quarta-feira, 21 de agosto de 2013

dar a real

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Texto novo para o blog da Companhia das Letras:
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Na literatura (e na vida, e nas redes sociais, que cada vez mais se embaralham), há narradores cuja principal característica é DAR A REAL sobre o mundo. Os de Thomas Bernhard, por exemplo.

Como se fossem cromos autocolantes do desprezo e da maledicência, é possível colecionar as passagens, de um mau humor cáustico (e cômico), em que os narradores de Bernhard esmagam e pisoteiam a Áustria, a Suíça & tudo que se move por ali, onde o “ar é irrespirável” e “as pessoas insuportáveis”. Para eles, Salzburgo é uma “estúpida cidadezinha provinciana, cheia de idiotas, onde com o tempo tudo se reduz à estupidez, sem exceção”. De Viena a Linz, a viagem é uma verdadeira “jornada pelo mau gosto”. E em Chur, basta dormir uma única noite para que “um homem se arruíne para toda a vida”. Isso sem falar nas apreciações sobre o ambiente artístico desses lugares. Diante de narradores tão simpáticos, podemos fazer aquela perguntinha assaz estimada pela sensibilidade do nosso tempo: o que há de Thomas Bernhard nestes narradores? É isso que o autor pensa de fato?

Conhecendo os relatos “não-ficcionais” de Bernhard (como o magnífico Origem), a resposta dele seria algo como: “sim, no geral penso exatamente como o narrador de O náufrago, abs”. O que, no fundo, claro, não faz diferença. Porque sendo as mesmas de seu autor ou não, as opiniões e vozes de personagens e narradores de um romance estão contidas na visão de mundo do autor. Assim, a complexidade moral de um romance é diretamente proporcional à complexidade moral de seu autor, cuja visão de mundo está difusa, sempre, por toda a obra (e uma visão de mundo pode ser cheia de nuances — caso de Bernhard, cujo narrador-assertivo-que-dá-a-real faz parte, em seu exagero e intransigência, de um complexo maquinário narrativo — ou estreita, maniqueísta, baseada num episódio dos Ursinhos Carinhosos, que protegem a Terra do mal e do temido vilão Coração Gelado, que tenta a todo custo acabar com o amor no planeta — nada contra o desenho dos ursos, que entendo, admiro e respeito).

Em textos que jogam declaradamente com a ideia de autoficção, esse movimento de DAR A REAL ganha especificidades. Um exemplo interessante é o de Diário de um ano ruim, de J. M. Coetzee. De forma esquemática, e pelo efeito dramático da frase, dá para dizer que neste romance Coetzee se propõe a dar a real sobre o narrador que dá a real. Na forma de uma impressionante reflexão sobre as “opiniões fortes” do personagem-assertivo-que-dá-a-real, Coetzee põe em perspectiva todo discurso panfletário e “combativo”, marcado por um “tom de sabe-tudo”, de alguém que tem “todas as respostas” e diz “é assim que é”.

O crítico Adriano Schwartz faz uma análise precisa do referido romance neste ótimo texto sobre certa “tendência autobiográfica no romance contemporâneo”. Diário de um ano ruim, cuja primeira parte chama-se, justamente, “Opiniões Fortes”, é a história de J.C., um escritor velho e cansado que passa a duvidar do impacto, da autoridade e da relevância da ficção no mundo contemporâneo — “não tenho mais paciência para escrever um romance”, diz. A convite de um editor alemão, passa então a redigir opiniões sobre os mais diversos assuntos (“quanto mais controverso melhor”). É nesse contexto que conhece a belíssima Anya, uma jovem filipina de vinte e nove anos, a quem propõe um trabalho: ajudá-lo a passar para o papel esses textos, essas opiniões. Ele dita, ela datilografa. As “opiniões fortes” de J.C. versam sobre tudo: Guantánamo, design inteligente, o apartheid, direitos dos animais etc. Muitas delas são ideias defendidas ou debatidas pelo próprio Coetzee, de quem o personagem fictício toma emprestado parte das iniciais, bem como uma série de outros dados biográficos (ambos escreveram um romance chamado À espera dos bárbaros, ambos possuem um volume de ensaios sobre a censura, ambos são sul-africanos radicados na Austrália).

