sábado, 21 de junho de 2008

está voando!

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"A. viu no jornal que Superman estava passando num cinema próximo e decidiu levar o garoto, apesar de não acreditar que ele conseguisse ficar sentado o tempo todo. Na primeira metade do filme o menino ficou calmo, mergulhado num balde de pipoca, cochichando suas perguntas, como A. o havia instruído, e aceitando sem grandes problemas todo o assunto de explosão de planetas, foguetes e viagens espaciais. Mas então aconteceu uma coisa. O Superman começou a voar, e de repente o menino perdeu a compostura. Abriu a boca, ficou de pé na cadeira, derrubou a pipoca, apontou para a tela e começou a gritar: 'Olhe! Olhe! Ele está voando!'. Durante o resto do filme ele ficou em transe, o rosto tenso de absorver o que via, maravilhado, novamente tentando absorver, maravilhado. Perto do final, aquilo se tornou um pouco demais para ele. 'Muito barulho', disse. Seu pai perguntou se ele queria ir embora, e ele disse sim. A. pegou-o no colo e carregou-o para fora do cinema — para uma violenta tempestade de granizo. Quando corriam para o carro, o menino disse (sacolejando nos braços de A.): 'Estamos tendo uma aventura e tanto esta noite, não?'”
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Paul Auster, A invenção da solidão, 1982
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sexta-feira, 20 de junho de 2008

o nosso macguffin

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A Hortaliça de Verão está no ar. Esta é uma edição dois em um, tal o livro. Entre outras apoteóticas revelações, o referido almanaque traz o pai de todos os segredos, o MacGuffin. Está num dos bate-papos entre o Hitchcock e o Truffaut, que viraram livro em 1967.
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Hitch: A famosa cláusula secreta era o nosso MacGuffin. Precisamos falar do MacGuffin!

Trufô: O MacGuffin é um pretexto, é isso?

Hitch: É um expediente, um truque, um recurso para uma situação problemática, é o que se chama um gimmick. Então, a história do MacGuffin é a seguinte. Você sabe que Kipling costumava escrever sobre a Índia e os britânicos que lutavam contra os nativos na fronteira do Afeganistão. Todas as histórias de espionagem escritas nesse ambiente eram invariavelmente sobre o roubo dos planos da fortaleza. Isso era o MacGuffin. Portanto, MacGuffin é o nome que se dá a esse tipo de ação: roubar... os papéis; roubar... os documentos; roubar... um segredo. Na prática, isso não tem a menor importância, e os lógicos estão errados em procurar a verdade no MacGuffin. No meu trabalho, sempre pensei que os "papéis" ou os "documentos" ou os "segredos" de construção da fortaleza devem ser extremamente importantes para os personagens do filme mas sem nenhuma importância para mim, o narrador.

Agora, de onde vem o termo MacGuffin? Ele evoca um nome escocês e pode-se imaginar uma conversa entre dois homens num trem. Um diz ao outro: "O que é esse embrulho que você colocou no bagageiro?". O outro: "Ah, isso! É um MacGuffin". Então, o primeiro: "O que é um MacGuffin?". O outro: "Pois bem! É um aparelho para pegar leões nas montanhas Adirondak". O primeiro: "Mas não há leões nas Adirondak". Então o outro conclui: "Nesse caso, não é um MacGuffin". Essa anedota mostra o vazio do MacGuffin...

(...)

Um fenômeno curioso acontece invariavelmente quando trabalho pela primeira vez com um roteirista; ele tende a concentrar toda a sua atenção no MacGuffin e tenho de lhe explicar que isso não tem a menor importância. Tomemos o exemplo de Os 39 degraus: o que os espiões procuram? O homem que não tem um dedo?... E a mulher no início, o que ela procura?... Será que ela chegou tão perto do grande segredo que foi preciso apunhalá-la pelas costas no apartamento de outra pessoa?

Trufô: É que deve haver uma espécie de lei dramática quando o personagem está realmente em perigo; durante o seu percurso, a sobrevivência desse protagonista passa a ser tão preocupante que o MacGuffin é completamente esquecido. Mas, seja como for, deve haver um perigo, pois em certos filmes, quando se chega, no final, à cena da explicação, portanto quando se revela o MacGuffin, os espectadores debocham, vaiam ou reclamam. Mas creio que uma de suas astúcias é revelar o MacGuffin, não bem no finzinho, mas após dois terços ou três quartos de filme, o que lhe permite evitar um final explicativo.

Hitch: Meu melhor MacGuffin -- e, por melhor, entendo o mais vazio, o mais inexistente, o mais irrisório -- é o de Intriga internacional. É um filme de espionagem e a única pergunta feita pelo roteiro é: "O que procuram esses espiões?". Ora, durante a cena no campo de aviação em Chicago, o homem da CIA explica tudo a Cary Grant, que lhe pergunta, referindo-se ao personagem de James Mason: "O que é que ele faz?". O outro responde: "Digamos que é um sujeito que faz export-import". "Mas o que é que ele vende?" "Ah!... só segredos do governo!" Você vê que, aí, reduzimos o MacGuffin à sua mais pura expressão: nada.
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quinta-feira, 12 de junho de 2008

richard kinsella

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Versão-cinema do personagem do post abaixo. N'os Incompreendidos, o Trufô filmou o Richard Kinsella. Digressão!
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segunda-feira, 9 de junho de 2008

digressão!

