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Escrevi esse texto na Folha de hoje, sobre o Péter Esterházy.
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Quando Péter Esterházy, que morreu aos 66 anos na quinta-feira (dia 14), veio ao Brasil, em 2011, ele disse estar tentando escrever uma história simples e que na sua escrivaninha havia um bilhete: “história simples, cem páginas”. O escritor húngaro, renovador da linguagem do romance, um dos mais brilhantes autores de sua geração, sabia que o que costumava escrever 1) não era simples; 2) era mais do que uma história; 3) e geralmente não tinha cem páginas – podia inclusive chegar às quase oitocentas de Harmonia Caelestis (2000), sua obra-prima.
“Todo escritor de prosa deseja contar uma história do início ao fim. Como se estivesse contando ao próprio filho. Quando uma pessoa escreve livros há muito tempo, sempre acaba tentando escrever o que ainda não conseguiu. Mas só conseguimos escrever o que conseguimos escrever. Não importam os esforços. Os meus livros são assim: eu quero contar uma história e não consigo, pelo menos não do jeito tradicional. A crítica diz que esse é o meu estilo, o que me faz pensar que o estilo de um escritor tem mais a ver com o que ele não sabe do que com o que ele sabe”, disse, com seu tom sempre leve, sem estridência, de discreta ironia.
Editei os dois livros de Péter Esterházy publicados no Brasil, Uma mulher (2010) e Os verbos auxiliares do coração (2011), ambos pela Cosac Naify, traduzidos pelo destemido Paulo Schiller. E quase sempre editar significa longas conversas e trocas de e-mail.
Foi assim que soube que o irmão mais novo de Péter era jogador de futebol, defendeu a seleção húngara na Copa de 1986 e jogou contra o Brasil num amistoso em março do mesmo ano em Budapeste, numa partida em que a Hungria venceu por 3 a 0. Foi assim que soube da admiração de Esterházy por Jorge Luis Borges (“ele trata da incerteza da realidade, existe alguma realidade além das palavras? É como se ele tivesse vindo da lua”). E foi assim que soube (algo menos nobre) que Péter e eu comemorávamos aniversário no mesmo dia, 14 de abril.
Péter nasceu em 1950 e era herdeiro de uma linhagem conhecida da aristocracia húngara (para se ter uma ideia Haydn foi o músico da família no tempo do príncipe Nikolaus). Seu avô foi primeiro-ministro do império por alguns meses em 1917. Em 1948, durante o regime comunista, sua família perdeu todos os bens e privilégios. Em Harmonia Caelestis ele narra os vários séculos de história da dinastia Esterházy a partir da perspectiva de um personagem que chama de “meu pai”.
Depois de escrita a obra, Péter foi arremessado num pesadelo: descobriu que seu pai havia trabalhado como informante da polícia secreta entre 1957 e 1980. Em 2002, publicou Edição revista, sobre suas reflexões a partir da notícia das atividades escusas do pai. “Não faço distinção entre ficção e não-ficção. Costuma-se dizer que o escritor deve manter uma distância entre ele e o seu objeto. Eu anulo essa distância, o que é o mesmo que infinito. Se não existe uma distância, então essa distância pode ser de qualquer tamanho”, dizia Esterházy, que era também matemático.
Em 1985, escreveu sobre a morte da mãe em um de seus livros mais delicados, Os verbos auxiliares do coração. Sobre a obra (e para terminar este texto-lembrança), Esterházy falou: “É incômodo quando alguém fala da morte. Mas silenciar também é ruim. Escrever não é uma solução. Não é verdade que escrever ajude. Mesmo se o escritor estiver triste depois da morte de alguém, os seus sentimentos não importam. Só tem importância se o escritor conseguir colocar uma palavra ao lado da outra e criar a sensação de que está triste. Ou fazer com que o leitor pense na pessoa que morreu, ou que se lembre de determinada pessoa, caso ela tenha morrido também”.
