domingo, 27 de junho de 2021

ceticismo metaficcional

Ensaio de Lucas Bandeira de Melo Carvalho sobre o "Sebastopol", na Z Cultural, revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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“O fundo daquela história […] era verdade; mas, ao transmitir os detalhes, o junker inventava e se vangloriava.” 

Liev Tolstói, “Sebastopol em agosto de 1855” 

Entre 17 de outubro de 1854 e 11 de setembro de 1855, a cidade de Sebastopol, na península da Crimeia, foi palco de um dos episódios mais sangrentos da Guerra da Crimeia (1853-56), entre a Rússia czarista e a aliança liderada pela França de Napoleão III. Enfrentavam-se duas forças imperialistas – as antigas nações da Europa ocidental e a Rússia que se ocidentalizava. Liev Tolstói participou das batalhas e essa experiência serviu de base para três contos longos, publicados em 1855 como Crônicas de Sebastopol e que seriam retomados em cenas de Guerra e paz (1869). A experiência também serviu para uma transformação em Tolstói. Diante dos horrores da guerra, o escritor, cuja literatura discute e ao mesmo tempo é veículo do esforço russo de modernização e ocidentalização, começa a questionar o sentido da defesa da pátria grande e a validade da guerra. Escreve ele no início do segundo conto, “Sebastopol em maio”: 

Muitas vezes me veio um pensamento estranho: e se um dos lados em guerra propusesse ao outro enviar apenas um soldado de ambos os Exércitos? […] se de fato as complexas questões políticas entre representantes racionais de criaturas racionais devem ser resolvidas por meio de uma luta, que lutem esses dois soldados – um para tomar a cidade, o outro para defendê-la.

Esse raciocínio apenas parece paradoxal, mas é justo. […] Das duas, uma: ou a guerra é uma loucura, ou, se as pessoas praticam tal loucura, não são absolutamente criaturas racionais, como nos habituamos a pensar, sabe-se lá por quê (Tolstói, 2015, p. 182).

Para nós, que conhecemos a transformação por que passou Euclides da Cunha quando, quarenta anos depois da experiência de Tolstói, foi cobrir para o jornal O Estado de S. Paulo a Guerra de Canudos, essa mudança soa familiar. Presenciar a inutilidade da guerra faz com que Tolstói privilegie relatos sobre os indivíduos que estavam na guerra – a insegurança de um oficial, o encontro de dois irmãos que acabam indo juntos para a batalha, os feridos nos hospitais de campanha – e não sobre as grandes decisões dos comandantes e as vitórias heroicas dos generais. Leva-o também a experimentar formas literárias diversas e modernas, misturando gêneros – ficção, reportagem e digressão –, pontos de vista narrativos, registros de linguagem.

É preciso ter como referência essa obra de Tolstói, de 1855, quando lemos o primeiro livro de contos de Emilio Fraia. Sebastopol (2018), que reúne três histórias de Fraia, faz uma clara referência aos contos do jovem Tolstói logo no título, assim como nos nomes de cada conto, que repetem os de Tolstói. E em pelo menos dois pontos o escritor brasileiro dialoga com o clássico russo. Primeiro, Fraia parece citar, nos textos que abrem e fecham o volume, cenas e acontecimentos do livro de Tolstói. Segundo, Fraia repete a pergunta de Tolstói sobre a diferença entre a experiência e o relato da experiência; afinal, o soldado, de volta do terror da batalha, inventa e se vangloria, mesmo que seu relato se baseie numa experiência real.

