sexta-feira, 8 de março de 2019

ligeiramente irreal

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Sobre o Sebastopol, na capa do caderno Pensar do Estado de Minas. Texto e entrevista do escritor Carlos Marcelo Carvalho.







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Longe é um lugar que não existe. Ao menos na literatura. Por meio das três histórias reunidas por Emilio Fraia em Sebastopol, é possível vislumbrar a cidade russa que batiza o livro, compreender o fascínio despertado pela escalada do Everest, voltar à década de 1970 para dar uma volta de carro em Lima, “cidade coberta de pó e de pessoas que para mim mais pareciam mortos-vivos que brotavam da secura dos horizontes borrados e cor de terra e ficavam indo de um lado para o outro, sem destino”. Viradas bruscas de personagens errantes, entre incidentes e acidentes. Histórias vivenciadas, comentadas, inventadas. Os contos de Sebastopol oferecem caminhos bifurcados que, como num caleidoscópio, se multiplicam a partir da imaginação do autor – e do leitor.

Nascido em 1982, o paulistano Emilio Fraia foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2008 com o romance O verão do Chibo, que escreveu com Vanessa Barbara. Também lançou a graphic novel Campo em branco (parceria com DW Ribastki) e foi um dos 20 incluídos na coletânea Os melhores jovens escritores brasileiros, da revista Granta. Trabalha como editor no grupo Companhia das Letras. Em um dos contos, uma personagem defende a praticidade profissional: “As coisas simples levam a soluções simples, as coisas complicadas nos levam à loucura”. Ao ser perguntado pelo Estado de Minas se a fórmula se aplica ao seu trabalho de edição, Fraia responde: “Acho que sim. Mas se aplica, sem dúvida, a escrever um livro.” Confira, a seguir, a entrevista do escritor.

Chico Buarque escreveu Budapeste sem ter conhecido a capital da Hungria. Você também não foi a Sebastopol (tampouco, imagino, tentou escalar o Everest). Como criar uma narrativa de deslocamento sem ter visitado os lugares citados? O que atraiu sua imaginação para lugares tão distantes? Sim, nunca fui a Sebastopol, nunca estive na Rússia. Também nunca fui ao Everest, que é onde se passa parte da primeira história. Já fui a Lima, é verdade, mas, para o tipo de ficção do livro, isso não quer dizer muita coisa, não muda o jeito de compor. O que mais me atrai neste caso são as representações desses lugares, ou melhor, como essas representações podem conter o real em si — como elas podem, como a ficção, falar mais ao real do que o próprio real. Não por acaso, no livro, Sebastopol é apresentada primeiro como um cartão-postal, depois como uma cidade num mapa. As montanhas do Everest surgem em meio a uma filmagem (de um vídeo publicitário), em que não é possível distinguir muito bem o que é real ou não. A Lima dos anos 1980 é mais uma alucinação, uma premonição. A São Paulo atual, na história que encerra o livro, também. Tudo ligeiramente irreal e, portanto, mais real.

Contos de Sebastopol é um dos livros de Tolstói. Qual a conexão por você estabelecida, além do título e do formato? Por que a literatura dos grandes mestres russos ainda ecoa com tanta força no século 21? Tolstói, Bábel e Tchékhov parecem ter inventado tudo. Sobre Tolstói, o crítico Lionel Trilling escreveu: “A esperança de toda pessoa é ser julgada à luz da representação da natureza humana criada por Tolstói. Talvez o que Tolstói tenha feito seja instituir como realidade o julgamento que toda pessoa digna e razoavelmente honesta provavelmente faz de si mesma — alguém nem totalmente bom, nem totalmente ruim; nem heroico, nem destituído de heroísmo; nem esplêndido, nem privado de momentos luminosos; alguém que não pode ser entendido mediante nenhuma fórmula, mas que tem seu princípio de vida, e que de algum modo, e a despeito de ideias convencionais, consegue manter uma inesperada dignidade”. Acho que seguimos aprendendo e dialogando com ideias assim.

Uma das críticas publicadas a respeito do livro, assinada por Sérgio de Sá na coluna Gosto de ler, aponta que Sebastopol é “sobre modos de narrar. Ou melhor, sobre como narramos nossas próprias vidas e sobre quem escolhemos para dividirmos a narração da nossa trajetória”. Como encontrou as formas diferentes de narrar os três contos? Eu queria escrever histórias que funcionassem por si só, cada uma com seu universo, mas que ao mesmo tempo quando colocadas lado a lado pudessem estar conectadas por relações sutis, por um andamento comum. Como se para além da voz da narração de cada um dos contos houvesse uma outra subjetividade, difusa, pairando sobre tudo, e isso criasse um efeito. Uma sensação de diferença (afinal, as histórias são independentes), mas também de proximidade (temas que voltam, um tom comum, uma certa progressão). Queria que o leitor chegasse ao final e pudesse repassar as histórias em busca destes pontos de contato. Por exemplo: no livro, há sempre alguém que conta, imagina, recorda. E a história contada, imaginada, inventada toma a frente e acaba funcionando como uma espécie de comentário à história principal — e ao livro também. São histórias simples que começam, no conjunto, a ficar complexas.