Há, portanto, um jogo duplo. Coetzee faz uso de elementos não-ficcionais para escrever um romance que problematiza justamente a descrença na ficção — é a autoficção debruçando-se sobre si mesma. Num primeiro momento, o que Coetzee parece dizer é: num contexto em que “verdade” e “autenticidade” carregam um valor em si mesmo, a enunciação de afirmações reais e definitivas toca o leitor com muito mais eficácia. Para que então submeter o leitor aos artifícios do romance?

Só que Coetzee, através da jovem Anya, vai colocar isso tudo em questão. Para ela, as “opiniões fortes” do velho escritor não passam de textos chatos que causam bocejos e tédio profundo. Além disso, aponta Schwartz, esse “dar a real” é um grito que busca silenciar todo o resto. O que se assemelha à retórica política — e “política é berrar para calar a boca dos outros e conseguir o que você quer”, diz Anya.

No início, J.C. não concorda, os dois discutem, ela chega a dizer que não vai mais datilografar as tais opiniões. Mas, aos poucos, o romance avança, e a jovem filipina vai conseguindo modificar o velho homem. Então, em determinado ponto, numa demonstração plena do alcance da sensibilidade de Coetzee, J.C. comenta: “o que começou a mudar desde que eu entrei na órbita de Anya não são tanto as minhas opiniões em si, mas minha opinião sobre as minhas opiniões”.

O ponto de partida de J.C. não está errado: para a nossa sensibilidade (criada à base de reality shows, imagens amadoras captadas por celular, redes sociais etc.), a autoficção parece mesmo levar vantagem em comparação ao romance. Nela, há um pacto com o leitor: a matéria-prima do relato são experiências “reais”, “vividas”. E, hoje, quando sabemos que estamos diante de uma narrativa “baseada em fatos reais”, nossa atenção parece ser capturada com mais facilidade. Mesmo que o texto de um romance e de uma autoficção sejam absolutamente os mesmos, a disposição do leitor será distinta em cada uma das experiências.

Todavia, para além deste proveito (maior autoridade do narrador), decidir embaralhar verdade e ficção, e apresentar uma narrativa como autoficcional, tem suas implicações. Ou, pelo menos, deveria ter; senão, de outra forma, bastaria escrever um romance tradicional.

No caso de Coetzee, um parâmetro ético de toda prosa que se pretende autoficção parece ser estabelecido: colocar em xeque as convicções de seu protagonista. A autoficção seria o lugar de pensar contra si mesmo. Não há espaço para autopiedade. Não há heroísmo. A autodilaceração não é feita com a faquinha do bolo Pullman. O que existe é tentar diagnosticar as próprias limitações, analisá-las mesmo que a contragosto; deixar que nossas certezas sejam ameaçadas.

Seja colocando em perspectiva as “opiniões fortes” de J.C. em Diário de um ano ruim, seja no dilacerante autoescrutínio que realiza o narrador frio e distante da “trilogia autobiográfica” Infância, Juventude e Verão, os personagens de Coetzee se expõem verdadeiramente. E há uma diferença cabal que deve ser notada aqui. Se alguém nos pergunta “qual o seu principal defeito?”, pode-se responder, de maneira hipócrita: “a sinceridade, sou muito sincero, sabe?”. No caso dos protagonistas da autoficção de Coetzee, a resposta nunca vai ser menos do que: sou um “mosca-morta”, um “tapado distante da realidade”, um homem “sem presença sexual nenhuma”. Além disso, há outro ponto a ser considerado: o da autoridade e complexidade de quem enuncia essas apreciações.

Em Verão, o escritor John Coetzee já está morto quando um biógrafo inglês decide escrever um livro sobre ele. Sem ter conhecido pessoalmente o biografado, o pesquisador consulta cadernos de anotações e decide falar com algumas fontes. Uma delas é Julia, vizinha de John Coetzee na Cidade do Cabo, com quem o escritor-personagem teve um caso. Coetzee, autor, constrói Julia de maneira complexa. O que significa dizer: alguém nem totalmente bom, nem totalmente ruim; nem esplêndido, nem convencional etc. Sentimos empatia por John, mas também sentimos por Julia. Dessa forma, se as opiniões de Julia sobre ele não são verdades absolutas (é um ponto de vista, afinal), estão longe de serem absurdas. Ao submeter John Coetzee a um exame desse tipo, o relato de Coetzee ganha força e se afasta de qualquer hipocrisia.

