quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

cartão-postal

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Texto novo no blog da Companhia das Letras.

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Em 2009, uma amiga me trouxe da Bienal de Veneza o cartão-postal de uma praia dourada de sol, com surfistas e gente nadando, em cuja parte inferior, num lettering vermelho-batom, podia-se ler: VENEZA.

Era um dos cem cartões-postais criados pela artista polonesa Aleksandra Mir, todos com imagens de lugares com água; cascatas, rios, mares, lagos na Alemanha, fontes em Paris, a costa de Sidney. Nenhum deles era Veneza, mas todos eram Veneza, com a mesma legenda, o nome da cidade italiana, escrita nos mais diferentes layouts, cores e tamanhos.

Um milhão de cópias circularam pela Bienal. Os cartões ficavam numa dessas gôndolas de bancas de jornal, próximas a duas caixas de correio e a uma cabine de venda de selos. Era possível levar consigo ou enviar dali mesmo os falsos recuerdos para amigos, namorados, conhecidos, parentes etc. Assim, Mir (que dez anos antes havia sido a primeira mulher a pisar na lua) provocava algumas questões sobre turismo, globalização e sobre como toda água é uma só água: “Veneza em cada molécula de chuva”.

Não sei se as pessoas ainda mandam cartões-postais. Eles parecem ter voltado para o seu planeta, assim como os hidrantes. Os telefones públicos também começam a tomar o caminho de volta.  

Também não tenho certeza se quando viajamos nos identificamos com personagens como os das fotos de Martin Parr, nem se Parr quando viaja se identifica com eles: turistas e suas máquinas fotográficas, em filas grotescas, em meio a garrafas plásticas e pombas transmissoras da peste na Piazza San Marco, coração de Veneza (que de tão massacrada pelos visitantes, o filósofo Giorgio Agamben chamou de cidade-espectro, “um lugar que já deixou até de ser um cadáver”). 

Mas seja qual for nossa ideia de viagem (“exclusiva”, “genuína”, “fora de temporada”, “across Asia on the cheap”), talvez devêssemos começar a nos ver como personagens de Parr -- e não apenas os outros como personagens de Martin Parr. Para mim, o tom de suas fotos é sempre um só, há pouca ambiguidade e preciso me esforçar para enxergar algum afeto ali.



O comentário mais afetuoso sobre viagens, turismo, globalização e cartões-postais quem fez, no entanto, foi o fotógrafo italiano Luigi Ghirri (1943-92). Em cartaz no Instituto Moreira Salles de São Paulo, Luigi Ghirri. Pensar por imagens. Ícones, paisagens, arquiteturas é imperdível. 

Colecionador de cartões-postais, achados “nas bancas mais modestas, aquelas que tinham os postais mais velhos e óbvios”, Ghirri vai investigar as relações entre a imagem da paisagem real e suas representações. A mostra reúne cerca de trezentas fotos. Em muitas delas, o que vemos é o confronto do real com os estereótipos da imagem dos cartões-postais, e uma mescla cada vez maior entre ficção e realidade — lugares opacos, desvanecentes. 

“Ghirri parece indicar que o espaço às margens, banal, sem qualidades e sem peculiaridades — que redesenhado pela globalização e pela padronização visual, parece ter perdido toda identidade — é a verdadeira paisagem a ser analisada na busca de uma visão mais autêntica, que supere o estereótipo e o lugar-comum”, escrevem os curadores Francesca Fabiani, Laura Gasparini e Giuliano Sergio. Assim, as fotos de Ghirri se tornam o próprio cartão-postal, e tudo o que poderia haver de épico nas paisagens volta a ser rotineiro.


São imagens que “nos atraem sem nos contar nada”. Guirri achata, simplifica; a luz de suas fotos é uniforme, sem contrastes dramáticos; as cores são chapadas. E tudo dialoga com o amadorismo, a simetria estranha. 

