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Correspondência na revista de literatura Traviesa. Uma versão resumida saiu no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo.
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De: Emilio Fraia
Dec 30, 2013
Nesky,
Hoje cedo, abri o Facebook e vi uma foto sua dando uma cambalhota no ar, prestes a cair numa piscina. Primeiro, fiquei feliz em saber que você: 1) está bem; 2) de férias; 3) praticando saltos de caráter ornamental. Depois, pensei naquela sensação de quando algo está para acontecer — a superfície da água ali, paradinha, e num segundo, tudo em movimento.
Faz trinta dias que cheguei ao México, e essa é a sensação padrão da viagem. Toda hora parece que algo vai acontecer. Estou em Tulum, estado de Quintana Roo, num lugar chamado Pico Beach. Sol, mar, calor, um drinque de nome Ojo Rojo & o topless é uma realidade. Bom local para escrever e viver a vida subaquática; tenho acordado por volta das seis, todos os dias. Ontem, decidi alongar minha estada por aqui. Isso me parece uma das vantagens de viajar sem roteiro: a possibilidade de gostar de um lugar e ir ficando.
Meu vizinho de cabana é um argentino, Adán, que está atravessando o México de bicicleta, vendendo chocolates (orgânicos, que ele mesmo faz). Adán é magro, tem uma falha entre os dentes da frente e o cabelo comprido, preso num rabo de cavalo. Usa sempre a mesma camiseta, uma regata verde com uma orca desenhada. Ele me contou que quando chegou na cidade não tinha lugar para ficar. Então conheceu um casal de americanos que havia alugado a cabana por um mês. Por algum motivo, eles precisaram voltar para os Estados Unidos e como já tinham pago, e ninguém devolve dinheiro na temporada, ofereceram o lugar a ele. E o melhor: a cabana tem uma cozinha, onde Adán pode confeccionar de maneira hippie seu chocolate orgânico — é bom chocolate, experimentei ontem.
Esses viajantes, gente do couchsurfing, gente que passa anos viajando, indo de um lugar a outro, sem parar. É como se os exilados dos livros do Bolaño tivessem trocado de lugar com eles. Tenho pensado nas motivações, que não são políticas (pelo menos não diretamente políticas), que levam alguém como o Adán a viajar dessa maneira. Há pouco, li um ensaio, Antifragile: Things That Gain from Disorder, de um libanês-norte-americano, Nassim Nicholas Taleb. O que o autor tenta é desenvolver um conceito que seja o contrário da fragilidade. Mas esse oposto não seria a robustez nem a resistência. A ideia é: existem coisas que não só resistem mas se beneficiam do choque; que crescem ou se modificam quando expostas a situações de aleatoriedade e desordem.
Perguntei ao Adán a razão dele ter decidido sair pelo mundo, sozinho. Ele não tinha uma resposta pronta, mas deu para perceber aqui e ali que ele é meio que viciado em incerteza. Começou a viajar há treze anos e nunca mais parou (nesse tempo, voltou para a Argentina duas únicas vezes). Gosta de chegar num lugar sem saber muito bem o que vai acontecer, e não se mover, e ir percebendo como as coisas se configuram. Não deixa de ser uma atitude zen. E viajar sozinho talvez tenha a ver com exercitar isso, porque a todo momento alguma coisa acontece e desestabiliza a superfície da água.
Na terça, quando estava vindo para cá, peguei o avião em San Jose del Cabo, na Baixa California, fiz uma escala na Cidade do México, onde tomei um café e realizei breve análise metereológica da viagem: estou neste país há um mês e ainda não choveu. Na chegada, no aeroporto de Cancun (Tulum fica a 130 quilômetros de Cancun), me dirigi até o local onde calças, camisetas, livros, meias e cuecas desfilam em uma esteira rolante dentro de invólucros de couro ou tecido a que chamamos malas, bolsas e mochilas. Fiquei de pé, cumprindo o procedimento padrão de esperar. As malas circulavam, e as pessoas iam pescando suas coisas. Até que o salão começou a esvaziar.
Estava tudo indo bem, mas de repente entendi que estava prestes, pela primeira vez na vida, a viver a experiência cabal de ter a bagagem extraviada. Na esteira, sobrou apenas uma mochila preta, desbotada e murcha, dando voltas — até que um funcionário veio e a recolheu. Fui até a portinhola de onde saem as bagagens. Enfiei a cabeça. Já era noite lá fora e não tinha nada, ninguém, só um carrinho enferrujado, provavelmente o que trouxe as bagagens (menos a minha). Já aconteceu com você? É desolador. Fui e voltei umas cinco vezes, e eis que na outra ponta do salão surgiu um guardinha obeso de bigode. Eu me aproximei. Contei a situação. Os bocejos do guardinha desenvolviam velocidades negativas. Pelo rádio, ele entrou em contato com o balcão da companhia aérea. Então disse que um funcionário chamado Oliver estava a caminho. Depois de longa espera, funcionário Oliver surgiu. Preenchi um formulário. Apontei num diagrama o desenho que mais se assemelhava à minha mochila (descobri que ela se enquadra na categoria “mochila esportiva”). Oliver fez uma série de telefonemas. Até que minha bagagem foi localizada. Estava num outro avião, que sairia naquele momento da capital federal. Se eu quisesse, poderia ir ao hotel (no caso, minha cabana) e a companhia aérea se encarregaria de entregar a bagagem. Como a sorte já não estava muito do meu lado, achei melhor esperar no aeroporto. Comer um cachorro-quente e morrer. Seria um fim digno.