Em determinado momento da entrevista, por exemplo, Julia conta sobre a noite em que Coetzee chegou à sua casa com um pequeno toca-fitas e um K7, um quinteto para cordas de Schubert. “Não era o que se pudesse chamar de música sexy, nem eu estava muito no clima”, diz Julia, “mas ele queria fazer amor e, especificamente — perdoe se sou explícita —, queria que a gente coordenasse nossas atividades com a música, com o movimento lento. [...] Não sei se lembra do movimento lento, mas tem uma longa ária de violino com a viola pulsando por baixo, e dava para sentir John tentando manter o mesmo ritmo. A coisa toda me parecia forçada, ridícula. [...] ‘Esvazie a mente!’, ele sussurrou para mim. ‘Sinta através da música!’ Bom, não tem nada mais irritante do que dizerem o que você tem que sentir. Eu me afastei dele e esse pequeno experimento erótico desmoronou na hora. [...] Eu nunca contei isso para ninguém antes do senhor. Por que não? Porque achei que ia lançar uma luz muito ridícula sobre John. Quem, senão um pateta total, mandaria a mulher por quem deveria estar apaixonado tomar lições de sexo com um compositor morto? [...] Não dá para saber se é para rir ou chorar!”

Ao final do relato de Julia, o biógrafo-entrevistador comenta: “A senhora está sendo um pouco dura com ele, se me permite dizer”. Ao que Julia responde, fechando o capítulo: “Não, não estou. Só estou dizendo a verdade. Sem a verdade, por mais dura que seja, não pode haver cura.” Coetzee parece, assim, conferir à autoficção aquela que poderia ser sua norma de arte e ética: dar a real, sim, mas sobre si mesmo.
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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

nem totalmente bom, nem totalmente ruim; nem heroico, nem destituído de heroísmo; nem esplêndido, nem privado de momentos luminosos

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"É óbvio que Homero e a natureza não são uma coisa só, e que Tolstói e a natureza não são uma coisa só. De fato, aquilo que chamam de objetividade de Homero, ou de Tolstói, não é objetividade de maneira nenhuma. Muito ao contrário, trata-se da mais opulenta e pródiga subjetividade possível, pois cada objeto na Ilíada e em Anna Kariênina existe no ambiente daquilo que devemos denominar de amor do autor. Mas tal amor é tão generalizado, tão constante e tão equitativo que cria a ilusão da objetividade, pois tudo na narrativa, sem exceção, existe na narrativa, assim como tudo, sem exceção, na natureza existe no tempo, no espaço e na atmosfera. Para perceber o caráter da objetividade de Tolstói, basta compará-la à de Flaubert. Da forma como a palavra é empregada na crítica literária, Flaubert deve ser considerado tão objetivo quanto Tolstói. No entanto, está claro que a objetividade de Flaubert é carregada de irritabilidade, e a de Tolstói, de afeição.

Para Tolstói, todos e tudo possuem uma graça salvadora. A exemplo de Homero, ele dificilmente nos permite optar entre os antagonistas — assim como não nos atrevemos a dar toda a nossa solidariedade nem para Heitor nem para Aquiles, ou, em sua cena decisiva, nem para Aquiles nem para Príamo, também não podemos dizer, entre Anna e Aleksei Kariênin, ou entre Anna e Vrónski, quem está certo ou errado. Mais que qualquer outra coisa, e sem dúvida anterior a qualquer habilidade especificamente literária que possamos isolar, é essa faculdade moral, essa faculdade de afeição que explica a singular ilusão de realidade que Tolstói cria. Ele é capaz de mostrar seus personagens em sua inteireza e em sua contradição, em seus fracassos e em seus grandes momentos, em sua banalidade e em seu fascínio. [...]

Aquilo que chamamos de a objetividade de Tolstói é simplesmente a capacidade de seu amor não sofrer nenhum enfraquecimento ante a constatação e a conclusão que disso decorre, de que a vida em geral fica abaixo do ideal que ela forma de si mesma. Constitui um sutil triunfo da arte de Tolstói a circunstância de ela nos induzir a aderir com entusiasmo à sua representação da maneira como são as coisas. Afirmamos com tanta alegria nossa adesão ao que Tolstói nos mostra e com tão boa vontade chamamos isso de realidade porque temos algo a ganhar com o fato de isso ser realidade. Pois a esperança de toda pessoa digna, razoavelmente honesta, é ser julgada à luz da representação da natureza humana criada por Toltstói. Talvez o que Tolstói tenha feito, na verdade, seja instituir como realidade o julgamento que toda pessoa digna e razoavelmente honesta provavelmente faz de si mesma — alguém nem totalmente bom, nem totalmente ruim; nem heroico, nem destituído de heroísmo; nem esplêndido, nem privado de momentos luminosos; alguém que não pode ser entendido mediante nenhuma fórmula, mas que tem seu princípio de vida, e que de algum modo, e a despeito de ideias convencionais, consegue manter uma inesperada dignidade."