Este é o primeiro livro que Fraia publica sozinho. O autor, nascido em 1982, escreveu junto com Vanessa Barbara o romance O verão do Chibo (2008), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. É também coautor, em parceria com o ilustrador DW Ribatski, da HQ Campo em branco (2013). Sebastopol, que recebeu elogios de autores como Sérgio Sant’Anna e Marçal Aquino, é uma tentativa bem-sucedida de produzir um livro de contos com unidade temática e formal. O andamento e o tom das três narrativas são similares, assim como a questão que as permeia: o estatuto da ficção e o desencontro entre experiência e narrativa. Embora haja nos três relatos uma carga de não dito e questões abertas que podem ou não ser elucidadas ao longo das histórias, Fraia tem uma linguagem segura e precisa. Além disso, utiliza recursos formais interessantes. No segundo conto, por exemplo, alterna entre os pontos de vista do narrador e dos personagens com destreza, sem recorrer a travessão ou aspas, e entrelaça planos narrativos diferentes (o passado dos dois personagens principais e o presente, em que há o encontro dos dois). O recurso dominante, no entanto, é a metaficção, ou seja, a distribuição de comentários sobre o estatuto da ficção e sobre os limites da narrativa. Como numa piscadela, o livro indica que o leitor precisa procurar uma chave metaficcional para interpretar os contos, que a narrativa ali é um enigma que deve ser decifrado para que se tenha acesso ao verdadeiro sentido da obra.

Um dos elementos metaficcionais mais interessantes utilizados por Fraia é a descrição de obras de arte (livros, quadros, filmes) ficcionais. No primeiro conto de Sebastopol, “Dezembro”, uma ex-escaladora começa a reavaliar a narrativa que construiu sobre sua vida ao assistir a um filme de arte, feito por uma mulher chamada Pikman, que conta uma história muito parecida com a sua.

No vídeo, de tempos em tempos uma mulher surgia, uma mulher de cabelos ondulados, nariz grande e lábios finos. Seria você, senhorita Pikman? Ela nunca encarava de fato a câmera mas narrava a história, que, à medida que se desenrolava, se parecia cada vez mais com a minha, e ao mesmo tempo era completamente diferente também (Fraia, 2018, p. 38).

Esse instrumento metaficcional, que Fraia utiliza com competência, tem uma longa tradição na literatura moderna. Um dos modelos mais fortes, claro, é Jorge Luis Borges. As histórias de Borges estão coalhadas de livros, bibliotecas e mapas inventados e impossíveis. “Exame da obra de Herbert Quain”, por exemplo, é na verdade um artigo sobre um escritor ficcional que teria inspirado o autor em “As ruínas circulares”, outro conto do mesmo livro (Borges, 2007, p. 62-8).

Na literatura brasileira atual, além do gosto borgiano pelo exercício de imaginação, há um diálogo com certas tendências contemporâneas das artes dramáticas e plásticas. Cito alguns exemplos, dos muitos possíveis. Paisagem com dromedário (2010), de Carola Saavedra, é uma tentativa de diálogo da literatura com a arte conceitual. É composto da transcrição de 22 gravações que, descobrimos ao fim, fariam parte de uma instalação. A vista particular (2016), de Ricardo Lísias, é um romance sobre um artista que faz performances e instalações. Uma das obras é uma instalação que reproduz uma favela dentro do museu, inclusive a violência policial a que a população das comunidades desassistidas está sujeita. A obra ficcional descrita por Lísias guarda muitas semelhanças com obras de Lola Arias, artista argentina, especificamente com Chácara Paraíso, de 2007, que encena numa favela cenográfica o treinamento de policiais militares paulistas. Um terceiro exemplo: no conto “Aquele vento na praça”, incluído na revista Granta dedicada aos “melhores jovens escritores brasileiros”, Laura Erber trabalha uma série de referências e conceitos do campo das artes plásticas para imaginar a vida e a obra de artistas (Granta, 2012, p. 25-36).

Há outros exemplos, um pouco mais recuados, nas obras de Sérgio Sant’Anna e Bernardo Carvalho. Em Onze (1995), de Carvalho, parte da narrativa trata de um artista holandês cujo trabalho parece remeter às obras de Cildo Meireles (Zero Cruzeiro, 1974-78) ou de Jeff Koons, com seus jogos com o mercado de arte. Kill, o artista de Onze, falsifica dinheiro para abalar o sistema financeiro. “Ao contrário da arte conceitual ou outras artes, que precisam ser reconhecidas como arte para causar algum impacto – pensem em Duchamp, por exemplo –, ao contrário, o trabalho de Kill perdia-se na realidade, era como um vírus injetado na realidade” (Carvalho, 1995, p. 84), escreve um crítico de arte fictício em Onze. Nos quase cinquenta anos de carreira de Sant’Anna, há inúmeros exemplos, como os recentes “O homem-mulher II” (Sant’Anna, 2014, p. 139-83), que descreve a obra de um dramaturgo fictício. No mesmo livro, encontramos os contos “Madonna” (p. 55-6), em que um ladrão explica sua relação com uma obra de arte roubada, a Madonna (1892-95) de Edvard Munch; e “Amor a Buda” (p. 128-35), que descreve a escultura Tentação (Tangseng e Yaojing) (2005), de Li Zhanyang (desta vez, duas obras reais, mas “ficcionalizadas” ao se incorporarem ao relato literário).