Enfim, eu poderia estar te contando coisas maravilhosas que vivi nos últimos vinte e nove dias mas é sempre mais divertido contar aquilo que saiu errado. Também deve ser por isso que o Adán viaja: para que as coisas possam dar errado em algum nível (buscar aventuras num mundo onde as promessas de aventura parecem não se cumprir). E ninguém afinal quer saber de histórias que não envolvam: 1) ruína; 2) choro; 3) personagens que apanham do início ao fim. Acho que todo bom romance é assim, né? E tanto melhor se envolver incerteza. Agora o vento mudou, parece que vai chover.
Feliz início de ano, amigo Nesky.
Emilio
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De: Antônio Xerxenesky
Jan 2, 2014
Dearest Emilio,
Em primeiro lugar, gostaria de romper sua ilusão: não pratico grandes saltos ornamentais na piscina. A foto ficou incrível, não dá para entender onde estão os meus braços, qual o movimento que está ocorrendo, se vou dar de cabeça na laje ou cair de costas na água. A realidade não é tão emocionante. Estávamos na casa do Galera — um dos primeiros lugares onde te encontrei ao vivo, onde começamos essa história de “ser amigos” — e o Natão, amigo do pessoal, queria muito testar uma câmera que registra zilhões de frames por segundo. Então fui lá, dei um salto desajeitado, uma cambalhota fracassada, caí de costas na água, um tchuf doloroso, mas isolando aquele frame que publiquei no Facebook, parece que realizei uma manobra mirabolante. Costumam dizer que construímos uma narrativa idealizada de quem somos nas redes sociais. Pode-se dizer que fiz isso. Mas a verdade é que gosto de colocar coisas estapafúrdias no Facebook mesmo. Não entendo aquele monte de escritores que lotam minha timeline publicando apenas comentários críticos inteligentes sobre tudo que está aí. Parece que não dão cambalhotas na piscina.
Rapaz, quantas aventuras você deve estar vivendo. Na sua carta, por sinal, aparece algumas vezes a palavra “aventura”. E você me fala de viagens solitárias e pessoas nômades. Esse mundo parece ficção. Viajar nunca foi tarefa fácil para mim. A primeira vez que saí da América Latina foi em 2013, uma ida a França em maio. Nunca tive nenhum fetiche por Paris ou pela cultura francesa, nem consigo me lembrar por qual motivo eu e a Gabi escolhemos a França, dentre tantos países. Deve ter sido porque gostávamos de coq au vin e de vinhos.
Você contou do drama de perder a bagagem. Nunca me aconteceu, mas tenho um medo tremendo que ocorra. Sou muito apavorado para certas coisas, e sinto que nem anos de terapia seriam capazes de curar isso. Eu tinha uma certeza inconsciente, por exemplo, de que seria barrado na imigração, mesmo estando com os documentos em ordem, mesmo sendo branco, de classe média, mesmo trajando um blazer. Claro que passei tranquilamente, mas uma voz repetia no meu cérebro o tempo inteiro: “Vai dar errado. Não deixarão você entrar. Você será interrogado. Caso passe, vai perder a conexão. Se pegar a conexão, o avião vai cair. Se chegar lá, sua bagagem não estará na esteira”. E assim por diante. Um dos motivos pelos quais só consegui viajar mesmo em 2013, aos 28 anos, segurando a mão da namorada.
É nessas barreiras de imigração, por sinal, que você enxerga toda a tensão racial que parece dominar a Europa: enquanto um branquela como eu passa diretamente, sem grandes inspeções, qualquer mulher trajando uma burca é questionada por minutos e minutos. Em Paris, árabes e negros são vistos mais na periferia, e parecem ser tratados com receio e desdém por alguns parisienses. Posso estar enganado, mas foi a sensação que eu tive. Paris, por sinal, foi uma decepção. É o legítimo caso de uma cidade arruinada pelo turismo predatório. Mesmo evitando lugares mais óbvios, parece que nenhum lugar está a salvo. E sinto que os moradores de lá desenvolveram certo nojo dos turistas. Com razão. Vi cada demonstração de grosseria que seria capaz de preencher cinco cartas com exemplos. Impossível não lembrar o que Foster Wallace diz: o lugar que visitamos seria muito melhor sem a nossa presença.
