quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

em si todos os outros, passados e futuros

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O crítico Kelvin Falcão Klein sobre Sebastopol:

Sebastopol: a palavra evoca as estepes russas, o frio inclemente, a fuligem, os portos nos quais é normal escutar nove idiomas em um mesmo dia, o desamparo e a solidão do artista, entre Anton Tchékhov e Isaac Bábel. É mais um exemplo dessa peculiar capacidade da linguagem de tornar presente a materialidade do espaço e, ao mesmo tempo, torná-la supérflua: Sebastopol elimina seu referente no momento em que se torna Sebastopol – tudo no mundo existe para chegar a um livro, dizia Mallarmé.

A primeira das três histórias de Sebastopol, de Emilio Fraia, é sobre o fascínio exercido por um monstro, espécie de feitiço que se espalha no tempo e no espaço, abarcando gerações e, como diz o texto, deixando dezenas de mortos por temporada. O monstro se chama Everest e a vítima, que conta sua vida, Lena. A narradora divide o protagonismo do conto (intitulado “Dezembro”) com Gino, artista visual, cinegrafista e publicitário, espécie de Oliviero Toscani redivivo. São dois os fios narrativos que vão entrelaçados na história, a busca de Lena pelo cume do Everest – e sua resolução trágica e, por isso, inevitável –, e a busca de Gino pela “imagem”, pelo “registro”. O primeiro fio é o tema da busca maníaca, é a história de Moby Dick, a busca das Índias, a errância em torno do Castelo. O segundo fio é o tema do sonho que inverte a realidade e se confunde com ela, como a Comédia de Dante ou o contato da borboleta com o sábio Chuang-Tsê, de que fala Italo Calvino em uma de suas propostas para o próximo milênio.

O segundo conto, “Maio”, ao contar a história de Adán, um peruano-brasileiro que desaparece, se mostra como um comentário sub-reptício à obra de Roberto Bolaño. Em “Maio” encontramos um desdobramento da célebre frase “A América Latina foi o manicômio da Europa assim como os Estados Unidos foi sua fábrica” (“Los mitos de Cthulhu”, El gaucho insufrible) e uma deriva em direção à ideia da América Latina como “alucinação”, presente em Estrela distante, por exemplo. O aparecimentode sacrifícios humanos dos incas e da relação entre o porco e o porquinho-da-índia intensifica o caráter alucinatório de “Maio”, até a frase final, na qual tudo é abandonado, entre o enigma e a resolução. A aproximação arbitrária entre um sacerdote inca e um taxista nas ruas de Lima na década de 1980 faz pensar na repetição da história, no eterno retorno, algo que “Maio” leva à superfície quando enfileira a recorrência dos destinos: um pai que desaparece gera um filho que desaparece e assim por diante.

O último conto, “Agosto”, condensa as obsessões de Sebastopol, dando ao seu encerramento um ar de incontornável necessidade. Se os temas da duplicação inquietante, da porosidade das fronteiras entre vivos e mortos e da impotência da vontade já apareciam antes, em “Agosto” ganham em amplitude. Isso porque o conto é sobre o teatro – sobre a criação e apresentação de uma peça de teatro sobre Sebastopol, sobre um pintor e a Guerra da Crimeia –, e o teatro é a metáfora perfeita para a concepção da vida como artifício e performance (o Jardim do Éden, Santo Agostinho, Shakespeare, Calderón de la Barca).

Sebastopol, o livro, é já por si só um retorno, um espelhamento do eterno retorno, da ideia de que todos os autores são um e que um autor certamente reúne em si todos os outros, passados e futuros. Faz retornar o livro de Tolstói, Contos de Sebastopol, três relatos escritos durante a Guerra da Crimeia (1854-1855), repetindo também o uso dos meses nos títulos dos contos. Nota-se aí a própria repetição da natureza, das estações, dos meses, o esgotamento seguido da reinvenção, mostrando que uma das tarefas subterrâneas da literatura, como dizia Montaigne, é ensinar a morrer.
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sábado, 5 de janeiro de 2019

luzes evasivas

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O escritor Cadão Volpato sobre Sebastopol no Valor Econômico:

A rigor este é o primeiro livro 100% escrito por Emilio Fraia, um paulistano de 36 anos que antes havia publicado um romance a quatro mãos com Vanessa Barbara, O Verão do Chibo (2008), e a graphic novel Campo em Branco (2013), com o quadrinista DW Ribatski.