Essas obras parecem nos dizer que a ficção é capaz daquilo de que nenhum outro discurso é capaz. Só a ficção pode aproximar o pensável do impensável. Podemos, por meio da ficção, pensar objetos que não existem. Com isso, ampliamos o que pode ser pensado. Quando, ficcionalmente, Lísias extrapola a obra de Arias, transformando a encenação da artista argentina numa violência real dentro do mundo ficcional, ele consegue imaginar aquilo que, no mundo concreto, parece impossível; o universo possível feito de palavras tem limites mais amplos do que o universo concreto das artes que trabalham com o corpo e com objetos.

Essa literatura conceitual, porém, corre um risco que o teatro pós-dramático e as artes plásticas conceituais também enfrentam. Não à toa, uma das análises que mais dão conta desse tipo de literatura vem não da crítica literária, mas da crítica da arte. O risco dessa ficção é cair na armadilha que Jacques Rancière identifica na estética relacional do crítico e curador Nicolas Bourriaud: ao antecipar o efeito que se espera causar no receptor, essas obras tendem a “conceitualizar essa identidade antecipada entre a apresentação de um dispositivo sensível de formas, a manifestação de seu sentido e a realidade encarnada desse sentido” (Rancière, 2012, p. 71). Traduzindo os conceitos de Rancière, podemos dizer que essa arte (ou, aqui, essa literatura), embora se proponha a questionar estatutos pétreos da arte ou da ficção “modernas” (a autoria, a originalidade, a separação entre ficção e realidade, a função contemplativa da arte pura), acaba por construir uma identidade entre a forma sensível (a matéria própria da ficção: as palavras, as frases, a narrativa), o sentido correto de sua interpretação e a realidade sobre a qual essa obra fala. São obras que incluem em si sua interpretação e sua própria crítica; obras que, diante do medo de que o conceito esteja cifrado demais, repetem-no, exibem-no claramente. No caso da literatura metaficcional, o risco é que, embora descrevam obras fictícias (ou ficcionalizadas) enigmáticas, os contos e os romances podem ser transparentes. São obras de consenso, não de dissenso.

Qual seria, portanto, a mensagem consensual dos contos de Sebastopol? Volto ao primeiro. Nele, a narradora é uma escaladora que sofre um acidente no Everest e tem as pernas amputadas – como os soldados que vemos ser amputados no primeiro conto de Tolstói sobre a Guerra da Crimeia. Ela se torna palestrante motivacional, mas, certo dia, encontra um filme de arte que parece contar sua história. Essa história é e não é a dela, o que a leva a questionar o estatuto da narrativa. Afinal, o que é mais verdadeiro: a história que ela conta nas palestras e nos livros de motivação, ou a história contada por outra pessoa; a história de superação que ela construiu para si mesma, ou a história, mesmo que imprecisa, narrada do ponto de vista de outra pessoa? O leitor de Tolstói é capaz de identificar aqui a dúvida do narrador das Crônicas de Sebastopol. Os combatentes, quando retornam do campo de batalha, não sabem realmente o que aconteceu e criam uma narrativa que os proteja, uma vez que “durante todo o tempo o combate transcorria numa espécie de sombra e de inconsciência, a tal ponto que tudo o que se passava lhe[s] parecia ter ocorrido em outra parte, em outro tempo, com outras pessoas” (Tolstói, 2015, p. 224).

