How the whole house caught in a bird-cage of lightning
Would be quite delightful rather than frightening;

And from the same simplified point of view
Of night and lying flat on one’s back
All things might change equally easily,
Since always to warn us there must be these black
Electrical wires dangling. Without surprise
The world might change to something quite different,
As the air changes or the lightning comes without our blinking,
Change as our kisses are changing without our thinking."

"It is marvellous to wake up together...", Elizabeth Bishop, circa 1940.
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sábado, 6 de julho de 2013

lembrança de 1987

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Texto da Camila Kehl sobre o Campo em branco + duas perguntas:
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1) Dois irmãos se reencontram depois de dez anos vivendo longe um do outro. Eles estão na cidade estrangeira onde Mirko, o mais velho, agora mora. É Lucio, aquele que vai até onde está Mirko, quem conta a história.

2) Mirko insiste para que ele e Lucio repitam uma viagem feita há muito tempo. O destino é Cabo Blanco, um lugarejo desolado nas montanhas. Em Cabo Blanco faz frio e venta um bocado, e a grande atração são gigantes de pedra. Lucio sequer se recorda da primeira vez em que estiveram ali — a ausência de lembranças não parece um problema, no entanto, e lá vão eles no velho carro de Mirko.

3) O leitor não está diante de uma narrativa linear sobre o reencontro entre dois irmãos que não se viam há tempos, ou, o que também é possível intuir, de um relato de viagem. É mais do que isso: é uma mistura quase caótica de tempos e lugares, insights e recordações, todos relacionados a Lucio. A grande sacada da graphic novel de Emilio Fraia e DW Ribatski é justamente permitir que o leitor tire as próprias conclusões — que dê às cenas o significado que julgar adequado e as ordene como quiser. É preciso empenho (e alguma reflexão) para enxergar certas coisas: a tarefa é retirar um sentido de Campo em branco. Longe de ser inconsistente, o resultado é incrível.

4) Pergunto para Emilio Fraia como funciona o trabalho a quatro mãos de um escritor e um ilustrador: “No início, pensei que eu poderia escrever uma novela, um conto longo, e o DW adaptaria e pronto, feito, tudo sairia como eu havia imaginado. Mas ao longo do processo fui entendendo que para comunicar certos climas, ritmos, tempos e intenções que estavam na minha cabeça, o caminho devia ser outro. Porque numa história em quadrinhos, boa parte desses climas, ritmos etc. tem a ver com o aspecto visual, a maneira de decupar as cenas, pensar como a história avança de um quadro para o outro, de uma página para a outra. Existe um aspecto material mesmo, cada página ou quadro pode, por exemplo, exigir um tempo diferente do leitor, prolongar ou comprimir a sensação de tempo. Foi interessante ver como esses e outros efeitos podem ser criados numa HQ. Num romance, para além do enredo, a forma está nas palavras, na maneira como o escritor estrutura a narrativa. Na história em quadrinhos, isso está no traço, na disposição e tamanho das imagens, no avançar pelas páginas — há uma sintaxe muito particular, e é ela que vai determinar o ritmo, o foco narrativo, o tom e, principalmente, produzir significados e dialogar com a trama. Ficou claro que não queríamos fazer um roteiro desenhado. O DW trouxe muitas ideias, e nós fomos tentando explorar ao máximo o que a linguagem dos quadrinhos poderia oferecer”, escreve. Vale lembrar que Fraia produziu outro trabalho a quatro mãos: O verão do Chibo, livro escrito em parceria com Vanessa Barbara.

5) A resposta de Fraia é providencial para que o leitor preste ainda mais atenção aos detalhes das imagens, e especialmente à passagem de cenas.

6) Lucio é (ou foi) estudante de Física. Há, portanto, várias alusões ao assunto — e mesmo as falas ou pensamentos genéricos do protagonista parecem combinar com alguém que o compreende em profundidade. “Se eu quiser conhecer a trajetória com clareza, preciso sacrificar meu conhecimento sobre o ponto em que estou”; “Se eu quiser conhecer onde estou com grande clareza, preciso sacrificar meu conhecimento sobre minha trajetória (de onde vim, pra onde vou)”; “uma concentração exagerada na verdade é um tipo de distração”; “Como a atenção a um detalhe específico sacrifica, por definição, nossa percepção do todo”. Essa necessidade de alternar entre o todo e o detalhe vale tanto para os personagens — que precisam compreender o próprio contexto, além de preencher furos da memória — quanto para o leitor, que enxerga aí uma pista para criar seu próprio significado para o livro.

7) Ribatski utilizou tons de azul, além de preto e branco. E só.