Em 2012, a revista britânica "Granta", em seu número sobre os melhores jovens escritores brasileiros, havia selecionado um conto do escritor. E foi tudo, até este Sebastopol, breve coleção de três histórias que levam títulos de alguns meses do ano. Pela ordem: "Dezembro", "Maio" e "Agosto".

Tais títulos são apenas guias discretos e passam quase batidos caso não se preste muita atenção neles. O que vale são as narrativas. Nelas, há uma contenção fora do comum, uma simplicidade que bane os adereços, embora a literatura esteja presente em toda parte. Talvez, mais do que a literatura, a importância da transcendência em nossas vidas.

Os personagens de Sebastopol são misteriosos, nunca definitivos, aparecem e desaparecem cheios de dúvidas. Suas questões, no entanto, nunca são respondidas. Como em geral acontece com os seres humanos, a vida não tem respostas claras: ela se move por veredas obscuras, e o mistério de viver só é iluminado de vez quando, a começar pelo fato de que hoje podemos estar aqui, mas daqui a pouco, quem sabe? Nos contos de Sebastopol, em que duas vozes femininas abrem e fecham o livro, enquanto uma terceira, de aparência mais neutra, tateia em busca de soluções existenciais que desaparecem no ar, o irremediável mistério de viver é o motor de tudo.

E não adianta ir do Everest para a Crimeia ou o Peru em busca de respostas, é o que o livro parece dizer em sua grande contenção narrativa.

A jovem escaladora que narra o primeiro conto é vítima de um acidente terrível. Ao ver sua história contada no vídeo de uma artista que também é misteriosa, ela resolve por conta própria narrar a sua versão. Não que isso ilumine as coisas de verdade. O travo de uma não solução fica na cabeça do leitor, do jeito que os escritores mais interessantes costumam fazer, já que a vida real não é agarrável como pode parecer.

No segundo conto, estamos às voltas com uma pousada decadente e seu dono fracassado. Um hóspede a contragosto desaparece, e tudo se complica. Quer dizer, na verdade parece inevitável que tudo se complique, e essa segunda história, não menos evasiva que as outras, recorre a um certo humor discreto, ao pintar o tipo peruano que está a fim de mudar de vida nem que seja na base da simples evaporação. Ele briga com a mulher que o acompanha, compra um fusca velho e uma casa modesta na cidadezinha próxima e, como se não bastasse, some do mapa. Temos um estranho porco descomunal para não esclarecer os fatos.

Chegamos por fim ao terceiro conto, o mais próximo talvez daquilo que o título sugere. Um velho dramaturgo meio conformado com o circuito alternativo em que vive pretende montar uma peça sobre um pintor russo que viveu durante o cerco de Sebastopol (1854-1855), o principal combate da Guerra da Crimeia, que mobilizou algumas potências ocidentais contra a Rússia czarista no século XIX.

O tal pintor está no olho do furacão, mas prefere tratar o conflito em estúdio, talvez para ter um controle total sobre o desastre - como se isso fosse possível. Quando um jovem soldado lhe pede para pintá-lo no campo de batalha, ele o retrata numa cena montada em um pátio de oficina. Tudo grandioso, mas falso.

Esse distanciamento diante dos mistérios que envolvem os personagens é um fator constante no livro. Só não dá para dizer que ele os aprisiona porque o ritmo da narrativa não se deixa levar por nenhum aparato. O que Emilio Fraia escreve é de grande naturalidade e correção. O gosto que fica no fim é o de um mistério ainda maior, e também o de uma tristeza anexada naturalmente ao fracasso de tentar entender o que nos cerca.

É com a maturidade de um escritor mais experiente do que a sua obra escassa pode apontar que Fraia abre um caminho para si na literatura jovem que foi coroada pela "Granta" e que vem chegando à tona, de verdade, nos últimos anos. Como os colegas daquelas páginas da revista,  o autor de Sebastopol começa a construir um caminho próprio, em que as sutilezas da imaginação não querem necessariamente explicar o mundo, mas contê-lo em um ambiente exposto à incidência de luzes evasivas.
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