.
Sobre o Campo em branco: crítica do Mario Bresighello, no Guia de Livros da Folha de S.Paulo (1). E texto do Arthur Tertuliano, no Posfácio (2).
.
(1)
Campo em branco trata daquilo que parece oculto, ausente ou que fica subentendido. Dois irmãos que há muito não se veem decidem refazer uma viagem da infância. A bordo de um velho Fiat 147, dirigem-se para um ponto qualquer do planeta onde o vento parece determinar o ritmo do mundo.
Quem conta a experiência é Lucio, o mais novo, que não se lembra de nada e, na tentativa de resgatar e entender o relacionamento com o irmão, decide seguir a memória dele. Mas de repente dá um branco e ele se perde em lembranças e em outras histórias que completam o sentido do que quer fazer.
Se fizermos uma analogia com a função da cor branca na linguagem das HQs, logo percebemos estar diante de uma obra-prima. A novela gráfica é um exemplo de estilo figurativo que tem nos jogos com o branco um de seus pontos de força. Nela, a cor é usada até mesmo como textura, um papel que, em geral, cabe ao preto.
Aqui, o projeto gráfico em preto, dois tons de azul e branco, é perfeito para a história. No lugar de prejudicar a leitura, o efeito é desconcertante.
.
(2)
Besouro, libélula e outros insetos estampam a capa de Campo em branco. E tudo o que eu sabia sobre a hq se resumia a isso, praticamente – and that’s how I rule. (“Besouro” é uma palavra importante; reserve-a para o final desse texto.) Contudo, mesmo sem saber grandes coisas da história, eu tinha alguns parâmetros de expectativa: toda leitura é uma comparação com as anteriores; nunca resetamos o cérebro ou zeramos totalmente nossas concepções prévias ao iniciarmos um novo livro.
O álbum em questão é a quinta publicação de um “combo brasileiro” (roteirista + desenhista tupiniquins) pelo selo Quadrinhos na Cia – se não me engano, estava previsto para ser o segundo, não fossem os constantes adiamentos. Depois dos excelentes Cachalote e A máquina de Goldberg, percebi que o projeto da editora encontrou alguns percalços no caminho. Guadalupe, obra que faz bonito pelo lado do roteiro (Angélica Freitas criou uma história graciosa, tocante, feminista e engraçada – muitos adjetivos pra dizer que, enfim, é uma boa história), peca na qualidade do desenho, muito aquém da capacidade de Odyr Bernardi. Tenho a impressão de que, se dessem a ele a oportunidade de fazer algo colorido e mais elaborado, Guadalupe mataria a pau um livrinho como o do ET do Mutarelli, por exemplo. V.I.S.H.N.U., por sua vez, é uma bagunça só. As coisas mais legais deste são: o formato (é um quadradão pesado, que deve fazer bonito, fechado, numa mesa de centro); e uma memória involuntária (lembrei-me da criatividade por trás de toda a construção narrativa de Matrix e fiquei com vontade de rever The Animatrix – isso, sim, valia a pena). Uma pena, pois realmente gostei do perfil do casal Gregório Duvivier & Clarice Falcão escrito pelo roteirista – Ronaldo Bressane – para a Bravo!.
Enfim, esse foi um longo preâmbulo para dizer que uma das comparações inevitáveis seria com os outros livros da coleção. “Uma das”, não a única: já tinha lido algumas coisas, tanto do Emilio Fraia (O verão do Chibo e o conto dele para a Granta dos melhores jovens escritores brasileiros são bem bons) quanto do DW Ribatski (o rapaz é um capista excepcional e fez um bom trabalho no álbum Vigor Mortis, mas me perdeu no La naturalesa). Mais e mais comparações a caminho.
Minha intenção não é a de criar suspense ou de deixá-lo curioso a respeito da minha opinião, caro leitor. Mais direto, impossível: primeiro, eu li e achei massa. Depois de ler uma boa resenha, reli o livro, repensei algumas coisas e gostei menos. Foi então que resolvi reler mais uma vez e… não é que tinha tido razão na primeira leitura?