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"Claro! Gosto que a pessoa seja objetiva e tudo. Mas não gosto que seja objetiva demais. Não sei. Acho que não gosto quando a pessoa é objetiva o tempo todo. Os garotos que conseguiam as melhores notas em Expressão Oral eram objetivos o tempo todo, isso eram. Mas tinha um garoto, o Richard Kinsella. Ele não era muito objetivo e a turma vivia gritando 'Digressão!' quando ele falava. Era horrível. Primeiro porque ele era um cara muito nervoso. Isso mesmo, nervosíssimo -- e, quando chegava a hora de falar, os lábios dele começavam a tremer, eu gostava dos discursos dele mais do que os de qualquer outro sujeito. Ele também quase foi reprovado. Passou raspando, porque a turma vivia gritando 'Digressão!' para ele. Por exemplo, ele fez um discurso sobre uma fazenda que o pai dele tinha comprado em Vermont. O tempo inteirinho que ele falou a turma ficou gritando "Digressão!" e o professor, um tal de Vinson, deu-lhe uma nota ruim pra diabo porque ele não contou que espécie de animais e legumes e outros troços tinha lá na fazenda e tudo. Sabe o quê que ele fazia? Começava contando essas coisas todas e aí, de repente, começava a falar de uma carta que a mãe dele tinha recebido do tio; e que o tio teve poliomielite e tudo aos quarenta e dois anos de idade, e se recusava a receber visitas no hospital porque não queria que ninguém o visse com a perna na tipóia. Não tinha muita ligação com a fazenda, concordo, mas era simpático. É um troço simpático quando alguém fala de um tio. Principalmente quando começa a falar da fazenda do pai e, de repente, fica mais interessado no tio."

(Salinger, n'O Apanhador)
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sexta-feira, 6 de junho de 2008

um pai, uma mãe, um penico

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Um livro não começa a ser escrito quando começa (de fato) a ser escrito. Ele começa antes e depois, e por muitas vezes — caolho, com sono, dor de barriga, soluço, apendicite, dor de dente. O Chibo, que começou quando eu conheci a Vanessa e começou de novo quando a gente perdeu um concurso literário (porque a Vanessa criou um "Manual de Técnicas de Refrigeração", e eu inventei uma história narrada por um isqueiro), começou muitas outras vezes, e quando eu li o W, ou a memória da infância, do barba bonita:

"Não sei onde se romperam os fios que me ligam a minha infância. Como todo mundo, ou quase, tive um pai e uma mãe, um penico, uma cama de grades, um chocalho, e mais tarde uma bicicleta que, parece, eu jamais montava sem lançar gritos de terror à simples idéia de que fossem querer levantar ou mesmo retirar as duas rodinhas adjacentes que asseguravam minha estabilidade."

"O que caracteriza essa época é antes de tudo sua ausência de referenciais: as lembranças são bocados de vida arrancados ao vazio. Nada as ancora, nada as fixa. Quase nada as confirma. Nenhuma cronologia a não ser a que arbitrariamente reconstituí com o passar do tempo. Tempo passava. Havia estações. Esquiava-se ou colhia-se feno. Não havia começo nem fim. Não havia mais passado, e durante muito tempo também não houve mais futuro; simplesmente aquilo durava. Estava-se ali. A coisa se passava num lugar que era longe, mas ninguém poderia ter dito exatamente longe de que lugar, talvez simplesmente longe de Villard-de-Lans. De tempos em tempos mudávamos de lugar, íamos para uma outra hospedagem ou uma outra família. As coisas e os lugares não tinham nomes ou tinham vários; as pessoas não tinham rosto. Uma vez era uma tia, a vez seguinte era uma outra tia. Ou então uma avó. Um dia encontrávamos uma prima e quase havíamos esquecido de que tínhamos uma prima. Depois não encontrávamos mais ninguém; não sabíamos se aquilo era normal ou não, se ia continuar o tempo todo assim ou se era apenas provisório. Será que havia épocas de tias e épocas sem tias? Nada perguntávamos, não sabíamos muito bem o que caberia perguntar, devíamos sentir um pouco de medo da resposta que teríamos obtido caso pensássemos em perguntar alguma coisa. Não colocávamos nenhuma questão. Esperávamos que o acaso fizesse voltar a tia ou, se não aquela tia, uma outra, afinal, pouco importava saber qual das tias seria e inclusive que houvesse tias ou que não as houvesse. Na verdade, sempre estávamos um pouco surpresos de que houvesse tias, e primas, e uma avó. Na vida, passávamos muito bem sem elas, não víamos muito bem para que aquilo servia, nem por que eram pessoas mais importantes que as outras; não gostávamos muito daquele jeito que elas tinham, as tias, de aparecer e desaparecer a toda hora. Só sabemos que aquilo durou muito tempo e que depois, um dia, se interrompeu."
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