Por favor, não me entenda mal. Não imagino que você ou seu comparsa Adan sejam turistas incômodos. Estou falando apenas de um mal estar que tenho em lugares muito clichês. Por isso que as cidades que mais gostei ficavam no interior da França. O que me lembra o que você falou de “aventura”. Parece que, nas viagens, há uma guerra dialética entre “aventura” e “conforto”, entre explorar pequenas cidades do México, hospedado em cabanas, ou ficar estirado numa cadeira de praia em um resort paradisíaco. Não vivi nada maluco e fiquei no lado do conforto na França, mas é curioso pensar que a parte mais legal da viagem foi quando eu e Gabi tomamos o caminho menos óbvio. Estávamos em Dijon e decidimos beber os tais vinhos da Borgonha. O hotel oferecia esses pacotes turísticos, um ônibus gostosinho com ar-condicionado que nos levaria até um château. Pensamos em comprar um pacote, mas estavam esgotados. O que fizemos? Descobrimos que havia um château que recebia gente de fora a algumas cidadezinhas de distância. Pegamos um trem até a periferia da cidade e de lá um ônibus que passava com uma frequência desanimadora. Quando entramos no ônibus, estava cheio. Quando descemos, éramos os únicos passageiros. A cidadezinha ficava no fim da linha. Saímos do ônibus e não havia nada ao redor. Nada. Quer dizer, campos verdejantes. Uma casa à distância. Parreiras. Um cão estropiado. Caminhamos sem rumo. Encontramos uma vovozinha meio surda em uma cadeira de rodas. Ela nos orientou até o château, apesar do nosso tosco francês. Batemos na porta e bebemos os melhores vinhos de nossas vidas.
Uma aventura terrivelmente burguesa, sem dúvida. Mas céus, estávamos na França e gostamos de vinho. Tudo que fizermos será terrivelmente burguês. Conto a experiência porque, mesmo visitando o país mais turístico de todos, por um momento nos encontramos perdidos, em terra estranha, e isso pareceu mais especial do que o maldito Arco do Triunfo, que é sem graça pra chuchu.
“Aventuras”. Heh.
Saludos,
Nesky
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De: Emilio Fraia
Jan 3, 2014
Nesky,
Obrigado demais pelo relato. Pensei em finais alternativos: você e Gabi batem na porta do château e bebem os piores vinhos de suas vidas. Ou depois de toda a epopeia ônibus/trem descobrem que o lugar está perturbadoramente vazio, com cara de ter sido abandonado às pressas por algum motivo obscuro. Ou vocês se marcam no Foursquare e são perseguidos por um assassino de blazer branco Miami Vice. Quanto ao argentino Adan meu-vizinho-de-cabana, bem, ele poderia seguir pelo mundo, transmutando manteiga de cacau em chocolate orgânico para, no fim, concluir que seu ideal de “aventura” na verdade não se cumpriu; que sua experiência ficou abaixo da ficção que formou dela mesma; que de um jeito ou de outro, em algum nível, tudo é decepção. Mesmo assim, ele não deixaria de viajar. Vai consertar a bicicleta (está com um problema na correia) e continuar firme, em frente, pedalando. Um tipo de “não posso continuar, tenho que continuar”.
Do lado de cá, fui visitar as ruínas de Palenque, em Chiapas. Que bonito esse tipo de paisagem, desolada, com a natureza avançando sobre os restos das construções. Dá uma espécie de consciência da transitoriedade das coisas. Principalmente do poder. Ver todos aqueles templos carcomidos, pensar que um dia foram edifícios majestosos, feitos por gente que escravizou e/ou devastou tribos vizinhas, que usurpou o lugar daqueles que num momento específico foram tomados como inimigos etc. — uma coisa meio ambiente corporativo, só que com chefes maias de nome K’inich Janaab’ Pakal.
Lá pelas tantas, eu sentei no degrauzinho de uma das pirâmides, fazia um calor desgraçado, e fiquei brincando de tirar fotos em que só aparecessem as ruínas, os templos no meio da selva, sem as pessoas. Esperar o momento, buscar o ângulo certo, e quando não sobrasse ninguém no quadro, clic clic, fotografar. Coisas estúpidas que a gente faz quando está sozinho (a prática da vida secreta, que você conhece bem). Mas os ônibus não paravam de chegar. Era muita gente. Então, analisando as fotos depois, pode-se dizer que minha tentativa de evocar o mundo anterior às procissões de turistas não foi exatamente um sucesso. E mesmo se tivesse sido, ainda restaria: eu. No fundo, acho que somos todos turistas incômodos, compartilhando nas redes sociais nossas peripécias incômodas de turistas incômodos.
E nunca tinha pensado nisso: o Brasil é um país sem ruínas, né. Sem falar que tudo o que existe de mais ou menos antigo entre nós acaba sendo restaurado e, poxa, seria legal ter uns lugares assim, abandonados e caindo aos pedaços, diz aí. Do que conheço, tem o castelo do Garcia D’Ávila, na Bahia, e dois presídios, o da Ilha Anchieta, em Ubatuba, e o da Ilha Grande, no Rio. Não sei se você já esteve lá, mas essas ruínas dos presídios são espetaculares, bons espécimes de passado, ainda que um passado recente. Este último fica numa das praias mais bonitas que já vi, Dois Rios — três horas de caminhada pesada desde o Abraão, a vila onde a maioria das pessoas se aloja na Ilha Grande. Foi lá que o Graciliano Ramos ficou preso, nos anos 30. Madame Satã também. E eu peguei um carrapato na perna, tive febre e achei que fosse morrer (como você é meu amigo, vou te poupar dos detalhes dessa história).