8) Para constar: DW Ribatski é o ilustrador da fantástica capa de A brincadeira favorita, de Leonard Cohen.

9) O subtítulo de Campo em branco é “Lembrança de 1987″. Fraia esclarece, abaixo, o motivo da escolha.

10) A propósito do lançamento de Campo em branco, Emilio Fraia escreveu, para o blog da Companhia das Letras, um texto sobre a cor branca. Faz sentido evocar um trecho de Moby Dick, uma vez que Melville, no capítulo que dedicou ao assunto, foi um incansável crítico da cor branca: “Ou será que o branco, em sua essência, não é uma cor, mas a ausência visível de cor, e, ao mesmo tempo, a fusão de todas as cores; será que são essas as razões pelas quais existe um espaço em branco, repleto de significado, na ampla paisagem das neves — um ateísmo sem cor e de todas as cores do qual nos esquivamos?” (grifo meu; retirado da edição da Cosac Naify — tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza).

11) Até um gato que surge nas páginas deixa dúvidas: será o de Schrödinger?

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+ duas perguntas para Emilio Fraia:

(Numa das últimas páginas de Campo em branco, uma ilustração mostra os títulos de dois livros que provavelmente pertencem a um dos personagens.)

Os contos de E. T. A. Hoffmann e A narrativa de A. Gordon Pym, de Edgard Allan Poe, exerceram algum tipo de influência sobre o conteúdo de Campo em branco? No caso do segundo, existe alguma relação entre ele e o que você menciona no blog da Companhia (no texto, você diz: "‘O secreto argumento desse romance é o medo e a vilificação do branco’, escreveu Borges, em seu ensaio ‘A arte narrativa e a magia’, sobre o único romance de Edgar Allan Poe, A narrativa de A. Gordon Pym")?

O subtítulo do livro, "Lembrança de 1987", vem de um conto do Hoffmann, “O cavaleiro Gluck”, cujo subtítulo é “Lembrança do ano 1809″. É uma homenagem e ao mesmo tempo opera um efeito de realidade: se é uma lembrança, aconteceu. No caso do Campo em branco, a gente tentou embaralhar onde exatamente está esse ano de 1987. Na história, há planos temporais diferentes e, a princípio, todos eles poderiam ser 1987. Sobre o Poe, sim, A narrativa de A. Gordon Pym é um livro sobre o branco. Então, no finzinho do álbum, quando o personagem abre um armário, colocamos ali, escondidinhos, esses dois livros.

Fica claro, no livro, que não importa que se estabeleçam as mesmas condições para determinado fenômeno: os resultados irão diferir. Um professor de física de Lucio diz que “dependendo do que a gente coloca aqui, muda tudo”. Indo além do próprio enredo, é possível dizer que, com base nisso, cada leitor tem uma interpretação diferente de Campo em branco?

Sim, queria pensar essa possibilidade em diferentes níveis: na história dos irmãos que tentam reencenar uma viagem da infância, voltar ao mesmo lugar, subir a mesma montanha, nadar no mesmo lago e recuperar, assim, uma experiência (impossível de ser recuperada); e numa espécie de diálogo com o leitor, que pode projetar suas ideias sobre o que afinal move esses personagens. Por que o irmão mais novo decide procurar o mais velho? Por que o irmão mais velho propõe que refaçam a tal viagem da infância? O que de fato, objetivamente, acontece durante a jornada? Tudo isso interessa. Mas interessa, para mim, porque são perguntas que talvez não tenham respostas simples. Os personagens talvez não saibam responder com exatidão — porque, afinal, uma resposta nunca é simples, e dependendo do jeito de olhar, muda tudo. Me pareceu uma maneira interessante de explorar a ideia de espaço em branco, que é o contrário da certeza e da assertividade, e é um conceito muito gráfico também, bom para uma história visual.
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segunda-feira, 1 de julho de 2013

diário de huilo huilo

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Terça-feira

Em Temuco, o ar tem cheiro de lenha queimada. É tão denso que ao esticar o braço a sensação é de atravessar algo vivo. Nas casas, as lareiras e aquecedores forçam os termômetros para cima — na frente do pequeno aeroporto, à noite, faz sete graus. A luz da torre de comando acende um feixe de névoa e, desaparecendo, fica para trás: de Temuco até Huilo Huilo são 190 quilômetros (desde Santiago são 860), por uma estrada que margeia lagos enormes, como o Panguipulli. No carro, o motorista coloca um CD com pios de pássaros (e APENAS pios de pássaros), no repeat. Ele fala de uma espécie da região, o chucao, que vive nas gretas, nas fendas das pedras. Em mapudungun, língua mapuche, o superlativo é formado a partir da repetição de palavras: Huilo Huilo significa “grande fenda”. 

