segunda-feira, 29 de junho de 2020

é difícil falar de si

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Sobre Natalia Ginzburg e o lançamento de Todos os nossos ontens pela TAG Livros, entrevista para a Fernanda Grabauska.


No prefácio à edição da Companhia das Letras de Léxico familiar, Alejandro Zambra enumera uma série de razões para ler Natalia Ginzburg. Uma delas é que seus relatos são tão inspiradores que, ao terminar o livro, o leitor tem vontade de escrever o seu próprio relato como forma de agradecimento. E você, por que acha que se deve ler Natalia Ginzburg?

Em livros como Todos os nossos ontens e Léxico familiar, Natalia Ginzburg narra pequenas histórias da sua família. E somos surpreendidos, ao fundo, com os acontecimentos sangrentos do seu tempo. A retórica de Ginzburg, no entanto, nunca é enfática, documental, de denúncia. Mas ela consegue de um modo singular e emocionante que a atmosfera íntima seja, de repente, atravessada pela guerra, pela imprevisibilidade, pelo terror. Isso me faz pensar no que estamos vivendo hoje, com o vírus — é mais ou menos como uma guerra, muitos dizem, embora, claro, seja outra coisa — e ler Natalia Ginzburg nestes dias de preocupação, medo e cansaço tem sido uma experiência única. Nos seus romances, o plano mais doméstico — brigas, alegrias, decepções — convive com uma realidade cruel, que revira a vida de todos. Como neste trecho de Léxico familiar: “E não havia mais ninguém que pudesse fingir que nada estava acontecendo, fechar os olhos e tapar os ouvidos, enfiar a cabeça embaixo do travesseiro, não havia.”

Quais foram as principais mudanças da edição de 1986 para a que sai pela TAG? Por que a mudança de título de Todas as nossas lembranças para Todos os nossos ontens?

A Maria Betânia Amoroso voltou à sua tradução dos anos 80, fez uma revisão diligente, encontrou novas soluções de ritmo, sintaxe, vocabulário. A Silvia Massimini, preparadora de texto, e o Fábio Bonillo, tradutor também, que faz parte do departamente de texto da Companhia das Letras, acompanharam o trabalho, fizeram ótimas sugestões. Acredito que tudo tenha ficado mais próximo das intenções da autora. Quanto ao título do romance, o original é Tutti i nostri ieri. A tradução de “ieri” é “ontem”. Achamos importante resgatar esta palavra – e há algo que nunca deveríamos esquecer, como leitores, escritores ou editores: para além do enredo e dos temas, dos personagens e do tom, há sempre as palavras. Embora possa soar um pouco estranho à primeira vista, por conta do plural da palavra “ontem”, é um título mais fiel ao original, mais concreto. A palavra “lembranças” soa como uma abstração, um tanto sentimental, e Ginzburg é uma autora que caminha no sentido oposto, de desdramatizar. Há também uma epígrafe no livro, retirada de Macbeth, que diz: “And all our yesterdays have lighted fools/ The way to dusty death”. Por fim, é preciso notar o aspecto visual e sonoro: a repetição das letras “t”, “i” e “r” do título em italiano encontra uma equivalência bonita nos “t”, “o”, “n” e “s” do nome em português.

O que você pensa dos paralelos normalmente traçados entre Elena Ferrante e Natalia Ginzburg?