No sábado, recebi um e-mail da Flora, uma amiga que mora na Alemanha. Fazia um tempão que não falava com ela. Na mensagem, ela dizia que se mudou com o namorado para uma reserva cercada de lagos, a uma hora de Berlim, uma casa de três andares, com duas cachorras e dois quartos de hóspedes. Disse que em breve vão abrir vagas para artistas em crise, escritores com bloqueio etc. (a estadia vai incluir alimentação orgânica, lareira e mímica). Depois, me contou que vai passar por uma cirurgia. Eu escrevi de volta, narrando episódios da minha vida recente e contando da vez que tive apendicite. Durante um tempo, nós fomos bastante próximos, a Flora namorava um amigo meu, o Arthur. Então, enquanto escrevia, foi como retomar um pouco essa época, a gente num réveillon na Cajaíba, olhando os plânctons na praia à noite; algo análogo a estar diante das ruínas do templo ou do presídio da Ilha Grande (ok, não é uma imagem muito boa, mas tem a ver com uma espécie de elo, no presente, com essa ficção chamada passado). Na hora foi meio nostálgico, mas não no sentido de que “antes era melhor”, só uma consciência de que o tempo passa e as coisas vão ganhando níveis, complexidade, layers.
Pensei numa história que li outro dia: em 1914, o Giacometti esculpiu seu primeiro busto de observação. Era o irmão dele que posava. Ele conta que de início sentiu um prazer extremo e teve a impressão de que a coisa viria facilmente, de que conseguiria fazer mais ou menos o que via. Cinquenta anos depois, ele está no ateliê, há uma semana, tentando fazer a cabeça daquela época, como em 1914, mais ou menos da mesma dimensão que a primeira. Enquanto em 1914 tinha a impressão de fazer o que queria, agora não consegue mais. E conta que pensando bem nunca mais conseguiu fazer uma cabeça simplesmente como a vê, no sentido mais primário. Se vê uma cabeça de muito longe, tem a ideia de uma esfera. Se vê de perto, ela deixa de ser uma esfera para se tornar uma complicação extrema em profundidade. Se olha de frente, esquece o perfil. Se olha o perfil, esquece a face. Tudo se torna descontínuo, complexo, e ele não consegue mais apreender o conjunto. Estágios demais. Níveis demais. Acho que é isso.
Abraço e urge almoço da indolência,
Emilio
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De: Antônio Xerxenesky
Jan 6, 2014
Caro Emilio,
Nunca vi uma ruína. Quer dizer, estou aqui cavoucando as lembranças atrás de algo, algum passeio pelo interior do Rio Grande do Sul, sei lá. Não, acho que não. Acho que só vi em filmes. E talvez por isso não tenha pensado muito nelas. Mas o que você me falou me fez lembrar A grande beleza, filme de Paolo Sorrentino elogiadíssimo que assisti semana passada. Achei o filme lamentável, tive vontade de sair no meio de tão ruim que achei. Fazia tempo que não sentia isso quanto a um filme. É um sub-Fellini com estética de propaganda de perfume. Quer homenagear 8 e ½, mas não tem um quinto do apuro visual. E dá-lhe travelling no pôr-do-sol.
Mas o que mais me irritou no filme nem foi isso. Foi certa defesa da “antiga Roma”, dos antigos valores. Das ruínas. O tempo todo o filme contrasta o novo decadente com o velho sagrado. De um lado, música pop de quinta categoria, padres aproveitadores e festas dignas de Berlusconi; de outro, a beleza do Coliseu, da Roma de arquitetura clássica, a presença fantasmagórica de Fanny Ardant. Na sequência que considero a pior do filme, uma menina faz sua performance artística com um monte de balde de tintas e o protagonista faz um piadinha sobre como ela ganha milhões. Todo blasé, o protagonista resolve então abandonar a performance e mostrar à sua companheira o que considera a parte mais bela de Roma, a parte “secreta”, estátuas de séculos atrás, tudo embalado na mais melodiosa música sacra.
Não me entenda mal, não estou criticando a tradição, muito menos a música — a trilha do filme é linda, tem Arvo Pärt e Henryk Górecki. Critico apenas a má vontade contra o contemporâneo. É muito, muito fácil fazer piada com arte contemporânea. A cada Bienal de São Paulo (ou de Porto Alegre), a gente precisa aguentar aquela série de piadas sobre alguém que confundiu um extintor de incêndio com uma obra, blá blá blá. Considero muito mais digno o esforço de encontrar valor e produzir reflexão sobre o que está aí — porque tem muita coisa boa aí, seja na arte, seja na música pop. Dizer que vivemos numa grande decadência cultural e moral (que parece ser a mensagem do filme de Sorrentino) é uma saída tão banal e preguiçosa...