É como se, num aeroporto, Ghirri tivesse sua bagagem extraviada. Na esteira rolante, os passageiros pescariam suas malas e mochilas, e restaria apenas uma bolsa desbotada e murcha, dando voltas — até um funcionário vir e recolhê-la. Ghirri enfiaria a cabeça pela portinhola de onde saem as bagagens. Lá fora, já seria noite e não haveria nada, só um carrinho enferrujado, provavelmente o que trouxe as bagagens (menos a dele). 

Ghirri preencheria um formulário. Responderia perguntas. Apontaria num diagrama o desenho que mais se assemelha à sua mochila. Seguiria-se uma série de telefonemas. Em algum momento — quando já estivesse pensando em estratégias avançadas de reutilização de camisetas, meias e cueca — sua bagagem seria localizada. Estava num outro avião. Ghirri esperaria. Procuraria uma poltrona de onde pudesse ver os aviões decolarem e aterrissarem. À meia-noite, continuaria sozinho, olhando as luzinhas azuis da pista, o grande painel de uma propaganda de uísque, uma imagem com palmeiras, a noite deslizando um calor úmido, o mar atrás da planície.


Pois é assim que Ghirri vê o mundo, como uma grande montagem. “E então me dei conta de que a realidade estava cada vez mais se tornando uma fotografia enorme”, diz, numa entrevista. 

Nascido na província de Reggio Emilia (na região da Emília-Romanha, norte da Itália), começou a vida como topógrafo e designer gráfico, antes de se tornar fotógrafo, no começo dos anos 70. Uma de suas séries mais emblemáticas, Em escala, foi realizada entre 1977 e 1978. Nela, Ghirri fotografou monumentos e paisagens italianas em miniatura, reproduzidos em escala reduzida. Em Atlas, de 1973, fez close-ups de mapas, que sugeriam, de acordo com Marina Spunta, “a importância da imaginação e da memória na percepção dos lugares”.

No catálogo da exposição, um dos trechos mais gloriosos é a transcrição de uma conversa entre o fotógrafo Thomas Demand e a editora da Frieze, Christy Lange. Num certo momento, passam a debater a respeito do olhar de Ghirri sobre um parque de diversões numa cidadezinha do interior da Itália. “Ele desvia a câmera dos Alpes que se agigantam e a aponta para um modelo dos Alpes num parque de diversões vagabundo, como se dissesse: vejam como uma foto dessa cordilheira pode ser tão espetacular quanto a realidade, se não for mais espetacular ainda”, comenta Lange. 

Demand: “Talvez um carrossel seja a coisa mais triste numa cidadezinha do interior da Itália. Nessas fotos, tudo já está fechando para o inverno, Ghirri parece ter chegado atrasado. Vê-se que as coisas foram projetadas para criar uma atmosfera artificial de festa. Ou seja, ele é totalmente antikitsch: com frequência, está só desconstruindo a ideia do impacto emocional que as coisas deveriam ter, como a alegria de um laguinho onde se soltam barquinhos. O parque de diversões nunca é divertido. Mas Ghirri não denuncia isso. Na verdade, ele o mostra cheio de afeto”. 

Lange: “Concordo com você, ele não mostrava essas atrações turísticas como vulgares. Mas, para mim, a ironia, ou o humor, está em que, se ele tivesse desviado a câmera um pouco para a esquerda ou para a direita, provavelmente veríamos uma coisa bem mais espetacular, atemporal ou tradicionalmente bela ou grandiosa do que o que vemos na imagem”. 

Demand: “É verdade, mas também se você olhar para a imagem feita do parque, com a roda-gigante ao fundo, se ele tivesse apontado a câmera para outro ponto, teria obtido uma imagem muito menos problemática. Com bastante frequência, ele apenas corta a imagem em metades estranhas, fazendo com que o observador tenha de juntar os pedaços para compreender o que está olhando. Não é uma imagem evidente”. 

Lange e Demand continuam assim por mais algumas páginas. A mostra fica em cartaz em São Paulo até o fim de janeiro. Depois, segue para o Rio. Não sei se fizeram cartões-postais da exposição, mas é uma ideia. 


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