A fim de manter o estilo “mais direto, impossível”, um resuminho básico do enredo, com todos os defeitos, elipses e incompletudes das sinopses. O narrador (Lúcio) encontra seu irmão (Mirko) após um longo tempo sem se verem. Este convence o outro a refazer uma viagem que fizeram com o tio durante a infância – Cabo Bianco é o destino final. Há uma diferença nas memórias: o que foi antológico para um, foi totalmente esquecido pelo outro – nada mais natural, em sendo irmãos. Cabo Bianco, portanto, também seria parte da viagem: o bendito destino final talvez fosse a “Lembrança de 1987”, subtítulo da obra.
It’s the same old story: eu poderia citar “Buscar por lembranças/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã.”, se não tivesse percebido que estava mais uma vez suecando os versos de Drummond. Seria uma apenas uma rima, não uma solução.
Lembranças. Não são poucos os flashbacks da narrativa – algumas cenas até dão abertura para serem interpretadas como flashforwards, mas, por alguma razão, decidi que na minha leitura todas elas seriam flashbacks mesmo. Enfim, são tantas as interrupções na trama descrita logo acima que chega a ser sedutora a ideia de definir a obra como fragmentária e experimental.
Engraçado que eu só tenha percebido isso na segunda leitura, a mesma em que repensei minhas impressões iniciais: provavelmente fiquei tão envolvido com a primeira leitura que não dei muita bola para os “cortes”, que estão lá e realmente demandam uma participação ainda mais ativa do leitor. O meu problema com o caráter “essencialmente fragmentário e experimental” é o seguinte: tenho compreendido isso (especialmente nas histórias em quadrinhos) mais e mais como uma forma de (1) dissimular a falta de imaginação para os rumos da história e de (2) esconder os furos do roteiro – e, portanto, menos como um exercício de liberdade do formato. Em outras palavras: tais cortes servem para fazer o leitor esquecer que a história tem uma boa premissa e só. Em outras palavras: se eu visse o livro daquela forma, minha tendência seria a de enquadrá-lo nessas conclusões pré-estabelecidas.
Na terceira leitura, no entanto, meu cérebro pôs o preenchimento automático de lacunas para funcionar novamente. Consegui, inclusive, considerar a narrativa bastante convencional: com flashbacks, sequências oníricas e discussões filosófico-científicas, mas convencional. O que, ressalto, não é um defeito – ao menos para mim. Não há nada muito diferente do que já nos acostumamos a ver em muitos filmes contemporâneos.
Aliás, o álbum parece pedir para ser “lido como cinema”. Os créditos que aparecem depois de uma cena breve, já na nona página, e se repetem na p. 95; os flashbacks; os closes; as transições de cena; as sequências oníricas. Ok, tais recursos não são exclusivos do cinema; porém, este certamente os utilizou com tanta frequência que nos acostumou a identificá-los. Assim como não fugimos do trem que vem em nossa direção, pois sabemos que ele é apenas a projeção de luz em uma tela branca, já não precisamos de nuvenzinhas e cores diferentes para identificar um flashback.
Eu nem ia tocar no assunto, mas o selo da RT Features na ficha catalográfica talvez sirva de indicativo para uma futura adaptação cinematográfica. É esperar para ver.
Mas Cabo Bianco seria “apenas uma história legalzinha e tal”, se não houvesse o “campo em branco” – ou melhor, se não houvesse todo o diálogo que culmina na citação do título do livro. Em um dos tantos flashbacks, Lúcio conversa com o tio Bernardo – aquele que “viu o apartamento pegar fogo”, aquele “que os levou para viajar quando crianças” – sobre pontos e trajetórias e distrações e concentração e determinismos e surpresas. E é esse o grande jenesequá de Campo em branco.
Ciência e natureza. Há um padrão científico na natureza, aparentemente caótica. Ao mesmo tempo, o caos permeia a ciência, apesar de esta desejar ter uma fórmula para tudo. Lúcio, um físico, um cara científico (ou pelo menos é o que parece); Mirko, um porra louca, uma força da natureza (ou pelo menos é o que parece).
A partir dessas digressões, comecei a pensar no trabalho de um roteirista e um desenhista criando, juntos, uma história em quadrinhos. Por alguma razão, comecei a associar a figura do Lúcio ao Emilio e a do Mirko ao DW. Digo “por alguma razão”, como se não soubesse como tudo começou. Sei muito bem que, por não haver fotografias dos autores no livro, passei a identificar a quarta capa (que também é a p. 57) como representação destes. Aliás, não seria novidade alguma se os autores fossem representados por meio de desenhos nas hqs dessa coleção: o mesmo expediente já fora utilizado em Cachalote e A máquina de Goldberg.