Eu estou muito longe de ser um conhecedor da arte contemporânea, e admito com constrangimento que de vez em quando confundo Waltercio Caldas com Cildo Meireles, e que muitas vezes passo por uma exposição pensando que nada fez o menor sentido para mim. E, no entanto, vejo um valor inestimável em um projeto como o de Inhotim. Você já foi lá?
Rapaz, creio que Inhotim é o segredo mais bem guardado do Brasil. Quer dizer, o pessoal do nosso meio de trabalho vai dizer “dã, claro, Inhotim, isso não é segredo, todo mundo conhece”, mas pergunte aos seus pais, primos, amigos de fora do meio literário/jornalístico/editorial. Eles não sabem o que é Inhotim. E é incrível que exista esse lugar no Brasil. Um museu imenso à céu aberto. Um museu onde você pode tomar banho de piscina em uma obra de arte. Um museu que permite que os artistas libertem que o possuem de mais megalomaníaco. Há instalações das quais não gostei muito, mas que me impressionaram justamente pela imponência, como o imenso trator derrubando a árvore de Matthew Barney dentro de uma cúpula espelhada.
Talvez a obra que eu mais lembre de Inhotim seja Sonic Pavilion, criada pelo californiano Doug Aitken. É um pavilhão envidraçado com um buraco no meio. O buraco tem 200 metros de profundidade; no fundo dele, Aitken colocou microfones para gravar o ruído que vem do fundo da Terra e o barulho fica reverberando pelo pavilhão. E qual é o som do fundo da Terra? É terrivelmente grave e estranho. Lembra um pouco os drones tão usados na música experimental. Acho que sou capaz de produzir uma onda sonora parecida no meu sintetizador, mas será um som criado artificialmente, que não veio do fundo da Terra, e isso faz toda a diferença. Só sentando no chão do Sonic Pavilion para entender.
E isso fica no Brasil. A seis horas de carro de São Paulo. Perdoe o deslumbramento, mas acho isso incrível. Pena que os detratores do contemporâneo nunca chegarão nem perto do local.
Vamos marcar aquele almoço, plmdds.
Saudações,
Nesky
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De: Emilio Fraia
Jan 9, 2014
Nesky,
Você conhece a Lei Kenneth Tynan sobre o Cinema Responsável? Ela diz que todos os filmes que tentem diagnosticar a sério os Problemas Humanos Contemporâneos são ruins. Só os filmes históricos, as comédias, as sátiras e os filmes de suspense prestam. Nota: para Tynan, Cidadão Kane é em parte histórico e, em parte, uma sátira. Ou seja, estou 800% contigo. E, pensando depois, a sinopse do A grande beleza podia ser: “A grande beleza (Itália-França/2013, 142 min.) Ao fazer 65 anos, escritor bon vivant questiona rumos de sua vida e encontra o antídoto para a arte vazia e frívola de seu tempo numa revoada de flamingos feita no Windows 95”. Ainda não me recuperei dessa cena dos flamingos, que coisa hedionda.
Sim, fui a Inhotim no ano passado. Gostei de tudo o que você falou. E tem o pavilhão da Lygia Pape. Rapaz. Eu queria escrever daquele jeito, tudo muito simples, elegante e geométrico. Outra obra que me impactou foi a de uma espanhola, Cristina Iglesias. Não sei se você se lembra, fica no meio de uma clareira, num lugar de mata fechada. É uma escultura de aço, espelhada, um labirinto: por fora, as paredes refletem a vegetação ao redor; por dentro, texturas imitam raízes, folhas, troncos. O tempo todo ouve-se um barulho de água. E bem no centro da coisa, depois de percorrer corredores, alguns sem saída, voltar, entrar de novo, chega-se a uma bomba d’água.
E, antes, é preciso andar uns dez minutos numa trilha até alcançar a obra. Essa parte é bem legal também. Tem algo de surpresa, e é como se uma narrativa (a da trilha, no meio do mato) fosse interrompida e invadida por outra (a de uma grande escultura, um objeto estranho, um labirinto espelhado).
Tenho pensado em histórias assim, que de repente se transformam em outras. Acontece muito nos contos do Onetti. Há sempre alguém que conta, imagina, inventa, recorda. E a história contada, imaginada, inventada toma a frente e acaba funcionando como uma espécie de comentário à primeira história, que segue ali, latente, à espreita. No Los ingravidos, da Valeria Luiselli, tem algo assim também. Você leu? Tive a impressão que esse livro passou meio batido aqui no Brasil. A narradora, que tenta escrever um romance, fica obcecada pelo poeta mexicano Gilberto Owen, e a voz dele começa a tomar conta da trama e se mistura às lembranças dela. A justaposição das duas narrativas cria um efeito que achei excelência pura.
