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Terça-feira
Em Temuco, o ar tem cheiro de lenha queimada. É tão denso que ao esticar o braço a sensação é de atravessar algo vivo. Nas casas, as lareiras e aquecedores forçam os termômetros para cima — na frente do pequeno aeroporto, à noite, faz sete graus. A luz da torre de comando acende um feixe de névoa e, desaparecendo, fica para trás: de Temuco até Huilo Huilo são 190 quilômetros (desde Santiago são 860), por uma estrada que margeia lagos enormes, como o Panguipulli. No carro, o motorista coloca um CD com pios de pássaros (e APENAS pios de pássaros), no repeat. Ele fala de uma espécie da região, o chucao, que vive nas gretas, nas fendas das pedras. Em mapudungun, língua mapuche, o superlativo é formado a partir da repetição de palavras: Huilo Huilo significa “grande fenda”.
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Quarta-feira
Na subida para dois vulcões, os gêmeos Mocho-Choshuenco — 2422 e 2415 metros —, é possível ver o lago Pirehueico, que liga Huilo Huilo a San Martín de Los Andes, na Argentina — a travessia é feita numa barcaça e leva uma hora e meia. Pirehueico significa “lugar de água de neve”. No povoado de Neltume, lá embaixo, cai uma chuva fina. O clima é produto da umidade carregada pelos ventos do Pacífico, que se condensa por causa da corrente de Humboldt. Chove muito em Huilo Huilo. Em Neltume, todos os nomes remetem a árvore. Há uma praça chamada O Bosque, margeada pela rua dos Trevos, um bar chamado Tronco Velho, perto das ruas dos Ciprestes e das Acácias. A principal atividade da cidade sempre esteve ligada à madeira. A ocupação da vila começou em 1870 — até então, os únicos habitantes eram os Mapuche. Em 1898, foi construída a primeira empresa florestal. Em 1942, foi instalada uma fábrica de compensados e, mais tarde, de portas e janelas.
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Quinta-feira
Estou num hotel chamado A Montanha Mágica. Tem formato piramidal e treze quartos (os quartos vão ficando menores à medida que se sobe a rampa interna circular). No livro do Thomas Mann, um jovem vai visitar um primo num sanatório destinado ao tratamento de doenças respiratórias, nos Alpes suíços. É diagnosticado com tuberculose e acaba ficando no lugar por meses e, depois, anos. Mais de uma vez, alimentei a seguinte ficção: estou viajando, sozinho, quando algo extraordinário acontece — da noite para o dia, um decreto fecha as fronteiras do país, ou perco magicamente meus documentos, ou inicia-se uma invasão alienígena — e não posso mais voltar para casa e sou obrigado a viver, então, nesse lugar novo e estranho. Longe de casa, vou precisar aprender os códigos locais, me adaptar, e não conheço ninguém, não sei falar a língua, estou sozinho e numa posição inferior.
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Sexta-feira
Numa construção anexa, nos fundos do hotel, ficam seis caldeiras. De quinze em quinze minutos, um homem alimenta as fornalhas com madeira. Ele trabalha ali há sete anos. Antes, era cozinheiro. Reveza-se em turnos de oito horas com outros quatro caldeireiros. Num depósito ao lado, ficam os pedaços de tronco, que ele próprio corta. Diz que os termômetros devem permanecer em 60 graus. Não muito longe, enfileiram-se árvores fincadas no chão, ao contrário, com as raízes para o alto. O homem explica que quando estavam pensando na construção de um dos hoteis da reserva, o Nothofagus (nome da classe de árvores da qual fazem parte o carvalho e o raulí), colocaram as árvores ali, de ponta cabeça, para ilustrar a ideia.
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Sábado
No fim da tarde, é possível avistar cervos e guanacos. No inverno, eles saem dos bosques e descem as montanhas, em busca de alimento. Outro animal da região é o huemul, tipo de cervo do sul do Chile. No lugar, funciona um centro de conservação do bicho. Estima-se que, hoje, existam menos de 1500 exemplares no mundo — dez deles estão na reserva. Além do huemul, lutando por atenção e sobrevivência, há o pudú, o menor cervo do mundo. Ele tem dez quilos, quarenta centímetros e aparência de pelúcia. De volta ao hotel, nos jardins dos arredores, as plantas crescem feito pêlos numa orelha de avô. A piscina está cheia de folhas. No chão, o mato sobe e se enrola nas estátuas de criança, que lembram o Peter Pan dos jardins de Kensington. Penso que isso constitui uma espécie de eixo horizontal. O eixo vertical é representado pelo carvalho que fica na parte interna do hotel, sob uma claraboia. Parece haver um diálogo entre esta árvore (deve ter uns vinte metros), que aponta para o alto, e as plantas e folhas que cobrem o chão. Penso numa convergência entre esses dois eixos, o da árvore, a neve, a montanha (vertical) e o da lenha, folhas caídas, a caldeira (horizontal).
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Domingo
Em Santiago, num bar chamado Liguria. Tem um balcão comprido que vai dar num segundo salão, de pé direito altíssimo. O chão é de ladrilho e as paredes cobertas de mapas, cartazes, placas de ruas antigas e fotografias — um Frank Sinatra sendo fichado pela polícia paira sobre nossas cabeças.
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