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Escrevi esse texto na Folha de hoje, sobre o Péter Esterházy.
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Quando Péter Esterházy, que morreu aos 66 anos na quinta-feira (dia 14), veio ao Brasil, em 2011, ele disse estar tentando escrever uma história simples e que na sua escrivaninha havia um bilhete: “história simples, cem páginas”. O escritor húngaro, renovador da linguagem do romance, um dos mais brilhantes autores de sua geração, sabia que o que costumava escrever 1) não era simples; 2) era mais do que uma história; 3) e geralmente não tinha cem páginas – podia inclusive chegar às quase oitocentas de Harmonia Caelestis (2000), sua obra-prima.
“Todo escritor de prosa deseja contar uma história do início ao fim. Como se estivesse contando ao próprio filho. Quando uma pessoa escreve livros há muito tempo, sempre acaba tentando escrever o que ainda não conseguiu. Mas só conseguimos escrever o que conseguimos escrever. Não importam os esforços. Os meus livros são assim: eu quero contar uma história e não consigo, pelo menos não do jeito tradicional. A crítica diz que esse é o meu estilo, o que me faz pensar que o estilo de um escritor tem mais a ver com o que ele não sabe do que com o que ele sabe”, disse, com seu tom sempre leve, sem estridência, de discreta ironia.
Editei os dois livros de Péter Esterházy publicados no Brasil, Uma mulher (2010) e Os verbos auxiliares do coração (2011), ambos pela Cosac Naify, traduzidos pelo destemido Paulo Schiller. E quase sempre editar significa longas conversas e trocas de e-mail.
Foi assim que soube que o irmão mais novo de Péter era jogador de futebol, defendeu a seleção húngara na Copa de 1986 e jogou contra o Brasil num amistoso em março do mesmo ano em Budapeste, numa partida em que a Hungria venceu por 3 a 0. Foi assim que soube da admiração de Esterházy por Jorge Luis Borges (“ele trata da incerteza da realidade, existe alguma realidade além das palavras? É como se ele tivesse vindo da lua”). E foi assim que soube (algo menos nobre) que Péter e eu comemorávamos aniversário no mesmo dia, 14 de abril.
Péter nasceu em 1950 e era herdeiro de uma linhagem conhecida da aristocracia húngara (para se ter uma ideia Haydn foi o músico da família no tempo do príncipe Nikolaus). Seu avô foi primeiro-ministro do império por alguns meses em 1917. Em 1948, durante o regime comunista, sua família perdeu todos os bens e privilégios. Em Harmonia Caelestis ele narra os vários séculos de história da dinastia Esterházy a partir da perspectiva de um personagem que chama de “meu pai”.
Depois de escrita a obra, Péter foi arremessado num pesadelo: descobriu que seu pai havia trabalhado como informante da polícia secreta entre 1957 e 1980. Em 2002, publicou Edição revista, sobre suas reflexões a partir da notícia das atividades escusas do pai. “Não faço distinção entre ficção e não-ficção. Costuma-se dizer que o escritor deve manter uma distância entre ele e o seu objeto. Eu anulo essa distância, o que é o mesmo que infinito. Se não existe uma distância, então essa distância pode ser de qualquer tamanho”, dizia Esterházy, que era também matemático.
Em 1985, escreveu sobre a morte da mãe em um de seus livros mais delicados, Os verbos auxiliares do coração. Sobre a obra (e para terminar este texto-lembrança), Esterházy falou: “É incômodo quando alguém fala da morte. Mas silenciar também é ruim. Escrever não é uma solução. Não é verdade que escrever ajude. Mesmo se o escritor estiver triste depois da morte de alguém, os seus sentimentos não importam. Só tem importância se o escritor conseguir colocar uma palavra ao lado da outra e criar a sensação de que está triste. Ou fazer com que o leitor pense na pessoa que morreu, ou que se lembre de determinada pessoa, caso ela tenha morrido também”.
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