Lionel Trilling, The Opposite Self: Nine Essays in Criticism, 1955
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terça-feira, 13 de agosto de 2013

próximo sábado

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Lançamento do Campo em branco, em Curitiba, na Itiban Comic Shop

A partir das 17h.
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segunda-feira, 5 de agosto de 2013

carmen e seus precursores

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Sobre a Carmen, de Prosper Mérrimée, na Bravo! final.
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Carmen faz parte do seleto time de personagens da literatura que conhecemos antes de ler os livros. Não são muitos. O que sabemos dela está na ópera de Georges Bizet, levada à cena em 1875; em filmes como os de Otto Preminger (1954, apenas com atores negros) e Carlos Saura (1983, com dançarinos de flamenco), em musicais da Broadway, séries de tevê, HQs, comercial de lingerie, canecas, chaveiros, camisetas etc. Por isso, é possível ler a novela de Prosper Mérrimée (1803-1870), hoje, como se fosse uma espécie de fan fiction — “ficção criada por fãs”, em que uma nova história é criada a partir do enredo oficial — e, numa inversão cronológica, analisar as contribuições do “fã” Mérrimée para a trágica paixão entre a cigana e dom José.

Publicado em 1845, o livro é cheio de meandros e se assemelha a uma volta (bêbado) pelas ruelas de Sevilha, onde se passa parte da trama. Mérrimée nos conduz pela jornada da cigana de “beleza estranha e selvagem”, que requebra “como uma potra do haras de Córdoba”. Mas principalmente nos leva pela voz de dois narradores. Essa é uma de suas “inovações”. É através deles que enxergamos Carmen, e isso transforma toda a história.

“De maneira esquemática, podemos dizer que a ópera é sobre a paixão e o livro, sobre o ciúme”, observa Samuel Titan Jr., que assina a tradução e o posfácio desta nova edição brasileira, a ser lançada este mês — parte da Coleção Fábula, da editora 34. Se na ópera todos os olhares se voltam para Carmen, e ela é o centro; na novela, só acessamos a personagem a partir dos narradores. A todo momento, por exemplo, vemos dom José desconfiado, sem saber se Carmen realmente o está traindo. “Não por acaso, Machado de Assis foi buscar na obra um dos elementos centrais de caracterização de sua Capitu: os olhos oblíquos, de cigana”, lembra Titan, evocando a primeira aparição de Carmen na novela, quando são descritas sua pele (de cobre), sua boca (que deixa entrever “dentes mais brancos que amêndoas sem casca”) e seus olhos (“oblíquos e admiravelmente rasgados”).

A história começa e termina conduzida por um narrador empolgadamente pedante. No início, ele está na Andaluzia no outono de 1830, empreendendo uma diligente busca para situar com exatidão o local onde se desenrolou a batalha de Munda, um dos capítulos da conquista da península ibérica por César, “o lugar memorável em que César apostara tudo contra os campeões da república”.  Espera que sua dissertação sobre o tema “resolva enfim o problema geográfico que mantém em suspenso toda a Europa erudita”. Nessa solene errância, conhece dom José, um ex-militar de carreira promissora, que, apaixonado por Carmen, sofre uma série de quedas e reveses, até assassinar um homem e entregar-se a uma vida de “azares e rebelião” ao lado da cigana. “Uma moça bonita”, reflete dom José, imerso no pote da ruína, “faz o sujeito perder a cabeça, brigar, cair em desgraça, fugir para a montanha, e de contrabandista a ladrão é só um passo”.