No segundo conto de Fraia, uma reformulação de um texto que o autor havia publicado na revista Granta em 2012, um casal chega a uma pousada desativada no meio de uma região rural. Depois de uma briga, a mulher vai embora, e o homem, o brasileiro-peruano Adán, passa os dias com o proprietário da pousada, bebendo e contando sua vida. Certo dia, Adán some, e o proprietário, Nilo, junto com seu único funcionário, esvazia a piscina para ver se ele morreu afogado. No final da história, Nilo visita um vizinho que quer comprar seu sítio e lá encontra um porco. Seria o mesmo porco que Adán viu um dia perdido no meio da vegetação? O porco está doente e vai ter que ser sacrificado. Nesse momento, Nilo ouve o ronco de um motor. Seria Adán indo embora no Fusca que havia deixado na pousada desativada? O conto termina aberto. Afinal, concluímos, não é possível unificar vida nenhuma numa narrativa linear, e o conto demonstra essa impossibilidade. Lembra-nos o narrador que, quando contamos nossas vidas, narramos histórias que correm paralelas, sem nunca se encontrarem (Fraia, 2018, p. 72). As histórias servem, portanto, para chegarmos a essa conclusão: nenhuma vida cabe numa narrativa uniforme e linear.

No terceiro, mais uma vez uma narradora em primeira pessoa. Nadia, uma estudante universitária com nome russo, começa a trabalhar para um dramaturgo, Klaus, que fez algum sucesso no circuito alternativo no passado, mas agora está decadente. A pedido de Klaus, ela pesquisa sobre um pintor russo, Trúnov, que pintava quadros na região de Sebastopol durante o cerco da cidade. Trúnov faz, na pintura, o que de certa forma Tolstói fez nos contos sobre a Guerra da Crimeira: em vez de pintar o encontro sangrento dos batalhões inimigos, retrata os personagens individuais, na sua solidão e em seu drama pessoal. Lembramos o autor de Guerra e paz, que pede que o leitor veja não o palco amplo da guerra, mas o simples soldado: “Olhe bem para esse soldadinho do destacamento das carroças de carga que conduz uma troica de cavalos baios para beber água, cantarolando baixinho e tranquilo para si mesmo, e logo fica claro que ele não vai se perder na barafunda dessa multidão, a qual, aliás, para ele nem existe” (Tolstói, 2015, p. 163).

No conto de Fraia, Klaus está escrevendo uma peça sobre o pintor, ou melhor, sobre o fracasso de Trúnov em pintar um quadro sobre os horrores da guerra. Na peça, um soldado pede que Trúnov o retrate em batalha. O pintor tenta, mas não consegue. Decide retratá-lo sozinho, como no dia em que o conheceu. Antes de terminar o quadro, recebe a notícia da morte do soldado. Então abandona o trabalho, que ficará esquecido por décadas e só será redescoberto nos anos 1960.

A encenação de Klaus também será um fracasso, como foi um fracasso a tentativa de Trúnov de retratar tanto os horrores épicos da guerra quanto o drama da solidão do soldado. (Algumas das imagens mais famosas da guerra são de Roger Fenton, pioneiro do fotojornalismo, que, no entanto, devido às limitações técnicas da época, retratou principalmente soldados posando, como em uma pintura.) Mais uma vez, é o estatuto da ficção, tanto da pintura quanto do teatro, que é questionado. O que a ficção é capaz de dizer?, pergunta-nos o conto. Nós mentimos ao contar nossa história, como a escaladora; falhamos ao tentar unificar nossa vida em um relato, como Nilo e Adán; só podemos falar de nosso fracasso, como Klaus e Trúnov: só podemos falar do fracasso da ficção como representação de algo externo.