E, cara, essa semana foi tensa, um milhão de coisas pra resolver. Devo ter ido ao cartório pelo menos umas cinco vezes. E tem toda a morte que é responder e-mails. Você responde cinco, dez, e eles se multiplicam em quinze, vinte. Revisei também a tradução de um conto meu que vai sair numa coletânea de autores brasileiros da Alfaguara, na Argentina. E estou tentando terminar meu livro. Aliás, fiquei feliz com a notícia de que você está traduzindo o Kassel no invita a la logica, novo do Vila-Matas. É um livro que tem a ver com essas questões da arte contemporânea, né. Está achando bom? Gosto da maneira como o Vila-Matas se aproxima do tema. O História abreviada da literatura portátil é um baita livro. Gosto do lema dos portáteis: escrita por diversão e escrever obras que possam facilmente caber numa maleta (embora, claro, escrever não seja algo exatamente divertido e há romances ótimos que, nossa, como pesam). No Exploradores do abismo tem o famoso conto com a Sophie Calle e, enfim. Tudo infinitamente mais interessante do que a visão do Mario Vargas Llosa sobre arte contemporânea, para dar um exemplo de “detrator do contemporâneo”. E, olha, não me entenda mal, eu adoro Vargas Llosa — Os filhotes, A cidade e os cachorros e Tia Julia e o escrevinhador são livros que calam fundo no peito deste prosador. Mas esse recente, A civilização do espetáculo, não dá. Até entendo o empenho em conservar a tradição do romance etc., mas a coisa não pode ser um Fla-Flu assim.
Vi que numa entrevista recente sobre o Kassel o Vila-Matas cita um trecho de uma entrevista do David Foster Wallace. Então vou transcrever aqui a título de “até mais, Nesky”. É assim: “A ficção pode oferecer uma visão de mundo tão sombria quanto desejar, mas para ser realmente boa ela precisa encontrar uma maneira de, ao mesmo tempo, retratar o mundo e iluminar as possibilidades de permanecer vivo e humano dentro dele”. É meio “literário” e semicafona, né. Mas sei lá. Acho que cheguei aqui, no fim, e estou quase absolvendo os flamingos, as propagandas de perfume e o Windows 95.
Abração, capricha.
Emilio
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De: Antônio Xerxenesky
Jan 11, 2014
Dearest Emilio,
Fico feliz de ver que concordamos no quesito cinematográfico, embora eu estivesse torcendo por alguma discordância selvagem, algo que tornasse essa última carta um espaço de disputa e briga.
Quanto à instalação de Cristina Iglesias, não me lembrava dela: tive que colocar no Google para confirmar que visitei essa obra em Inhotim. A verdade é que caminhei por esse labirinto sem entender absolutamente nada. Quando isso acontece, também prefiro nem olhar o release explicativo. Esses textos informativos que se propõem a explicar uma obra de arte com um monte de jargões acadêmicos sobre “relação entre o homem e o espaço” tendem a ser nauseabundos. Engraçado como nós dois reagimos de maneira completamente distinta quanto a uma obra — se não fosse a sua menção, nem lembraria desse lugar verde-envidraçado.
Estou me programando para ler Luiselli há bastante tempo. Não acho que ela passou batido por aqui, vários amigos comentaram do livro — a verdade é que quase todo autor latino cujo nome não é Roberto Bolaño acaba sendo menos lido do que deveria no Brasil. Tenho a impressão de que somos muito mais influenciados pelas tendências de mercado norte-americanas; até mesmo os sucessos europeus que emplacam no Brasil tiveram um selo de aprovação dos norte-americanos: Thomas Bernhard, W. G. Sebald... Uma pergunta cruel: teria Roberto Bolaño feito tanto sucesso no Brasil se não fosse o êxito tremendo nos Estados Unidos? Claro, talvez eu esteja sendo paranoico.
Não li ainda a Luiselli porque estou me esquecendo o que é ler um livro por prazer, um romance que escolhi ler por puro capricho. Você sabe como funciona: trabalho oito horas por dia, depois do expediente vou para casa onde trabalho mais, em outra coisa, neste caso a tradução de Vila-Matas, e às vezes ainda tenho alguma resenha ou artigo para escrever, ou ler um livro para redigir as famosas “orelhas não-assinadas”. Céus, e preciso arranjar espaço para ler algo de pesquisa para o meu futuro romance. E um pouco de tempo para assistir a um filme ou série boba, jogar videogame, existir, comer um hambúrguer, escovar os dentes.
Preciso dar um jeito de fazer o dia ter 30 horas.
Ou mudar o meu estilo de vida.