A novela é dividida em quatro partes, e é apenas na terceira que o tal narrador erudito dá lugar a dom José. Na prisão e condenado à morte, dom José vai contar a ele (e a nós) a aventura que viveu ao lado de Carmen. Tudo o que a gente sabe sobre Carmen diz respeito a este capítulo, cheio de ação. A ópera de Bizet, por exemplo (que nas palavras de Alan Raitt, biógrafo britânico de Mérrimée, “não passa de uma versão emasculada e enfeitada da novela”).

À medida que dom José relata sua história, um episódio da segunda parte do livro volta com força: o breve encontro do narrador inicial com Carmen, no cais, às margens do rio Guadalquivir, em Córdoba. Ela surge de repente, como que saída das águas (e este é um tema que mereceria um texto à parte: as aparições de Carmen ao longo da história). É a única vez que este narrador fica diante dela. Imediatamente, ele sente o perigo, o poder de atração. E se afasta. “Ele não vive uma história com ela, ao contrário de Dom José que, sim, vai se deixar levar — e pagar o preço”, comenta Titan. “É dom José quem vai se aproximar da cigana, viver na pele e, como uma espécie de emissário do real, contar ao outro o que viu, porque esteve lá.” Não por acaso, o mito evocado na cena do rio é o de Acteão e Diana, em que o caçador Acteão surpreende Diana à hora do banho. A deusa o transforma em cervo, e Acteão é devorado por seus próprios cães — ele chega perto demais, vê mais do que podia ver. Toda a novela é sobre isso: um jogo de aproximações e afastamentos.

Assim que dom José termina de contar sua saga, o pedante estudioso reassume o comando da narrativa. A parte final da novela é surpreendente — e também pelo que não se diz. Estranho à primeira vista (há um corte na história), o fim parece expor uma espécie de solução encontrada pelo narrador para se relacionar com a figura fatal de Carmen. É como se, depois de tudo o que foi contado por dom José, o narrador pensasse: bem, vou me calar e me distanciar, e discursar friamente sobre os ciganos. E, assim, salvar a minha pele. Nisso, nessa moldura narrativa (os dois narradores, uma história dentro de outra), está o trunfo da novela de Mérrimée —que depois de Carmen passou vinte anos (praticamente o resto da vida) sem escrever ficção, dedicando-se ao cargo de inspetor geral dos monumentos históricos da França.
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quinta-feira, 1 de agosto de 2013

suas certezas não são de nada

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Sobre o Campo em branco: crítica do Mario Bresighello, no Guia de Livros da Folha de S.Paulo (1). E texto do Arthur Tertuliano, no Posfácio (2).
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(1)

Campo em branco trata daquilo que parece oculto, ausente ou que fica subentendido. Dois irmãos que há muito não se veem decidem refazer uma viagem da infância. A bordo de um velho Fiat 147, dirigem-se para um ponto qualquer do planeta onde o vento parece determinar o ritmo do mundo.

Quem conta a experiência é Lucio, o mais novo, que não se lembra de nada e, na tentativa de resgatar e entender o relacionamento com o irmão, decide seguir a memória dele. Mas de repente dá um branco e ele se perde em lembranças e em outras histórias que completam o sentido do que quer fazer.

Se fizermos uma analogia com a função da cor branca na linguagem das HQs, logo percebemos estar diante de uma obra-prima. A novela gráfica é um exemplo de estilo figurativo que tem nos jogos com o branco um de seus pontos de força. Nela, a cor é usada até mesmo como textura, um papel que, em geral, cabe ao preto.

Aqui, o projeto gráfico em preto, dois tons de azul e branco, é perfeito para a história. No lugar de prejudicar a leitura, o efeito é desconcertante.

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(2)

Besouro, libélula e outros insetos estampam a capa de Campo em branco. E tudo o que eu sabia sobre a hq se resumia a isso, praticamente – and that’s how I rule. (“Besouro” é uma palavra importante; reserve-a para o final desse texto.) Contudo, mesmo sem saber grandes coisas da história, eu tinha alguns parâmetros de expectativa: toda leitura é uma comparação com as anteriores; nunca resetamos o cérebro ou zeramos totalmente nossas concepções prévias ao iniciarmos um novo livro.