“A beleza da escalada é que não serve para nada.” E a beleza da literatura? Quem diz essa frase no livro é Gino, um personagem um pouco pedante, dono de uma produtora de vídeo, com aspirações artísticas. Um dos poderes da literatura está justamente em se afastar do discurso utilitário, é verdade. Mas se pararmos por aí vamos repetir apenas um clichê sobre a inutilidade da arte (ou da escalada, no caso do Gino). O que penso é que a literatura é enganosamente inútil. Ao nos colocar em contato com realidades, situações e visões de mundo diferentes das nossas (e ao mesmo tempo que nos dizem tanto respeito), a literatura é uma espécie de máquina de sensibilização. A beleza está nisso: ela não serve para nada e serve para tudo.

“Desde pequena, meu sonho era escalar o Everest.” Qual o maior desafio ao optar por uma voz feminina como narradora? A primeira e a terceira histórias do livro são narradas por mulheres. Nos dois casos, essas narradoras se relacionam muito de perto com personagens masculinos (Lena e Gino em uma; Nadia e Klaus na outra). Mais do que a verossimilhança (que eu acho que se alcança de maneira mais efetiva quando não se quer soar “feminino” ou “masculino”), o que busquei foi tematizar as tensões entre as narradoras e estes personagens masculinos. O primeiro conto, no fim, é sobre isso: o olhar de um homem sobre a narradora, sobre como ela está presa a isso a ponto de não sabermos mais quem está no controle. Ela vê o que acredita ser a sua história sendo contada num vídeo e pensa se foi ele quem fez aquilo, se foi ele quem se apropriou de algo íntimo dela, como se alguém houvesse lhe roubado um segredo. Como retomar o controle das nossas histórias? Mas o que significa estar no controle? A história será mais verdadeira assim? O fotógrafo canadense Jeff Wall tem uma foto de que gosto muito, Picture for women. Numa cena, dividida em três partes, estão uma mulher (que olha para a frente), uma câmera no centro e o fotógrafo à direita. É um comentário cheio de ambiguidades sobre a representação feminina a partir do olhar masculino.

Na sua opinião, quais foram os escritores, nacionais e estrangeiros, clássicos ou contemporâneos, que conseguiram chegar ao topo do Everest? Os mesmos culpados de sempre: Tchékhov, Poe, Tolstói, Machado, Flaubert, os contos da Flannery O’Connor. Faulkner, Kafka, Beckett, Drummond. Borges, Onetti, Stevenson, Bolaño. Hemingway, Cheever, Bataille. Walser, Bernhard, Coetzee.

“As pessoas se identificavam, e logo entendi que a identificação era a chave, uma chave que podia abrir todas as portas.” A identificação também pode abrir a porta para mais leitores? “As pessoas estão interessadas em histórias reais. Você só precisa formular de um jeito que inspire.” E, no caso da ficção, como despertar um interesse tão grande quanto o despertado pelas histórias reais? As frases são ditas por uma personagem, Lena, num momento em que ela se torna uma palestrante motivacional. São clichês contemporâneos. Lena é uma escaladora, sofre um acidente grave e passa então a contar sua história para plateias em empresas, vídeos na internet, algo nos moldes dos TED Talks (que vêm formatando um certo tipo de narrativa hoje em dia). Aos poucos, ela descobre estratégias de como emocionar, mobilizar seu público — e transforma sua história, sua experiência íntima num formato, num tipo de “narrativa” (e em dinheiro). Lena percebe que o sucesso está diretamente ligado à identificação das pessoas com o que ela tem a contar/mostrar. O segredo, ela diz, é inspirar, ser “verdadeira” e, assim, agradar, conseguir elogios, seguidores etc. Todos nós conhecemos isso. As redes sociais funcionam assim. A má política também. E esse é exatamente o oposto da boa ficção, da arte — e da verdade. A identificação é uma das grandes moedas do nosso tempo, mas precisamos começar a duvidar dela. Ela não é algo absoluto. É preciso duvidar desse tipo de discurso, das formas que temos facilmente à mão para transmitir (e dar sentido) às nossas experiências.

“A gente conta e repete as histórias porque tem medo delas”, afirma o narrador do segundo conto. E no seu caso, por que contar as três histórias de Sebastopol? Boa pergunta. Foi o que tentei descobrir. O ponto de partida sem dúvida é este: uma imagem que nos dá algum tipo de medo, algo que gostaríamos de entender melhor, chegar mais perto do lugar onde o nosso segredo está escondido. Claro que no fim não há uma resposta, mas acabamos articulando um pouco melhor as perguntas.

Você já escreveu um romance a quatro mãos, uma graphic novel, agora lança um livro de contos. Qual o próximo passo? Um romance assinado apenas por você, um novo volume de contos ou pretende retomar as parcerias? Ou, antes do próximo projeto, conhecer Sebastopol? Comecei a escrever um romance, mas só de pensar no trabalho todo pela frente acho que fugir para a Rússia seria mais negócio.
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