Voltando ao Vila-Matas: não está nada fácil traduzir Kassel. Não por alguma dificuldade intrínseca do livro (embora tenha muitas expressões barcelonenses que eu nunca tinha ouvido), mas porque Vila-Matas é um autor tão presente em minha vida que traduzi-lo é intimidante. Isso não quer dizer que tenho uma idolatria cega por Vila-Matas; como todo autor que realmente admiro, tenho minhas crises de fé. Às vezes acho que tanta metaliteratura e autoficção acaba tirando muito da humanidade, que faltam personagens tridimensionais. E admito que achei Dublinesca e Ar de Dylan livros de pouca vitalidade. Este novo que estou traduzindo, no entanto, é incrível, é Vila-Matas na sua melhor forma. E, se eu acreditasse em sincronicidade, diria que é um recado do destino ter caído nas minhas mãos esse livro. Vila-Matas está tratando de vários temas que vem me obcecando: desde a defesa do contemporâneo — sobre o qual conversamos aqui! — até as caminhadas de Walser e a reclusão de Wittgenstein (o último livro que li 100% por prazer foi a inacreditável biografia de Wittgenstein escrita por Ray Monk). A sua lembrança do História abreviada é certeira — Vila-Matas é ótimo ao lidar com arte contemporânea, especialmente com discípulos de Duchamp.
Enfim, Kassel é um livro excelente e espero que minha tradução faça jus. Não sei como é para você, mas, para mim, traduzir é um tanto como escrever ficção: durante todo o processo, acho que está ficando horrível e que sou uma farsa. Só depois, revisando com calma, que consigo avaliar de forma mais realista o resultado. A exceção recente foi O fundo do céu, livro de Rodrigo Fresán que traduzi. Ao terminar, tive certeza de que fiz um trabalho digno, que Fresán estava soando naturalmente em português, que o resultado foi um romance traduzido sem sotaque e, ao mesmo tempo, fiel. Queria que fosse sempre assim.
Olho o tamanho da carta que escrevi até agora e vejo que estou já abusando do tempo e do espaço, como aquele vencedor do Oscar que fica discursando tempo demais e ignora o volume da orquestra aumentando. Eu queria encontrar uma frase (uma citação também seria válida), um tema, um recado, algo para fechar de um jeito redondinho a nossa correspondência. Nada me ocorre. Tenho andado ansioso, não reconheço mais a diferença entre dia de semana e fim de semana, tenho trabalhado demais e lido por prazer de menos. Por favor, vamos marcar aquele almoço, um almoço terrivelmente longo e inútil, um almoço de três horas, com direito a café em um segundo local e um sorvete de pistache em um terceiro. Acho que estou precisando.
Foi um prazer,
Nesky
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Correspondência na revista de literatura Traviesa. Uma versão resumida saiu no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo.
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De: Emilio Fraia
Dec 30, 2013
Nesky,
Hoje cedo, abri o Facebook e vi uma foto sua dando uma cambalhota no ar, prestes a cair numa piscina. Primeiro, fiquei feliz em saber que você: 1) está bem; 2) de férias; 3) praticando saltos de caráter ornamental. Depois, pensei naquela sensação de quando algo está para acontecer — a superfície da água ali, paradinha, e num segundo, tudo em movimento.
Faz trinta dias que cheguei ao México, e essa é a sensação padrão da viagem. Toda hora parece que algo vai acontecer. Estou em Tulum, estado de Quintana Roo, num lugar chamado Pico Beach. Sol, mar, calor, um drinque de nome Ojo Rojo & o topless é uma realidade. Bom local para escrever e viver a vida subaquática; tenho acordado por volta das seis, todos os dias. Ontem, decidi alongar minha estada por aqui. Isso me parece uma das vantagens de viajar sem roteiro: a possibilidade de gostar de um lugar e ir ficando.
Meu vizinho de cabana é um argentino, Adán, que está atravessando o México de bicicleta, vendendo chocolates (orgânicos, que ele mesmo faz). Adán é magro, tem uma falha entre os dentes da frente e o cabelo comprido, preso num rabo de cavalo. Usa sempre a mesma camiseta, uma regata verde com uma orca desenhada. Ele me contou que quando chegou na cidade não tinha lugar para ficar. Então conheceu um casal de americanos que havia alugado a cabana por um mês. Por algum motivo, eles precisaram voltar para os Estados Unidos e como já tinham pago, e ninguém devolve dinheiro na temporada, ofereceram o lugar a ele. E o melhor: a cabana tem uma cozinha, onde Adán pode confeccionar de maneira hippie seu chocolate orgânico — é bom chocolate, experimentei ontem.
Esses viajantes, gente do couchsurfing, gente que passa anos viajando, indo de um lugar a outro, sem parar. É como se os exilados dos livros do Bolaño tivessem trocado de lugar com eles. Tenho pensado nas motivações, que não são políticas (pelo menos não diretamente políticas), que levam alguém como o Adán a viajar dessa maneira. Há pouco, li um ensaio, Antifragile: Things That Gain from Disorder, de um libanês-norte-americano, Nassim Nicholas Taleb. O que o autor tenta é desenvolver um conceito que seja o contrário da fragilidade. Mas esse oposto não seria a robustez nem a resistência. A ideia é: existem coisas que não só resistem mas se beneficiam do choque; que crescem ou se modificam quando expostas a situações de aleatoriedade e desordem.
