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Um texto para a
Folha (
sobre palavras) e três para a
Trip (ref. Pablo Escobar, Hilda Hilst e Vilanova Artigas).
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Se o narrador ou o universo de uma história pedem, não vejo problema em usar termos em inglês ou "gerados" pela internet. Pelo contrário: é o tipo de coisa que pode dar cor, dizer muito sobre a trajetória ou visão de mundo de um personagem ou narrador específicos.
O mais importante, acho, é ter em mente que: escolher uma palavra é não escolher outra. Ao usar uma palavra estamos colocando-a em circulação. De certo modo, mantendo-a viva. E o contrário é verdade também: cada vez que escrevemos "ELEGANTE" um reator explode em Fukushima e doze gerações da palavra "GARBOSO" morrem no Pacífico.
Porque para além do enredo e dos temas, dos personagens e do tom, há sempre as palavras.
Nos últimos anos, editei no Brasil três livros do escritor português Valter Hugo Mãe. Vez ou outra me perguntam a razão de não adaptar o texto para o português brasileiro. Em primeiro lugar, trata-se de uma só língua, o português — e não é possível "traduzir" do português para o português. Fazer ajustes ("abrasileirar" ou "aportuguesar" o vocabulário) seria apagar particularidades, reduzir possibilidades da língua e da cultura.
Ler um livro é também entrar em contato com essas possibilidades. E se a internet gera palavras, isso faz parte do nosso tempo e pode ser usado por quem escreve para criar algum tipo de efeito (as palavras são tudo).
Na Flip de 2011, um escritor húngaro, Péter Esterházy, precisou ler um trecho de seu livro em alemão. Era uma questão prática (não havia um tradutor simultâneo do húngaro). Após a leitura e antes de começar o debate (que seria feito em alemão também), pediu para dizer uma coisa — que me pareceu uma forma sutil e garbosa de dizer que, para ele, não ler em húngaro fazia, sim, toda diferença.
"Antes de começar", falou, "quero dizer que não tenho nada além das palavras. Mais especificamente, as palavras húngaras. Elas representam todo o meu valor. Construo tudo com elas: meus sentimentos, minha mãe, meu pai, a morte da minha mãe. No fim, só existe isso: o que eu construí com essas palavras."
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Chamava-se La Catedral. Ficava nas montanhas, a cerca de meia hora de Medellín, com vista privilegiada da cidade. Durante um ano, entre junho de 1991 e julho de 1992, foi a morada de Pablo Escobar, o maior traficante de drogas da história.
Quando se entregou à polícia, em 1991 (fruto de um acordo com o Governo que invalidava a lei de extradição vigente no país), Escobar impôs condições, aceitas pelo então presidente César Gaviria. A principal delas era ser recolhido numa prisão construída por ele mesmo, no lugar que escolhesse (um terreno que pertencia ao próprio Escobar), vigiada por seus homens e sem restrição de visitas – que subiam à sede em confortáveis Toyota Land Cruiser de carroceria vermelha e cabine branca.
“Eu achava que meu pai ficaria alguns anos ali, deixaria de cometer crimes, se recuperaria, para então voltar para casa”, me conta Juan Pablo Escobar, filho do traficante, por telefone — autor do recém-lançado
Pablo Escobar, meu pai: as histórias que não devíamos saber. “Mas com o passar do tempo se tornou mais e mais evidente que em La Catedral meu pai trataria de reorganizar seu aparato militar e redesenhar as rotas do narcotráfico.” Juan Pablo conta que quando perguntou sobre o lugar para sua mãe, ela disse: “Meu filho, é como se fosse uma das nossas fazendas”.
De fato, La Catedral contava com: mesas de bilhar, de pingue-pongue, campo de futebol equipado com sistema de drenagem — jogadores da seleção colombiana, como o goleiro René Higuita, eram figuras cativas. A comida era preparada por três chefs. Havia um médico da família, sempre disponível. Uma varanda semicoberta dava acesso às celas-suítes. A de Pablo tinha um cômodo de vinte e cinco metros quadrados na entrada e mais vinte e cinco metros de quarto, além de banheira, sauna, escritório com escrivaninha, sofá, tapete de pele de zebra e lareira.
Em julho de 1992, porém, tudo chegou ao fim. A execução de dois comparsas acusados de traição tornou insustentável a permanência de Escobar na Catedral. Ficou decidido que ele seria transferido para outra prisão, mas o traficante não aceitou. Fugiu com nove homens por uma saída secreta que ele mesmo mandara construir.
Escobar seria morto um ano depois, em 2 de dezembro de 1993, em Medellín, aos 44 anos. Hoje, no lugar onde ficava La Catedral, funciona uma comunidade beneditina.
