segunda-feira, 29 de outubro de 2018

velhos esqueletos

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Texto na revista Época da semana











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Na parte da cidade aonde não podíamos ir, descobriram o esqueleto do governador Geraldo Alckmin.

Isso foi o que ouvimos falar, o que se espalhou. Nenhum de nós pisava na zona proibida. Éramos muitos, e todos os dias, se corrêssemos feito almas penadas pela avenida dos Índios Mortos, chegávamos na hora da distribuição de comida e água.

Depois da guerra que se seguiu ao Dia da Revolução, o chamado Dia da Revolução, fomos divididos. O satélite de gerenciamento de batalhas cruza o céu. A guerra se arrasta há anos. Há um sentimento de que está emperrada, esgotada. Alguns acreditam que a guerra acabou, só decidiram nos manter ligados a ela através dos informes que não param de chegar. Outros, os Homens do Esgoto, falam baixo, pelos cantos, que a guerra na verdade nunca existiu, a não ser para nós, que ficamos presos aqui.

Na parte proibida, os que encontraram o esqueleto disseram que parecia ter sido mastigado. Clandestinamente, contrabandearam um osso, um osso do tornozelo do governador Geraldo Alckmin. Passamos de mão em mão. Era de um branco tão branco, uma cor que não existia; tínhamos certeza de que se tornaria escuro em minutos, porque os nossos dedos tremiam, eram sujos e mansos, como o rio Real, no interior do Piauí, forte Estado da Nação Soberana – repetir todos os dias, com a mão em riste na altura do peito.

O que nos contaram, a informação que nos foi levada nas sombras, é que havia um grupo que foi dizimado. Dele, fazia parte o governador Geraldo Alckmin. Pessoas que outrora tomavam banhos longuíssimos nas banheiras de louça chinesa de suas casas antigas do bairro alto. Homens que seguiam as regras. Sorrateiros, não havia nada fora das regras. Mas, nós ouvimos falar, as regras haviam sido também inventadas por eles. Quando tudo veio à tona, a raiva cresceu. Foi canalizada pela Nova Ordem, que prometeu louvar Deus e a Nação acima de todas as coisas, reestabelecer a ordem e, principalmente, atirar para matar.

É por isso que estamos aqui agora, de um lado para o outro, pela avenida dos Índios Mortos, atrás de água e comida. Ainda não entendemos muito bem. O governador Geraldo Alckmin – dizem os que viram seu esqueleto –, ele não esteve do nosso lado. Nem quando mais precisamos. Ficou em silêncio. Ele poderia nos salvar? Enxergaria o rio da história o governador Geraldo Alckmin? Não sabemos. No fim, acabou como um montículo de ossos à beira do caminho. Ele e seu grupo. Acabaremos todos, é verdade. Mas poderia ter sido diferente? Os Homens do Esgoto, contempladores do fogo e das estrelas, repetem em surdina: acabaremos todos.

Espirais de tempestades, oceanos brilhantes, caldeiras vulcânicas, fótons, mésons. Olhamos as nuvens se formando, partículas carregadas. Examinamos nosso kit de mapas. As emoções mudaram. Nossa visão está mudando neste exato momento, e projetamos nosso fracasso e desespero. Será que projetamos nosso desespero de agora na madrugada infinita?

Esta noite, dormiremos abraçados ao esqueleto do governador Geraldo Alckmin. Nos sonhos, receberemos sua alma. Ela é doce e vem trazer a notícia de que na América Latina mais um general maquina um golpe. Quando acordarmos, um de nós tomará nas mãos uma pedra e com ela quebrará o osso do tornozelo do governador Geraldo Alckmin. O osso será espatifado. Ficará apenas o pó branco grudado na terra suja. Estávamos em busca de comida, vamos dizer. Dentro do osso, pode haver alguma coisa, afinal. Água, talvez. Mas não haverá nada.

Viramos as chaves. Fazemos a contagem regressiva. No alto-falante, uma voz diz: Agora vocês estão em modo de disparo. Ficamos esperando. Nenhuma outra ordem é dada. Acabamos cansados. Sob a pele da treva, nada cresce, dizem as vozes sorrateiras, todas elas, esta noite, penduradas no esqueleto do governador Geraldo Alckmin.
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