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Sobre a Carmen, de Prosper Mérrimée, na Bravo! final.
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Carmen faz parte do seleto time de personagens da literatura que conhecemos antes de ler os livros. Não são muitos. O que sabemos dela está na ópera de Georges Bizet, levada à cena em 1875; em filmes como os de Otto Preminger (1954, apenas com atores negros) e Carlos Saura (1983, com dançarinos de flamenco), em musicais da Broadway, séries de tevê, HQs, comercial de lingerie, canecas, chaveiros, camisetas etc. Por isso, é possível ler a novela de Prosper Mérrimée (1803-1870), hoje, como se fosse uma espécie de fan fiction — “ficção criada por fãs”, em que uma nova história é criada a partir do enredo oficial — e, numa inversão cronológica, analisar as contribuições do “fã” Mérrimée para a trágica paixão entre a cigana e dom José.
Publicado em 1845, o livro é cheio de meandros e se assemelha a uma volta (bêbado) pelas ruelas de Sevilha, onde se passa parte da trama. Mérrimée nos conduz pela jornada da cigana de “beleza estranha e selvagem”, que requebra “como uma potra do haras de Córdoba”. Mas principalmente nos leva pela voz de dois narradores. Essa é uma de suas “inovações”. É através deles que enxergamos Carmen, e isso transforma toda a história.
“De maneira esquemática, podemos dizer que a ópera é sobre a paixão e o livro, sobre o ciúme”, observa Samuel Titan Jr., que assina a tradução e o posfácio desta nova edição brasileira, a ser lançada este mês — parte da Coleção Fábula, da editora 34. Se na ópera todos os olhares se voltam para Carmen, e ela é o centro; na novela, só acessamos a personagem a partir dos narradores. A todo momento, por exemplo, vemos dom José desconfiado, sem saber se Carmen realmente o está traindo. “Não por acaso, Machado de Assis foi buscar na obra um dos elementos centrais de caracterização de sua Capitu: os olhos oblíquos, de cigana”, lembra Titan, evocando a primeira aparição de Carmen na novela, quando são descritas sua pele (de cobre), sua boca (que deixa entrever “dentes mais brancos que amêndoas sem casca”) e seus olhos (“oblíquos e admiravelmente rasgados”).
A história começa e termina conduzida por um narrador empolgadamente pedante. No início, ele está na Andaluzia no outono de 1830, empreendendo uma diligente busca para situar com exatidão o local onde se desenrolou a batalha de Munda, um dos capítulos da conquista da península ibérica por César, “o lugar memorável em que César apostara tudo contra os campeões da república”. Espera que sua dissertação sobre o tema “resolva enfim o problema geográfico que mantém em suspenso toda a Europa erudita”. Nessa solene errância, conhece dom José, um ex-militar de carreira promissora, que, apaixonado por Carmen, sofre uma série de quedas e reveses, até assassinar um homem e entregar-se a uma vida de “azares e rebelião” ao lado da cigana. “Uma moça bonita”, reflete dom José, imerso no pote da ruína, “faz o sujeito perder a cabeça, brigar, cair em desgraça, fugir para a montanha, e de contrabandista a ladrão é só um passo”.
A novela é dividida em quatro partes, e é apenas na terceira que o tal narrador erudito dá lugar a dom José. Na prisão e condenado à morte, dom José vai contar a ele (e a nós) a aventura que viveu ao lado de Carmen. Tudo o que a gente sabe sobre Carmen diz respeito a este capítulo, cheio de ação. A ópera de Bizet, por exemplo (que nas palavras de Alan Raitt, biógrafo britânico de Mérrimée, “não passa de uma versão emasculada e enfeitada da novela”).
À medida que dom José relata sua história, um episódio da segunda parte do livro volta com força: o breve encontro do narrador inicial com Carmen, no cais, às margens do rio Guadalquivir, em Córdoba. Ela surge de repente, como que saída das águas (e este é um tema que mereceria um texto à parte: as aparições de Carmen ao longo da história). É a única vez que este narrador fica diante dela. Imediatamente, ele sente o perigo, o poder de atração. E se afasta. “Ele não vive uma história com ela, ao contrário de Dom José que, sim, vai se deixar levar — e pagar o preço”, comenta Titan. “É dom José quem vai se aproximar da cigana, viver na pele e, como uma espécie de emissário do real, contar ao outro o que viu, porque esteve lá.” Não por acaso, o mito evocado na cena do rio é o de Acteão e Diana, em que o caçador Acteão surpreende Diana à hora do banho. A deusa o transforma em cervo, e Acteão é devorado por seus próprios cães — ele chega perto demais, vê mais do que podia ver. Toda a novela é sobre isso: um jogo de aproximações e afastamentos.
Assim que dom José termina de contar sua saga, o pedante estudioso reassume o comando da narrativa. A parte final da novela é surpreendente — e também pelo que não se diz. Estranho à primeira vista (há um corte na história), o fim parece expor uma espécie de solução encontrada pelo narrador para se relacionar com a figura fatal de Carmen. É como se, depois de tudo o que foi contado por dom José, o narrador pensasse: bem, vou me calar e me distanciar, e discursar friamente sobre os ciganos. E, assim, salvar a minha pele. Nisso, nessa moldura narrativa (os dois narradores, uma história dentro de outra), está o trunfo da novela de Mérrimée —que depois de Carmen passou vinte anos (praticamente o resto da vida) sem escrever ficção, dedicando-se ao cargo de inspetor geral dos monumentos históricos da França.
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