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Texto novo no blog da Companhia das Letras.
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Richard McGuire, em entrevista recente feita pelo jornalista Ramon Vitral, explica assim a gênese de sua graphic novel, Aqui:
“Eu tinha acabado de me mudar para um apartamento, isso em 1988, e estava pensando em quem havia morado lá antes de mim. Então tive a ideia de fazer um quadrinho que ficava indo e voltando no tempo. Escolhi o canto de uma sala porque poderia funcionar como uma tela dividida, como você vê de vez quando em filmes, de forma que o lado esquerdo fosse para frente e o lado direito para trás. Fiz alguns esboços simples. Depois, um amigo me visitou e contou do computador dele e de um programa chamado Windows, foi quando ficou claro que eu poderia usar essa estrutura de janelas para mostrar múltiplas perspectivas de tempo simultaneamente.”
Em 1989, a nona edição da Raw, lendária revista de quadrinhos editada por Art Spiegelman e Françoise Mouly (onde Spiegelman começou a publicar sua obra-prima, Maus), trazia a história de McGuire. Eram seis páginas, trinta e seis quadros, o embrião do que viria a ser a graphic novel, publicada anos depois, em 2014, nos Estados Unidos.
Chris Ware, autor do já clássico Jimmy Corrigan, lembra da sensação ao se deparar com a história pela primeira vez: “Enquanto a maioria dos trabalhos publicados na Raw eram experimentais, expressionistas, de estilo sofisticado, Aqui era uma combinação de texto e imagem sem grandes atrativos, monótona, caseira até. Sentado no sofá, senti o tempo se expandir infinito, para frente e para trás, e tive a exata noção de todos os grandes pequenos momentos entre dois pontos. Não era só a minha cabeça: o livro de McGuire estourava os confins da narrativa gráfica e ampliava seu universo de um lampejo só, introduzindo uma dimensão nova à narrativa visual que rompia com a leitura tradicional dos quadrinhos, de cima para baixo e da esquerda para a direita. E a estrutura era orgânica, acenando não só ao passado da mídia, mas também sugerindo seu futuro”.
Observar as seis páginas da história de 1989, reproduzidas aqui (com tradução do Érico Assis, tradutor também da versão brasileira do álbum), e depois correr os olhos pelo livro, é uma experiência que leva a pensar na própria lógica da narrativa de McGuire e sua reflexão sobre o tempo. Há a questão sobre como um trabalho pode se desenvolver com o passar dos anos e se transformar praticamente em outro. E há, sobretudo, a ideia de que estamos vendo Richard McGuire ver o canto da sala e como esta visão se modifica quando vamos da obra de 2014 para a de 1989 e vice-versa.
Num exercício à Boyhood, Richard McGuire deveria se propor a refazer a história a cada quinze anos, adicionando novos episódios, mas principalmente recontando o que já foi contado, o mais fielmente possível.
Sartre, no texto que escreveu em 1939 sobre a questão do tempo no grande romance sobre o tempo que é O som e a fúria, diz que “para alcançar o tempo real, é preciso abandonar a medida inventada do relógio que, afinal, não é medida de nada”. E cita um trecho do livro de Faulkner: “o tempo morre sempre que é medido em estalidos por pequenas engrenagens; é só quando o relógio para que o tempo vive”.
Enquanto McGuire escolhe a imagem de um homem sentado, observando o que se passa no espaço do canto de uma sala, Sartre compara a visão de Faulkner à de “um homem sentado num carro conversível olhando para trás” – “não param de aparecer à sua direita e à sua esquerda sombras disformes, lampejos, vibrações difusas, confetes de luz que apenas mais tarde, com um recuo, passarão a ser árvores, homens, carros”.
“O passado”, escreve Sartre, “ganha assim algo de surreal: seus contornos são rijos e nítidos, imutáveis; o presente, inominável e fugidio, defende-se dele com dificuldade; ele está cheio de buracos e, por esses buracos, as coisas passadas o invadem, fixas, imóveis, com o silêncio dos juízes ou dos olhares.” É uma sensação parecida a que sentimos à medida que viramos as páginas e tentamos desembaralhar e reestabelecer a cronologia de Aqui. Mas o que McGuire e Faulkner parecem nos dizer, cada um a seu modo, é que mesmo quando estão em ordem, os passados não se ordenam segundo a cronologia. Para Faulkner, inclusive, a desgraça do homem é ser temporal.
Numa das passagens mais bonitas de O som e a fúria, Quentin conta o que o pai lhe disse quando deu a ele o relógio que havia sido de seu avô: “Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo”. Algumas páginas depois, Quentin pega o relógio e bate com ele na quina de um móvel uma, duas, várias vezes, até quebrar o vidro. Arranca os ponteiros, mas o tique-taque não para.
Texto novo no blog da Companhia das Letras.
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Richard McGuire, em entrevista recente feita pelo jornalista Ramon Vitral, explica assim a gênese de sua graphic novel, Aqui:
“Eu tinha acabado de me mudar para um apartamento, isso em 1988, e estava pensando em quem havia morado lá antes de mim. Então tive a ideia de fazer um quadrinho que ficava indo e voltando no tempo. Escolhi o canto de uma sala porque poderia funcionar como uma tela dividida, como você vê de vez quando em filmes, de forma que o lado esquerdo fosse para frente e o lado direito para trás. Fiz alguns esboços simples. Depois, um amigo me visitou e contou do computador dele e de um programa chamado Windows, foi quando ficou claro que eu poderia usar essa estrutura de janelas para mostrar múltiplas perspectivas de tempo simultaneamente.”
Chris Ware, autor do já clássico Jimmy Corrigan, lembra da sensação ao se deparar com a história pela primeira vez: “Enquanto a maioria dos trabalhos publicados na Raw eram experimentais, expressionistas, de estilo sofisticado, Aqui era uma combinação de texto e imagem sem grandes atrativos, monótona, caseira até. Sentado no sofá, senti o tempo se expandir infinito, para frente e para trás, e tive a exata noção de todos os grandes pequenos momentos entre dois pontos. Não era só a minha cabeça: o livro de McGuire estourava os confins da narrativa gráfica e ampliava seu universo de um lampejo só, introduzindo uma dimensão nova à narrativa visual que rompia com a leitura tradicional dos quadrinhos, de cima para baixo e da esquerda para a direita. E a estrutura era orgânica, acenando não só ao passado da mídia, mas também sugerindo seu futuro”.
Num exercício à Boyhood, Richard McGuire deveria se propor a refazer a história a cada quinze anos, adicionando novos episódios, mas principalmente recontando o que já foi contado, o mais fielmente possível.
Enquanto McGuire escolhe a imagem de um homem sentado, observando o que se passa no espaço do canto de uma sala, Sartre compara a visão de Faulkner à de “um homem sentado num carro conversível olhando para trás” – “não param de aparecer à sua direita e à sua esquerda sombras disformes, lampejos, vibrações difusas, confetes de luz que apenas mais tarde, com um recuo, passarão a ser árvores, homens, carros”.
Numa das passagens mais bonitas de O som e a fúria, Quentin conta o que o pai lhe disse quando deu a ele o relógio que havia sido de seu avô: “Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo”. Algumas páginas depois, Quentin pega o relógio e bate com ele na quina de um móvel uma, duas, várias vezes, até quebrar o vidro. Arranca os ponteiros, mas o tique-taque não para.
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