De La naturalesa a Campo em branco, creio que o salto de DW Ribatski foi significativo. Não falo especificamente do traço – acredito que este tenha melhorado, ainda que mantenha o estilo do quadrinista (ele, às vezes, aparenta ser bem desleixado e feito às pressas, mas, na página seguinte, vai lá e tira o fôlego do leitor com uma composição vibrante). Quando falo em salto, me refiro propriamente à narrativa. Se em La naturalesa meu maior questionamento era o “de que adianta ter liberdade criativa se você a usa para fazer isso?”, hoje acredito que tenha partido do quadrinista (não do roteirista) a pulsão para a atenção tão destacada que se dá à natureza em Campo em branco – uma visão mais interessante, madura e bem elaborada que a observada anteriormente, sem dúvidas.
As lembranças de infância, os insetos (que me lembraram de O verão do Chibo, coescrito por Vanessa Barbara) e uma piscina (também presente no conto da Granta n. 9) – e a ligação destes com o narrador – me fizeram associá-lo, prontamente, ao Emilio. Todo o questionamento científico que perpassa a narrativa 5 parece apontar para o momento em que o roteiro foi criado: “Eu adiciono isto, nesse campo em branco, e… tudo muda”. Talvez eu tenha levado muito a sério essa leitura metalinguística, mas o fato é que percebi, em quase todas as páginas, referências visuais a entrecruzamentos, bifurcações, pontos e mudanças de trajetória. Talvez isso tudo seja apenas o estilo do quadrinista. Mas, talvez, essa recorrência de temas visuais seja algo intencional – folhas nas pontas de galhos, parecidas com os pontos (átomos?) conectados com retas (ligações atômicas?), como os desenhados nos diagramas de um quadro negro.
E é nisso que prefiro acreditar. Nessa síntese de duas mentes (tese e antítese) em busca da obra de arte perdida. Nessa conjunção de forças, aparentemente voltadas em direções opostas, mas que resultam em algo maior do que a soma das duas. “Síntese” e “conjunção” são duas palavras muito boas para o que vemos nas páginas finais.
Comparações com obras anteriores dos autores: feitas. Falta só situar a obra no panorama da coleção “combo brasileiro” do selo Quadrinhos na Cia – então, me darei por satisfeito.
As mudanças da data de lançamento, a presença de uma dupla de homens barbados pensando uma hq em conjunto e o ar meio cinematográfico (possivelmente influenciado pelo envolvimento da RT Features) pareciam facilitar a comparação entre Campo em branco e Cachalote. Não é o que farei, no entanto. O álbum irmão de Campo em branco é outro: é A máquina de Goldberg. Confesso que cogitei compará-las antes mesmo de conferir o resultado do trabalho do Emilio e do DW pelas seguintes razões: (1) as duas hqs chegaram juntas à minha caixa de correspondências – o que não é nada surpreendente, pois fui eu o responsável por essa “coincidência” quando as encomendei no mesmo pedido; e (2) os dois roteiristas já haviam trabalhado em conjunto num romance citado algumas vezes no decorrer deste texto – O verão do Chibo, finalista do prêmio São Paulo de Literatura (ou, menos relevante, “um livraço”, segundo a minha pessoa). Pareceu-me uma boa ideia analisar como os dois voltaram a ser bem-sucedidos ao trabalharem em duplas diferentes, mas, se fosse só isso, o reconhecimento de padrões não passaria da mera curiosidade de caixa de cereal: “Você sabia que Vanessa Barbara e Emilio Fraia nasceram no mesmo ano e cidade (São Paulo, 1982) e dedicaram seu primeiro romance ao Mandaqui?”.
Juro que tentei me distanciar desse plano, mas as coincidências começaram a pipocar – ao menos para a minha mente semi-obsessiva. As duas hqs têm insetos mortos logo em suas primeiras páginas. Nas duas, a natureza tem um papel importante (seria ela um dos protagonistas?), o que é provocado por uma viagem que distancia os narradores dos grandes centros urbanos em que vivem. Em ambas, foi verificada tanto a presença de quelônios e felinos quanto a proeminência do tema da infância no desenvolvimento do enredo (e, isso sim, era de se esperar dos criadores do Cabelo, do Bruno, do Chibo, do besouro chamado Bob, da rainha da Bulgária, da canção “Eu Sou um Bolinho de Arroz” e do narrador fofo encarregado de contar essa história toda). Não podemos nos esquecer de que alguns dos momentos mais inspirados – visualmente falando – ocorrem durante sequências oníricas, em que a gravidade parece simplesmente deixar de funcionar. Quando percebi que certas cenas submersas das duas mexeram comigo, decidi que me arriscaria numa ligeira comparação – e o mundo que se adapte.