Além do comentário metaficcional sobre o estatuto da narrativa, Fraia espalha ao longo do livro comentários sobre o andamento dos contos. Embora os narradores variem – o conto do meio é narrado na terceira pessoa, ainda que Adán às vezes assuma a narração, enquanto os outros dois têm narradoras em primeira pessoa –, o ritmo lento, a estrutura em blocos curtos e o tom simples mas elusivo unificam os três relatos. Essa proposta de transformar o relato curto em uma experiência de duração, na qual o leitor experimente a temporalidade da narrativa, é anunciada em pontos diferentes do livro. (Entendo aqui duração como o tempo como é experimentado pelo sujeito, ao contrário do tempo cronológico, exterior.) No primeiro conto, a narradora enuncia para seu companheiro de escalada, o italiano Gino: “eu sei que você prefere as longas durações” (Fraia, 2018, p. 43). No segundo conto, Fraia escreve: “As horas seguintes transcorrem como uma partida de pontos longos, longuíssimos” (p. 53), a repetição de “longos”, com a ênfase do superlativo, reforçando a afirmação do ritmo. No terceiro, por fim, a narradora comenta a conversa que teve com Klaus a respeito do acontecimento – a chegada do soldado que pede a Trúnov que o pinte – que deveria dar movimento ao enredo da peça que estão escrevendo: “o tal episódio de muito movimento […] estava longe de ser um episódio movimentado de verdade, porque o que Klaus gostava nas coisas era tudo, menos movimento. Ele gostava do que chamava de tempos longos, de chuva, de molhar bolachas no leite, e, claro, ele gostava de gente maluca e perdida” (Fraia, 2018, p. 103).

Há, por fim, mais um elemento importante nos contos de Fraia. Como já dissemos, as histórias que abrem e fecham o volume são narradas em primeira pessoa, por duas personagens femininas. O autor consegue evitar, na maior parte do tempo, colocar marcas de um discurso feminino e mimetizar os lugares-comuns do que se espera de uma literatura “feminina” ou “intimista”. Essas narradoras, no entanto, compartilham com o narrador e os personagens do segundo conto, o único em terceira pessoa, o mesmo tom reflexivo. Narradores e personagens meditam sobre o estatuto da narrativa e a natureza da experiência. No entanto, essas reflexões ocasionalmente soam deslocadas, como se um grande narrador, aquele que unifica o tom e o ritmo lento dos relatos, estivesse falando pela boca dos personagens e das narradoras.

Logo no primeiro conto, por exemplo, a narradora, ponderando sobre a experiência que lhe valeu a amputação, se pergunta: “Quem é que pode pensar que num dia se acorda bem, alimentando o sonho de escalar uma montanha, e no fim da jornada um pedaço do seu corpo simplesmente não existe mais?” (Fraia, 2018, p. 35). O leitor possivelmente pensou que isso poderia acontecer, já que todo ano morrem dezenas de escaladores no Everest. Peguemos outro exemplo, no segundo conto. Enquanto se embriaga com o proprietário da pousada desativada, Adán elabora suas reflexões sobre seu passado e sobre o conflito entre narração e experiência:

Naquele tempo, eu não tinha nada. Às vezes olho para essa época e penso: ela faz parte de uma outra vida, que casualmente é a minha também, mas que poderia não ser, porque nós temos mais de uma vida, e elas não necessariamente se parecem umas com as outras, às vezes não existe nem mesmo uma continuidade entre elas, mas depois de um tempo aprendemos como falar das vidas passadas, e elas se tornam vidas inofensivas à medida que são contadas e à medida que pensamos entender o que significam. Isso nos acalma. Mas é claro que essa é só mais uma ilusão entre tantas. O que eu acho é que a gente conta e repete as histórias porque tem medo delas. No fundo é isso. Um pedido de ajuda. Queremos que alguém nos ajude, nos proteja delas (Fraia, 2018, p. 58).

Essa digressão, estranha na boca de um velho bêbado, parece responder às interrogações da protagonista do primeiro conto, quando ela põe em dúvida a narrativa que construiu a fim de poder tocar a vida adiante. É como se a mesma questão, o mesmo ceticismo em relação à narrativa da experiência, habitasse o discurso de todos os personagens, porque, afinal, esse ceticismo é o que o livro quer dizer ao leitor. É essa a mensagem que deve ficar da leitura.

Ao operar nesses dois níveis – um nível que individualiza os personagens e as vozes e outro que os unifica no mesmo ritmo narrativo e no mesmo sentido final –, Sebastopol ilustra as possibilidades e os riscos de uma metaficção cética que usa histórias, referências (históricas e intertextuais), vozes e personagens diversos para discutir os limites da ficção.

Lucas Bandeira de Melo Carvalho é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e, atualmente, desenvolve projeto de pós-doutorado no programa do PACC-Letras da UFRJ. Agradece à Faperj pelo apoio a esta pesquisa.
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