O álbum em questão é a quinta publicação de um “combo brasileiro” (roteirista + desenhista tupiniquins) pelo selo Quadrinhos na Cia – se não me engano, estava previsto para ser o segundo, não fossem os constantes adiamentos. Depois dos excelentes Cachalote e A máquina de Goldberg, percebi que o projeto da editora encontrou alguns percalços no caminho. Guadalupe, obra que faz bonito pelo lado do roteiro (Angélica Freitas criou uma história graciosa, tocante, feminista e engraçada – muitos adjetivos pra dizer que, enfim, é uma boa história), peca na qualidade do desenho, muito aquém da capacidade de Odyr Bernardi. Tenho a impressão de que, se dessem a ele a oportunidade de fazer algo colorido e mais elaborado, Guadalupe mataria a pau um livrinho como o do ET do Mutarelli, por exemplo. V.I.S.H.N.U., por sua vez, é uma bagunça só. As coisas mais legais deste são: o formato (é um quadradão pesado, que deve fazer bonito, fechado, numa mesa de centro); e uma memória involuntária (lembrei-me da criatividade por trás de toda a construção narrativa de Matrix e fiquei com vontade de rever The Animatrix – isso, sim, valia a pena). Uma pena, pois realmente gostei do perfil do casal Gregório Duvivier & Clarice Falcão escrito pelo roteirista – Ronaldo Bressane – para a Bravo!.

Enfim, esse foi um longo preâmbulo para dizer que uma das comparações inevitáveis seria com os outros livros da coleção. “Uma das”, não a única: já tinha lido algumas coisas, tanto do Emilio Fraia (O verão do Chibo o conto dele para a Granta dos melhores jovens escritores brasileiros são bem bons) quanto do DW Ribatski (o rapaz é um capista excepcional e fez um bom trabalho no álbum Vigor Mortis, mas me perdeu no La naturalesa). Mais e mais comparações a caminho.

Minha intenção não é a de criar suspense ou de deixá-lo curioso a respeito da minha opinião, caro leitor. Mais direto, impossível: primeiro, eu li e achei massa. Depois de ler uma boa resenha, reli o livro, repensei algumas coisas e gostei menos. Foi então que resolvi reler mais uma vez e… não é que tinha tido razão na primeira leitura?

A fim de manter o estilo “mais direto, impossível”, um resuminho básico do enredo, com todos os defeitos, elipses e incompletudes das sinopses. O narrador (Lúcio) encontra seu irmão (Mirko) após um longo tempo sem se verem. Este convence o outro a refazer uma viagem que fizeram com o tio durante a infância – Cabo Bianco é o destino final. Há uma diferença nas memórias: o que foi antológico para um, foi totalmente esquecido pelo outro – nada mais natural, em sendo irmãos. Cabo Bianco, portanto, também seria parte da viagem: o bendito destino final talvez fosse a “Lembrança de 1987”, subtítulo da obra.

It’s the same old story: eu poderia citar “Buscar por lembranças/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã.”, se não tivesse percebido que estava mais uma vez suecando os versos de Drummond. Seria uma apenas uma rima, não uma solução.

Lembranças. Não são poucos os flashbacks da narrativa – algumas cenas até dão abertura para serem interpretadas como flashforwards, mas, por alguma razão, decidi que na minha leitura todas elas seriam flashbacks mesmo. Enfim, são tantas as interrupções na trama descrita logo acima que chega a ser sedutora a ideia de definir a obra como fragmentária e experimental.

Engraçado que eu só tenha percebido isso na segunda leitura, a mesma em que repensei minhas impressões iniciais: provavelmente fiquei tão envolvido com a primeira leitura que não dei muita bola para os “cortes”, que estão lá e realmente demandam uma participação ainda mais ativa do leitor. O meu problema com o caráter “essencialmente fragmentário e experimental” é o seguinte: tenho compreendido isso (especialmente nas histórias em quadrinhos) mais e mais como uma forma de (1) dissimular a falta de imaginação para os rumos da história e de (2) esconder os furos do roteiro – e, portanto, menos como um exercício de liberdade do formato. Em outras palavras: tais cortes servem para fazer o leitor esquecer que a história tem uma boa premissa e só. Em outras palavras: se eu visse o livro daquela forma, minha tendência seria a de enquadrá-lo nessas conclusões pré-estabelecidas.

Na terceira leitura, no entanto, meu cérebro pôs o preenchimento automático de lacunas para funcionar novamente. Consegui, inclusive, considerar a narrativa bastante convencional: com flashbacks, sequências oníricas e discussões filosófico-científicas, mas convencional. O que, ressalto, não é um defeito – ao menos para mim. Não há nada muito diferente do que já nos acostumamos a ver em muitos filmes contemporâneos.

