quarta-feira, 24 de outubro de 2018

histórias dentro de histórias

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Embora apresentem enredos totalmente distintos, os três contos que constituem Sebastopol, de Emilio Fraia, estabelecem um sentido de unidade através da maneira como são estruturados. Em seu primeiro livro solo (Fraia já publicou o romance O verão do Chibo, escrito com Vanessa Barbara, e a HQ Campo em branco, ilustrada por DW Ribatski), o autor paulistano articula sua escrita a partir de níveis e desníveis, alternando linhas narrativas e temporais, de modo que a forma breve adquira o aspecto e a densidade do romance.

É uma técnica que demanda domínio e criatividade, e Fraia se sai muito bem, por trabalhar em duas frentes: a manutenção permanente da tensão e a mecânica do mistério. Seus textos guardam segredos que, diante de um andamento compassado, de frases precisas e bem ordenadas, surgem com alto poder de surpresa, em função de estarem em camadas profundas, feito histórias que se encontram dentro de histórias.

O primeiro conto, “Dezembro”, é narrado por Lena, uma alpinista cujo projeto era ser a brasileira mais jovem a chegar ao topo dos montes mais altos do planeta, até se acidentar na subida do Everest. Anos depois, ela se depara com um vídeo exibido numa exposição que parece contar sua história, e é arremessada de volta ao passado. Um período que envolve não apenas seus dias de escalada, mas toda uma construção afetiva e identitária que parecia apagada.

A tessitura se conforma no entrelaçamento de fios de memórias, que vão conduzir a personagem a repassar momentos que não tem certeza se viveu ou se foram sacados involuntariamente do filme, no trânsito por um terreno movediço que pode resultar em (auto)descobertas dolorosas ou conceder uma ilusão reconfortante.

Fraia lança mão de uma ambiguidade que ativa possibilidades discursivas, movimentos de fala nos quais seus narradores avançam por caminhos que, supostamente, parecem sem saída, mas que são acessos secretos para desvendar suas relações interpessoais e com o próprio mundo. Não é raro também servirem para introduzir e acompanhar outros agentes da trama, saindo do que era considerado o eixo central para, adiante, retomar esse mesmo ponto e redirecioná-lo.

É o caso de “Maio”, o segundo conto, ambientado numa decadente pousada rural, na qual Nilo, o dono, e um empregado esvaziam uma piscina à procura de um cadáver. À medida que a narrativa recua, sabe-se que um casal se hospedou ali faz pouco tempo. Que a mulher foi embora e o homem ficou, até sumir.

O enigma é posto, a princípio, como um elemento de conjunção entre presente e passado, para, aos poucos, tomar as rédeas do texto e transformar a história inicial, que deveria se desenhar nos desdobramentos do caso, na contemplação desse homem desaparecido, suas escolhas, uma biografia quase acidental.

O autor traz esse mesmo mecanismo para o último conto, “Agosto”, no qual uma aprendiz e um fracassado diretor de teatro se unem para escrever uma peça passada durante o cerco à cidade russa de Sebastopol, nos anos 1800, tendo como protagonista o pintor Bogdan Trúnov. Três linhas narrativas se cruzam: a história em curso, a biografia de Trúnov e os acontecimentos da peça. Embora seja o conto mais fechado em si, é aquele que ilustra o conceito do livro de se engendrar por meio de uma multiplicidade de segmentos que se confluem quando uma experiência decisiva muda a visão de mundo de um personagem.

Dos argumentos usados para depreciar o conto, há aquele de que o gênero não tem a mesma força do romance. Sebastopol desmonta esse equívoco, ao dar forma a narrativas que conseguem oferecer um intenso grau de imersão e alcançar a propriedade magnética inerentes às grandes obras romanescas.
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