Num primeiro olhar, A máquina de Goldberg soa como um elogio ao controle absoluto, ao passo que Campo em branco enaltece a aleatoriedade da vida: nada mais controlador que uma máquina que tem como objetivo “dificultar atividades consideradas simples demais” e que não pode ser auxiliada em nenhuma de suas fases; nada mais aleatório do que saber que qualquer coisinha muda tudo ou que “a concentração exagerada é um tipo de distração”. No entanto, a contradição dessas mesmíssimas ideias também se faz presente nas histórias – seja quando Getúlio admite as diversas “fugas” do roteiro da máquina de Goldberg projetada pelo velhote para o clímax da hq de Barbara, seja quando percebemos que as possibilidades da aleatoriedade se manifestar foram drasticamente reduzidas quando Emilio Fraia preencheu alguns (muitos) campos em branco. Ambas, enfim, proclamam suas concepções de mundo ficcional: elas gritam “O mundo é uma máquina de Goldberg gigante!” e “O mundo é um imenso campo em branco!”.
Mas por que restringir tais concepções ao campo da ficção? As duas hqs estão mesmo gritando “O mundo é uma máquina de Goldberg gigante!” e “O mundo é um imenso campo em branco!”. Em outras palavras: “Preste atenção nos seus atos! Todos eles têm consequências! Você não terá consciência de metade delas!” e “Você não conhece toda a sua história! Preste atenção nos outros! Suas certezas não são de nada!”. Bem por aí.
O leitor que não sufocar esses gritos – ao pensar, por exemplo, “pfff, são apenas histórias em quadrinhos” – terá um baita trabalho pela frente. E verá o mundo com novos olhos.
.
Sobre o Campo em branco: crítica do Mario Bresighello, no Guia de Livros da Folha de S.Paulo (1). E texto do Arthur Tertuliano, no Posfácio (2).
.
(1)
Campo em branco trata daquilo que parece oculto, ausente ou que fica subentendido. Dois irmãos que há muito não se veem decidem refazer uma viagem da infância. A bordo de um velho Fiat 147, dirigem-se para um ponto qualquer do planeta onde o vento parece determinar o ritmo do mundo.
Quem conta a experiência é Lucio, o mais novo, que não se lembra de nada e, na tentativa de resgatar e entender o relacionamento com o irmão, decide seguir a memória dele. Mas de repente dá um branco e ele se perde em lembranças e em outras histórias que completam o sentido do que quer fazer.
Se fizermos uma analogia com a função da cor branca na linguagem das HQs, logo percebemos estar diante de uma obra-prima. A novela gráfica é um exemplo de estilo figurativo que tem nos jogos com o branco um de seus pontos de força. Nela, a cor é usada até mesmo como textura, um papel que, em geral, cabe ao preto.
Aqui, o projeto gráfico em preto, dois tons de azul e branco, é perfeito para a história. No lugar de prejudicar a leitura, o efeito é desconcertante.
.
(2)
Besouro, libélula e outros insetos estampam a capa de Campo em branco. E tudo o que eu sabia sobre a hq se resumia a isso, praticamente – and that’s how I rule. (“Besouro” é uma palavra importante; reserve-a para o final desse texto.) Contudo, mesmo sem saber grandes coisas da história, eu tinha alguns parâmetros de expectativa: toda leitura é uma comparação com as anteriores; nunca resetamos o cérebro ou zeramos totalmente nossas concepções prévias ao iniciarmos um novo livro.