Elena Ferrante sem dúvida leu muito bem Natalia Ginzburg. E uma geração de leitores de Ferrante está entrando em contato nos últimos tempos com livros como Léxico familiar, As pequenas virtudes e Todos os nossos ontens, o que é espetacular. A chamada Tetralogia Napolitana, de Ferrante, e os principais textos de Ginzburg têm a atmosfera do pós-guerra italiano, são narrados por mulheres. Mas há muitas diferenças também. O aspecto romanesco dos livros de Elena Ferrante, por exemplo, nós não encontramos na obra de Ginzburg. Poderíamos dizer, num papo de bar, que Ferrante está mais para Balzac, enquanto Ginzburg é Flaubert – de quem ela era grande admiradora e traduziu, aliás, Madame Bovary. Ginzburg trabalha com a elipse, há espaço entre as frases. Ela é mais clara, elegante. Mais moderna. Há na sua prosa um realismo cotidiano nunca óbvio, uma atenção única para o detalhe. E há, além disso, um jogo entre realidade e ficção muito interessante. “Neste livro, lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada”, adverte na famosa nota introdutória a Léxico familiar. Mas logo adiante diz: “Embora extraído da realidade, acho que [este livro] deva ser lido como se fosse um romance”. Não é ficção e, no entanto, quer ser lido como ficção, na contramão de obras que buscam a condescendência do leitor ao ancorar suas histórias em “fatos reais”.

Por fim, o que você indicaria para o associado da TAG que deseja conhecer mais da obra de Natalia Ginzburg?

Além dos livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras (até aqui, Léxico familiar, As pequenas virtudes e A família Manzoni), eu recomendaria uma entrevista que Ginzburg deu à Radio 3 italiana pouco antes de morrer, em 1991, que foi transcrita no livro È difficile parlare di sé – há uma edição em inglês também, It’s hard to talk about yourself. Recentemente, por conta da redescoberta da sua obra nos Estados Unidos, uma série de críticas e resenhas foram publicadas em veículos como New York Times, New York Review of Books, New Yorker, vale a pena buscar na internet. A Vilma Arêas publicou um texto notável sobre Caro Michele, “Ofício de escrever”, talvez a melhor análise brasileira a respeito da autora italiana. E há três autores, de quem Natalia Ginzburg era fã, que podem iluminar muito o tipo de prosa feito por ela: Flannery O’Connor, Tchekhov e Hemingway. Ela dizia amar os contos de Hemingway, foi sua editora na Einaudi, aliás. Parece ter aprendido com ele muito sobre clareza e simplicidade – sobretudo como, no lugar do mundo interior das ideias e sentimentos, dar forma ao mundo exterior dos lugares e objetos.
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quinta-feira, 4 de junho de 2020

a um velho poeta no peru

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"Porque nos conhecemos no entardecer
Debaixo da sombra do relógio da estação
de trens
Enquanto minha sombra estava visitando Lima
E o seu fantasma estava morrendo em Lima
uma cara velha precisando ser barbeada
E minha jovem barba que brotava
magnífica como cabelo morto
nas areias de Chancay
Porque pensei equivocadamente
que você estava melancólico
Cumprimentando seus pés de 60 anos
que cheiravam à morte
das aranhas na calçada
E você cumprimentou meus olhos
com sua voz de anis
Equivocadamente pensando que eu era genial demais
para um jovem
(meu rock and roll é o movimento de um
anjo sobrevoando uma cidade moderna)
(sua obscura confusão é o movimento
de um serafim que perdeu
as asas)
Dei um beijo na sua bochecha gorda (e amanhã de novo
debaixo do estupendo relógio da estação Desamparados)
Antes de ir ao encontro da minha morte num acidente aéreo
na América do Norte (há muito tempo)
E você seguir na direção do seu ataque cardíaco
numa rua indiferente da América do Sul
(Nós dois cercados de
comunistas gritando com flores
enfiadas no rabo)
— você muito antes do que eu —
ou uma longa noite sozinho num quarto
do velho hotel do mundo
observando uma porta negra
...cercado de pedaços de papel."

"A um velho poeta no Peru", Allen Ginsberg, 1960, tradução minha. Ginsberg visitou Lima há exatos 60 anos, em maio de 1960, e escreveu este poema em homenagem ao escritor peruano Martin Adán, autor de La casa de cartón. Ginsberg se hospedou num quarto de hotel em frente à estação de trens, a Estação Desamparados, e conheceu Adán na porta do Bar Cordano, que abriu em 1905 e existe até hoje.
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