Aliás, o álbum parece pedir para ser “lido como cinema”. Os créditos que aparecem depois de uma cena breve, já na nona página, e se repetem na p. 95; os flashbacks; os closes; as transições de cena; as sequências oníricas. Ok, tais recursos não são exclusivos do cinema; porém, este certamente os utilizou com tanta frequência que nos acostumou a identificá-los. Assim como não fugimos do trem que vem em nossa direção, pois sabemos que ele é apenas a projeção de luz em uma tela branca, já não precisamos de nuvenzinhas e cores diferentes para identificar um flashback.

Eu nem ia tocar no assunto, mas o selo da RT Features na ficha catalográfica talvez sirva de indicativo para uma futura adaptação cinematográfica. É esperar para ver.

Mas Cabo Bianco seria “apenas uma história legalzinha e tal”, se não houvesse o “campo em branco” – ou melhor, se não houvesse todo o diálogo que culmina na citação do título do livro. Em um dos tantos flashbacks, Lúcio conversa com o tio Bernardo – aquele que “viu o apartamento pegar fogo”, aquele “que os levou para viajar quando crianças” – sobre pontos e trajetórias e distrações e concentração e determinismos e surpresas. E é esse o grande jenesequá de Campo em branco.

Ciência e natureza. Há um padrão científico na natureza, aparentemente caótica. Ao mesmo tempo, o caos permeia a ciência, apesar de esta desejar ter uma fórmula para tudo. Lúcio, um físico, um cara científico (ou pelo menos é o que parece); Mirko, um porra louca, uma força da natureza (ou pelo menos é o que parece).

A partir dessas digressões, comecei a pensar no trabalho de um roteirista e um desenhista criando, juntos, uma história em quadrinhos. Por alguma razão, comecei a associar a figura do Lúcio ao Emilio e a do Mirko ao DW. Digo “por alguma razão”, como se não soubesse como tudo começou. Sei muito bem que, por não haver fotografias dos autores no livro, passei a identificar a quarta capa (que também é a p. 57) como representação destes. Aliás, não seria novidade alguma se os autores fossem representados por meio de desenhos nas hqs dessa coleção: o mesmo expediente já fora utilizado em Cachalote e A máquina de Goldberg.

De La naturalesa a Campo em branco, creio que o salto de DW Ribatski foi significativo. Não falo especificamente do traço – acredito que este tenha melhorado, ainda que mantenha o estilo do quadrinista (ele, às vezes, aparenta ser bem desleixado e feito às pressas, mas, na página seguinte, vai lá e tira o fôlego do leitor com uma composição vibrante). Quando falo em salto, me refiro propriamente à narrativa. Se em La naturalesa meu maior questionamento era o “de que adianta ter liberdade criativa se você a usa para fazer isso?”, hoje acredito que tenha partido do quadrinista (não do roteirista) a pulsão para a atenção tão destacada que se dá à natureza em Campo em branco – uma visão mais interessante, madura e bem elaborada que a observada anteriormente, sem dúvidas.

As lembranças de infância, os insetos (que me lembraram de O verão do Chibo, coescrito por Vanessa Barbara) e uma piscina (também presente no conto da Granta n. 9) – e a ligação destes com o narrador – me fizeram associá-lo, prontamente, ao Emilio. Todo o questionamento científico que perpassa a narrativa 5 parece apontar para o momento em que o roteiro foi criado: “Eu adiciono isto, nesse campo em branco, e… tudo muda”. Talvez eu tenha levado muito a sério essa leitura metalinguística, mas o fato é que percebi, em quase todas as páginas, referências visuais a entrecruzamentos, bifurcações, pontos e mudanças de trajetória. Talvez isso tudo seja apenas o estilo do quadrinista. Mas, talvez, essa recorrência de temas visuais seja algo intencional – folhas nas pontas de galhos, parecidas com os pontos (átomos?) conectados com retas (ligações atômicas?), como os desenhados nos diagramas de um quadro negro.

E é nisso que prefiro acreditar. Nessa síntese de duas mentes (tese e antítese) em busca da obra de arte perdida. Nessa conjunção de forças, aparentemente voltadas em direções opostas, mas que resultam em algo maior do que a soma das duas. “Síntese” e “conjunção” são duas palavras muito boas para o que vemos nas páginas finais.