O álbum em questão é a quinta publicação de um “combo brasileiro” (roteirista + desenhista tupiniquins) pelo selo Quadrinhos na Cia – se não me engano, estava previsto para ser o segundo, não fossem os constantes adiamentos. Depois dos excelentes Cachalote e A máquina de Goldberg, percebi que o projeto da editora encontrou alguns percalços no caminho. Guadalupe, obra que faz bonito pelo lado do roteiro (Angélica Freitas criou uma história graciosa, tocante, feminista e engraçada – muitos adjetivos pra dizer que, enfim, é uma boa história), peca na qualidade do desenho, muito aquém da capacidade de Odyr Bernardi. Tenho a impressão de que, se dessem a ele a oportunidade de fazer algo colorido e mais elaborado, Guadalupe mataria a pau um livrinho como o do ET do Mutarelli, por exemplo. V.I.S.H.N.U., por sua vez, é uma bagunça só. As coisas mais legais deste são: o formato (é um quadradão pesado, que deve fazer bonito, fechado, numa mesa de centro); e uma memória involuntária (lembrei-me da criatividade por trás de toda a construção narrativa de Matrix e fiquei com vontade de rever The Animatrix – isso, sim, valia a pena). Uma pena, pois realmente gostei do perfil do casal Gregório Duvivier & Clarice Falcão escrito pelo roteirista – Ronaldo Bressane – para a Bravo!.
Enfim, esse foi um longo preâmbulo para dizer que uma das comparações inevitáveis seria com os outros livros da coleção. “Uma das”, não a única: já tinha lido algumas coisas, tanto do Emilio Fraia (O verão do Chibo e o conto dele para a Granta dos melhores jovens escritores brasileiros são bem bons) quanto do DW Ribatski (o rapaz é um capista excepcional e fez um bom trabalho no álbum Vigor Mortis, mas me perdeu no La naturalesa). Mais e mais comparações a caminho.
Minha intenção não é a de criar suspense ou de deixá-lo curioso a respeito da minha opinião, caro leitor. Mais direto, impossível: primeiro, eu li e achei massa. Depois de ler uma boa resenha, reli o livro, repensei algumas coisas e gostei menos. Foi então que resolvi reler mais uma vez e… não é que tinha tido razão na primeira leitura?
A fim de manter o estilo “mais direto, impossível”, um resuminho básico do enredo, com todos os defeitos, elipses e incompletudes das sinopses. O narrador (Lúcio) encontra seu irmão (Mirko) após um longo tempo sem se verem. Este convence o outro a refazer uma viagem que fizeram com o tio durante a infância – Cabo Bianco é o destino final. Há uma diferença nas memórias: o que foi antológico para um, foi totalmente esquecido pelo outro – nada mais natural, em sendo irmãos. Cabo Bianco, portanto, também seria parte da viagem: o bendito destino final talvez fosse a “Lembrança de 1987”, subtítulo da obra.
It’s the same old story: eu poderia citar “Buscar por lembranças/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã.”, se não tivesse percebido que estava mais uma vez suecando os versos de Drummond. Seria uma apenas uma rima, não uma solução.
Lembranças. Não são poucos os flashbacks da narrativa – algumas cenas até dão abertura para serem interpretadas como flashforwards, mas, por alguma razão, decidi que na minha leitura todas elas seriam flashbacks mesmo. Enfim, são tantas as interrupções na trama descrita logo acima que chega a ser sedutora a ideia de definir a obra como fragmentária e experimental.
Engraçado que eu só tenha percebido isso na segunda leitura, a mesma em que repensei minhas impressões iniciais: provavelmente fiquei tão envolvido com a primeira leitura que não dei muita bola para os “cortes”, que estão lá e realmente demandam uma participação ainda mais ativa do leitor. O meu problema com o caráter “essencialmente fragmentário e experimental” é o seguinte: tenho compreendido isso (especialmente nas histórias em quadrinhos) mais e mais como uma forma de (1) dissimular a falta de imaginação para os rumos da história e de (2) esconder os furos do roteiro – e, portanto, menos como um exercício de liberdade do formato. Em outras palavras: tais cortes servem para fazer o leitor esquecer que a história tem uma boa premissa e só. Em outras palavras: se eu visse o livro daquela forma, minha tendência seria a de enquadrá-lo nessas conclusões pré-estabelecidas.
Na terceira leitura, no entanto, meu cérebro pôs o preenchimento automático de lacunas para funcionar novamente. Consegui, inclusive, considerar a narrativa bastante convencional: com flashbacks, sequências oníricas e discussões filosófico-científicas, mas convencional. O que, ressalto, não é um defeito – ao menos para mim. Não há nada muito diferente do que já nos acostumamos a ver em muitos filmes contemporâneos.