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Quarta-feira

Na subida para dois vulcões, os gêmeos Mocho-Choshuenco — 2422 e 2415 metros —, é possível ver o lago Pirehueico, que liga Huilo Huilo a San Martín de Los Andes, na Argentina — a travessia é feita numa barcaça e leva uma hora e meia. Pirehueico significa “lugar de água de neve”. No povoado de Neltume, lá embaixo, cai uma chuva fina. O clima é produto da umidade carregada pelos ventos do Pacífico, que se condensa por causa da corrente de Humboldt. Chove muito em Huilo Huilo. Em Neltume, todos os nomes remetem a árvore. Há uma praça chamada O Bosque, margeada pela rua dos Trevos, um bar chamado Tronco Velho, perto das ruas dos Ciprestes e das Acácias. A principal atividade da cidade sempre esteve ligada à madeira. A ocupação da vila começou em 1870 — até então, os únicos habitantes eram os Mapuche. Em 1898, foi construída a primeira empresa florestal. Em 1942, foi instalada uma fábrica de compensados e, mais tarde, de portas e janelas.  

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Quinta-feira

Estou num hotel chamado A Montanha Mágica. Tem formato piramidal e treze quartos (os quartos vão ficando menores à medida que se sobe a rampa interna circular). No livro do Thomas Mann, um jovem vai visitar um primo num sanatório destinado ao tratamento de doenças respiratórias, nos Alpes suíços. É diagnosticado com tuberculose e acaba ficando no lugar por meses e, depois, anos. Mais de uma vez, alimentei a seguinte ficção: estou viajando, sozinho, quando algo extraordinário acontece — da noite para o dia, um decreto fecha as fronteiras do país, ou perco magicamente meus documentos, ou inicia-se uma invasão alienígena — e não posso mais voltar para casa e sou obrigado a viver, então, nesse lugar novo e estranho. Longe de casa, vou precisar aprender os códigos locais, me adaptar, e não conheço ninguém, não sei falar a língua, estou sozinho e numa posição inferior. 

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Sexta-feira 

Numa construção anexa, nos fundos do hotel, ficam seis caldeiras. De quinze em quinze minutos, um homem alimenta as fornalhas com madeira. Ele trabalha ali há sete anos. Antes, era cozinheiro. Reveza-se em turnos de oito horas com outros quatro caldeireiros. Num depósito ao lado, ficam os pedaços de tronco, que ele próprio corta. Diz que os termômetros devem permanecer em 60 graus. Não muito longe, enfileiram-se árvores fincadas no chão, ao contrário, com as raízes para o alto. O homem explica que quando estavam pensando na construção de um dos hoteis da reserva, o Nothofagus (nome da classe de árvores da qual fazem parte o carvalho e o raulí), colocaram as árvores ali, de ponta cabeça, para ilustrar a ideia. 

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Sábado

No fim da tarde, é possível avistar cervos e guanacos. No inverno, eles saem dos bosques e descem as montanhas, em busca de alimento. Outro animal da região é o huemul, tipo de cervo do sul do Chile. No lugar, funciona um centro de conservação do bicho. Estima-se que, hoje, existam menos de 1500 exemplares no mundo — dez deles estão na reserva. Além do huemul, lutando por atenção e sobrevivência, há o pudú, o menor cervo do mundo. Ele tem dez quilos, quarenta centímetros e aparência de pelúcia. De volta ao hotel, nos jardins dos arredores, as plantas crescem feito pêlos numa orelha de avô. A piscina está cheia de folhas. No chão, o mato sobe e se enrola nas estátuas de criança, que lembram o Peter Pan dos jardins de Kensington. Penso que isso constitui uma espécie de eixo horizontal. O eixo vertical é representado pelo carvalho que fica na parte interna do hotel, sob uma claraboia. Parece haver um diálogo entre esta árvore (deve ter uns vinte metros), que aponta para o alto, e as plantas e folhas que cobrem o chão. Penso numa convergência entre esses dois eixos, o da árvore, a neve, a montanha (vertical) e o da lenha, folhas caídas, a caldeira (horizontal). 

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Domingo

Em Santiago, num bar chamado Liguria. Tem um balcão comprido que vai dar num segundo salão, de pé direito altíssimo. O chão é de ladrilho e as paredes cobertas de mapas, cartazes, placas de ruas antigas e fotografias — um Frank Sinatra sendo fichado pela polícia paira sobre nossas cabeças.
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