Comparações com obras anteriores dos autores: feitas. Falta só situar a obra no panorama da coleção “combo brasileiro” do selo Quadrinhos na Cia – então, me darei por satisfeito.

As mudanças da data de lançamento, a presença de uma dupla de homens barbados pensando uma hq em conjunto e o ar meio cinematográfico (possivelmente influenciado pelo envolvimento da RT Features) pareciam facilitar a comparação entre Campo em branco e Cachalote. Não é o que farei, no entanto. O álbum irmão de Campo em branco é outro: é A máquina de Goldberg. Confesso que cogitei compará-las antes mesmo de conferir o resultado do trabalho do Emilio e do DW pelas seguintes razões: (1) as duas hqs chegaram juntas à minha caixa de correspondências – o que não é nada surpreendente, pois fui eu o responsável por essa “coincidência” quando as encomendei no mesmo pedido; e (2) os dois roteiristas já haviam trabalhado em conjunto num romance citado algumas vezes no decorrer deste texto – O verão do Chibo, finalista do prêmio São Paulo de Literatura (ou, menos relevante, “um livraço”, segundo a minha pessoa). Pareceu-me uma boa ideia analisar como os dois voltaram a ser bem-sucedidos ao trabalharem em duplas diferentes, mas, se fosse só isso, o reconhecimento de padrões não passaria da mera curiosidade de caixa de cereal: “Você sabia que Vanessa Barbara e Emilio Fraia nasceram no mesmo ano e cidade (São Paulo, 1982) e dedicaram seu primeiro romance ao Mandaqui?”.

Juro que tentei me distanciar desse plano, mas as coincidências começaram a pipocar – ao menos para a minha mente semi-obsessiva. As duas hqs têm insetos mortos logo em suas primeiras páginas. Nas duas, a natureza tem um papel importante (seria ela um dos protagonistas?), o que é provocado por uma viagem que distancia os narradores dos grandes centros urbanos em que vivem. Em ambas, foi verificada tanto a presença de quelônios e felinos quanto a proeminência do tema da infância no desenvolvimento do enredo (e, isso sim, era de se esperar dos criadores do Cabelo, do Bruno, do Chibo, do besouro chamado Bob, da rainha da Bulgária, da canção “Eu Sou um Bolinho de Arroz” e do narrador fofo encarregado de contar essa história toda). Não podemos nos esquecer de que alguns dos momentos mais inspirados – visualmente falando – ocorrem durante sequências oníricas, em que a gravidade parece simplesmente deixar de funcionar. Quando percebi que certas cenas submersas das duas mexeram comigo, decidi que me arriscaria numa ligeira comparação – e o mundo que se adapte.

Num primeiro olhar, A máquina de Goldberg soa como um elogio ao controle absoluto, ao passo que Campo em branco enaltece a aleatoriedade da vida: nada mais controlador que uma máquina que tem como objetivo “dificultar atividades consideradas simples demais” e que não pode ser auxiliada em nenhuma de suas fases; nada mais aleatório do que saber que qualquer coisinha muda tudo ou que “a concentração exagerada é um tipo de distração”. No entanto, a contradição dessas mesmíssimas ideias também se faz presente nas histórias – seja quando Getúlio admite as diversas “fugas” do roteiro da máquina de Goldberg projetada pelo velhote para o clímax da hq de Barbara, seja quando percebemos que as possibilidades da aleatoriedade se manifestar foram drasticamente reduzidas quando Emilio Fraia preencheu alguns (muitos) campos em branco. Ambas, enfim, proclamam suas concepções de mundo ficcional: elas gritam “O mundo é uma máquina de Goldberg gigante!” e “O mundo é um imenso campo em branco!”.

Mas por que restringir tais concepções ao campo da ficção? As duas hqs estão mesmo gritando “O mundo é uma máquina de Goldberg gigante!” e “O mundo é um imenso campo em branco!”. Em outras palavras: “Preste atenção nos seus atos! Todos eles têm consequências! Você não terá consciência de metade delas!” e “Você não conhece toda a sua história! Preste atenção nos outros! Suas certezas não são de nada!”. Bem por aí.

O leitor que não sufocar esses gritos – ao pensar, por exemplo, “pfff, são apenas histórias em quadrinhos” – terá um baita trabalho pela frente. E verá o mundo com novos olhos.
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