Aliás, o álbum parece pedir para ser “lido como cinema”. Os créditos que aparecem depois de uma cena breve, já na nona página, e se repetem na p. 95; os flashbacks; os closes; as transições de cena; as sequências oníricas. Ok, tais recursos não são exclusivos do cinema; porém, este certamente os utilizou com tanta frequência que nos acostumou a identificá-los. Assim como não fugimos do trem que vem em nossa direção, pois sabemos que ele é apenas a projeção de luz em uma tela branca, já não precisamos de nuvenzinhas e cores diferentes para identificar um flashback.
Eu nem ia tocar no assunto, mas o selo da RT Features na ficha catalográfica talvez sirva de indicativo para uma futura adaptação cinematográfica. É esperar para ver.
Mas Cabo Bianco seria “apenas uma história legalzinha e tal”, se não houvesse o “campo em branco” – ou melhor, se não houvesse todo o diálogo que culmina na citação do título do livro. Em um dos tantos flashbacks, Lúcio conversa com o tio Bernardo – aquele que “viu o apartamento pegar fogo”, aquele “que os levou para viajar quando crianças” – sobre pontos e trajetórias e distrações e concentração e determinismos e surpresas. E é esse o grande jenesequá de Campo em branco.
Ciência e natureza. Há um padrão científico na natureza, aparentemente caótica. Ao mesmo tempo, o caos permeia a ciência, apesar de esta desejar ter uma fórmula para tudo. Lúcio, um físico, um cara científico (ou pelo menos é o que parece); Mirko, um porra louca, uma força da natureza (ou pelo menos é o que parece).
A partir dessas digressões, comecei a pensar no trabalho de um roteirista e um desenhista criando, juntos, uma história em quadrinhos. Por alguma razão, comecei a associar a figura do Lúcio ao Emilio e a do Mirko ao DW. Digo “por alguma razão”, como se não soubesse como tudo começou. Sei muito bem que, por não haver fotografias dos autores no livro, passei a identificar a quarta capa (que também é a p. 57) como representação destes. Aliás, não seria novidade alguma se os autores fossem representados por meio de desenhos nas hqs dessa coleção: o mesmo expediente já fora utilizado em Cachalote e A máquina de Goldberg.
De La naturalesa a Campo em branco, creio que o salto de DW Ribatski foi significativo. Não falo especificamente do traço – acredito que este tenha melhorado, ainda que mantenha o estilo do quadrinista (ele, às vezes, aparenta ser bem desleixado e feito às pressas, mas, na página seguinte, vai lá e tira o fôlego do leitor com uma composição vibrante). Quando falo em salto, me refiro propriamente à narrativa. Se em La naturalesa meu maior questionamento era o “de que adianta ter liberdade criativa se você a usa para fazer isso?”, hoje acredito que tenha partido do quadrinista (não do roteirista) a pulsão para a atenção tão destacada que se dá à natureza em Campo em branco – uma visão mais interessante, madura e bem elaborada que a observada anteriormente, sem dúvidas.
As lembranças de infância, os insetos (que me lembraram de O verão do Chibo, coescrito por Vanessa Barbara) e uma piscina (também presente no conto da Granta n. 9) – e a ligação destes com o narrador – me fizeram associá-lo, prontamente, ao Emilio. Todo o questionamento científico que perpassa a narrativa 5 parece apontar para o momento em que o roteiro foi criado: “Eu adiciono isto, nesse campo em branco, e… tudo muda”. Talvez eu tenha levado muito a sério essa leitura metalinguística, mas o fato é que percebi, em quase todas as páginas, referências visuais a entrecruzamentos, bifurcações, pontos e mudanças de trajetória. Talvez isso tudo seja apenas o estilo do quadrinista. Mas, talvez, essa recorrência de temas visuais seja algo intencional – folhas nas pontas de galhos, parecidas com os pontos (átomos?) conectados com retas (ligações atômicas?), como os desenhados nos diagramas de um quadro negro.
E é nisso que prefiro acreditar. Nessa síntese de duas mentes (tese e antítese) em busca da obra de arte perdida. Nessa conjunção de forças, aparentemente voltadas em direções opostas, mas que resultam em algo maior do que a soma das duas. “Síntese” e “conjunção” são duas palavras muito boas para o que vemos nas páginas finais.