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“É metafísica ou putaria das grossas?”, pergunta um personagem de
Contos d’escárnio que, ao lado de
O caderno rosa de Lori Lamby e
Cartas de um sedutor, compõe um dos capítulos mais destemidos e anárquicos da literatura pátria. A história é sabida: aos 60 anos, depois de 28 livros publicados (entre poesia, ficção e teatro) e escaldada com o silêncio da crítica, Hilda Hilst (1930-2004) decide renunciar à literatura “séria” e se dedicar a: histórias pornográficas, aventuras lúbricas cheias de cus, paus e xoxotas — ou, como preferia, suas “adoráveis bandalheiras”.
Embalada pelo discurso de uma guinada literária para “baixo”, à cata de leitores e atenção do mercado (“já que não consigo vender meus livros, quero escrever histórias de sacanagem para caminhoneiros baterem punheta”), Hilst cria, ao contrário, textos de altíssimas qualidade e capacidade de provocar. Quatro pontos a serem destacados: 1) Hilda está muito à vontade entre os amigos Sade, Bataille & cia; 2) zomba de todo ascetismo da vida intelectual; 3) sapateia sobre as solenes Senhoras de Santana; 4) e atesta: “fora do corpo não há salvação” — isso tudo com muita verve; no duro, como escreve bem.
Esta nova edição reúne os três livros citados, o volume de poesia
Bufólicas e o inédito
Fragmento pornográfico rural. Traz ilustrações de Millôr Fernandes, Jaguar, Veridiana Scarpelli e Laura Teixeira; textos críticos de Caio Fernando Abreu, Humberto Werneck, Jorge Coli, Alcir Pécora, além de uma preciosa análise da professora Eliane Robert Moraes. E tem capa rosa e título chick lit (a dita “literatura de mulherzinha”):
Pornô chic — o que poderá fazer, enfim, Hilda brilhar na mesma prateleira da Bridget Jones e da Anastasia Steele.
Mas, óbvio, o buraco é mais embaixo. Além de implodir todo e qualquer
Cinquenta tons de cinza (o que, convenhamos, nem é preciso dizer), a tríade obscena de Hilda nos dá a impressão de que boa parte da literatura “séria” à nossa volta — tantas vezes assexuada, convencional, com seus lamentos, vitimismos e moral semivitoriana — é ela mesma uma grande e rosa prateleira de chick lit. Esse é o real veneno da sua prosa.
Uma história contada por Hilda: “Quando recebi as provas de meu livro
Kadosh, no lugar da palavra cu, aparecia sempre co ou ca ou ci. Cu mesmo, nunca. ‘O que é que há de errado com o cu?’, eu me perguntava. Deviam ser freirinhas ou noviços que manipulavam a gráfica, não sei. Obsceno não é o cu, mas as bombas de Napalm, eu pensava. Essas são, no fim, as verdadeiras obscenidades”.
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Peso = leveza. Demonstrar essa equação foi a vida de João Batista Vilanova Artigas, ele mesmo um sujeito compacto. Movia-se (e pensava) com agilidade, e foi com essa leveza que esgrimiu suas casas e prédios — impressiona que tenha conseguido isso à base de tanto concreto e de estruturas de tão grande porte.
No documentário que deve chegar aos cinemas em junho, mês que completaria 100 anos, sua neta e diretora Laura Artigas nos conduz por seus projetos mais emblemáticos. Estão lá a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (1961), o icônico Louveira, edifício no bairro paulistano de Higienópolis (1946), o estádio do Morumbi (1953), que precisou de “quase uma hidrelétrica de concreto para ficar pronto”, entre outros.
Além de reflexões de historiadores, amigos e arquitetos, como Paulo Mendes da Rocha (principal discípulo de Artigas), o filme tem como trunfo depoimentos de gente comum, como um mestre de obras que trabalhou na construção da rodoviária de Jaú, o zelador do Louveira, um serralheiro (que exalta o padrão dos parafusos das janelas do prédio), um torcedor do São Paulo e um estudante da faculdade de arquitetura. Sobre as célebres claraboias da FAU, Mendes da Rocha diz: “Olha, é uma beleza um lugar onde o teto é de cristal”.
E as homenagens seguem. Para junho, o Itaú Cultural promete uma retrospectiva e projetos do arquiteto curitibano fazem parte de
Latin America in Construction: Architecture 1955 –1980, exposição sobre arquitetura latino-americana em cartaz até julho no MoMA, em Nova York.
Para sua neta, Laura, dirigir o documentário foi também uma aventura pessoal, um jeito de saber mais sobre o avô, que conheceu pouco. “Só com o filme passei a enxergar a dimensão da obra, perceber traços do temperamento dele.” Morto há 30 anos, aos 69, o arquiteto foi membro do Partido Comunista, exilou-se no Uruguai depois do Golpe de 1964 e ficou conhecido como um dos principais expoentes do chamado novo brutalismo, escola inglesa cuja marca é o uso do concreto armado. Se o charme tem a ver com agradar delicadamente, Artigas alcançou isso numa obra dura, de linhas retas, “sem concessão a barroquismos”, como ele mesmo diz, no filme. “Gosto de criar estruturas pesadas que toquem o chão de forma leve", diz, "para que o observador pense: 'Isso pode cair a qualquer momento'."
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