Comparações com obras anteriores dos autores: feitas. Falta só situar a obra no panorama da coleção “combo brasileiro” do selo Quadrinhos na Cia – então, me darei por satisfeito.
As mudanças da data de lançamento, a presença de uma dupla de homens barbados pensando uma hq em conjunto e o ar meio cinematográfico (possivelmente influenciado pelo envolvimento da RT Features) pareciam facilitar a comparação entre Campo em branco e Cachalote. Não é o que farei, no entanto. O álbum irmão de Campo em branco é outro: é A máquina de Goldberg. Confesso que cogitei compará-las antes mesmo de conferir o resultado do trabalho do Emilio e do DW pelas seguintes razões: (1) as duas hqs chegaram juntas à minha caixa de correspondências – o que não é nada surpreendente, pois fui eu o responsável por essa “coincidência” quando as encomendei no mesmo pedido; e (2) os dois roteiristas já haviam trabalhado em conjunto num romance citado algumas vezes no decorrer deste texto – O verão do Chibo, finalista do prêmio São Paulo de Literatura (ou, menos relevante, “um livraço”, segundo a minha pessoa). Pareceu-me uma boa ideia analisar como os dois voltaram a ser bem-sucedidos ao trabalharem em duplas diferentes, mas, se fosse só isso, o reconhecimento de padrões não passaria da mera curiosidade de caixa de cereal: “Você sabia que Vanessa Barbara e Emilio Fraia nasceram no mesmo ano e cidade (São Paulo, 1982) e dedicaram seu primeiro romance ao Mandaqui?”.
Juro que tentei me distanciar desse plano, mas as coincidências começaram a pipocar – ao menos para a minha mente semi-obsessiva. As duas hqs têm insetos mortos logo em suas primeiras páginas. Nas duas, a natureza tem um papel importante (seria ela um dos protagonistas?), o que é provocado por uma viagem que distancia os narradores dos grandes centros urbanos em que vivem. Em ambas, foi verificada tanto a presença de quelônios e felinos quanto a proeminência do tema da infância no desenvolvimento do enredo (e, isso sim, era de se esperar dos criadores do Cabelo, do Bruno, do Chibo, do besouro chamado Bob, da rainha da Bulgária, da canção “Eu Sou um Bolinho de Arroz” e do narrador fofo encarregado de contar essa história toda). Não podemos nos esquecer de que alguns dos momentos mais inspirados – visualmente falando – ocorrem durante sequências oníricas, em que a gravidade parece simplesmente deixar de funcionar. Quando percebi que certas cenas submersas das duas mexeram comigo, decidi que me arriscaria numa ligeira comparação – e o mundo que se adapte.
Num primeiro olhar, A máquina de Goldberg soa como um elogio ao controle absoluto, ao passo que Campo em branco enaltece a aleatoriedade da vida: nada mais controlador que uma máquina que tem como objetivo “dificultar atividades consideradas simples demais” e que não pode ser auxiliada em nenhuma de suas fases; nada mais aleatório do que saber que qualquer coisinha muda tudo ou que “a concentração exagerada é um tipo de distração”. No entanto, a contradição dessas mesmíssimas ideias também se faz presente nas histórias – seja quando Getúlio admite as diversas “fugas” do roteiro da máquina de Goldberg projetada pelo velhote para o clímax da hq de Barbara, seja quando percebemos que as possibilidades da aleatoriedade se manifestar foram drasticamente reduzidas quando Emilio Fraia preencheu alguns (muitos) campos em branco. Ambas, enfim, proclamam suas concepções de mundo ficcional: elas gritam “O mundo é uma máquina de Goldberg gigante!” e “O mundo é um imenso campo em branco!”.
Mas por que restringir tais concepções ao campo da ficção? As duas hqs estão mesmo gritando “O mundo é uma máquina de Goldberg gigante!” e “O mundo é um imenso campo em branco!”. Em outras palavras: “Preste atenção nos seus atos! Todos eles têm consequências! Você não terá consciência de metade delas!” e “Você não conhece toda a sua história! Preste atenção nos outros! Suas certezas não são de nada!”. Bem por aí.
O leitor que não sufocar esses gritos – ao pensar, por exemplo, “pfff, são apenas histórias em quadrinhos” – terá um baita trabalho pela frente. E verá o mundo com novos olhos.
.