Perguntei ao Adán a razão dele ter decidido sair pelo mundo, sozinho. Ele não tinha uma resposta pronta, mas deu para perceber aqui e ali que ele é meio que viciado em incerteza. Começou a viajar há treze anos e nunca mais parou (nesse tempo, voltou para a Argentina duas únicas vezes). Gosta de chegar num lugar sem saber muito bem o que vai acontecer, e não se mover, e ir percebendo como as coisas se configuram. Não deixa de ser uma atitude zen. E viajar sozinho talvez tenha a ver com exercitar isso, porque a todo momento alguma coisa acontece e desestabiliza a superfície da água.
Na terça, quando estava vindo para cá, peguei o avião em San Jose del Cabo, na Baixa California, fiz uma escala na Cidade do México, onde tomei um café e realizei breve análise metereológica da viagem: estou neste país há um mês e ainda não choveu. Na chegada, no aeroporto de Cancun (Tulum fica a 130 quilômetros de Cancun), me dirigi até o local onde calças, camisetas, livros, meias e cuecas desfilam em uma esteira rolante dentro de invólucros de couro ou tecido a que chamamos malas, bolsas e mochilas. Fiquei de pé, cumprindo o procedimento padrão de esperar. As malas circulavam, e as pessoas iam pescando suas coisas. Até que o salão começou a esvaziar.
Estava tudo indo bem, mas de repente entendi que estava prestes, pela primeira vez na vida, a viver a experiência cabal de ter a bagagem extraviada. Na esteira, sobrou apenas uma mochila preta, desbotada e murcha, dando voltas — até que um funcionário veio e a recolheu. Fui até a portinhola de onde saem as bagagens. Enfiei a cabeça. Já era noite lá fora e não tinha nada, ninguém, só um carrinho enferrujado, provavelmente o que trouxe as bagagens (menos a minha). Já aconteceu com você? É desolador. Fui e voltei umas cinco vezes, e eis que na outra ponta do salão surgiu um guardinha obeso de bigode. Eu me aproximei. Contei a situação. Os bocejos do guardinha desenvolviam velocidades negativas. Pelo rádio, ele entrou em contato com o balcão da companhia aérea. Então disse que um funcionário chamado Oliver estava a caminho. Depois de longa espera, funcionário Oliver surgiu. Preenchi um formulário. Apontei num diagrama o desenho que mais se assemelhava à minha mochila (descobri que ela se enquadra na categoria “mochila esportiva”). Oliver fez uma série de telefonemas. Até que minha bagagem foi localizada. Estava num outro avião, que sairia naquele momento da capital federal. Se eu quisesse, poderia ir ao hotel (no caso, minha cabana) e a companhia aérea se encarregaria de entregar a bagagem. Como a sorte já não estava muito do meu lado, achei melhor esperar no aeroporto. Comer um cachorro-quente e morrer. Seria um fim digno.
Enfim, eu poderia estar te contando coisas maravilhosas que vivi nos últimos vinte e nove dias mas é sempre mais divertido contar aquilo que saiu errado. Também deve ser por isso que o Adán viaja: para que as coisas possam dar errado em algum nível (buscar aventuras num mundo onde as promessas de aventura parecem não se cumprir). E ninguém afinal quer saber de histórias que não envolvam: 1) ruína; 2) choro; 3) personagens que apanham do início ao fim. Acho que todo bom romance é assim, né? E tanto melhor se envolver incerteza. Agora o vento mudou, parece que vai chover.
Feliz início de ano, amigo Nesky.
Emilio
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De: Antônio Xerxenesky
Jan 2, 2014
Dearest Emilio,
Em primeiro lugar, gostaria de romper sua ilusão: não pratico grandes saltos ornamentais na piscina. A foto ficou incrível, não dá para entender onde estão os meus braços, qual o movimento que está ocorrendo, se vou dar de cabeça na laje ou cair de costas na água. A realidade não é tão emocionante. Estávamos na casa do Galera — um dos primeiros lugares onde te encontrei ao vivo, onde começamos essa história de “ser amigos” — e o Natão, amigo do pessoal, queria muito testar uma câmera que registra zilhões de frames por segundo. Então fui lá, dei um salto desajeitado, uma cambalhota fracassada, caí de costas na água, um tchuf doloroso, mas isolando aquele frame que publiquei no Facebook, parece que realizei uma manobra mirabolante. Costumam dizer que construímos uma narrativa idealizada de quem somos nas redes sociais. Pode-se dizer que fiz isso. Mas a verdade é que gosto de colocar coisas estapafúrdias no Facebook mesmo. Não entendo aquele monte de escritores que lotam minha timeline publicando apenas comentários críticos inteligentes sobre tudo que está aí. Parece que não dão cambalhotas na piscina.
Rapaz, quantas aventuras você deve estar vivendo. Na sua carta, por sinal, aparece algumas vezes a palavra “aventura”. E você me fala de viagens solitárias e pessoas nômades. Esse mundo parece ficção. Viajar nunca foi tarefa fácil para mim. A primeira vez que saí da América Latina foi em 2013, uma ida a França em maio. Nunca tive nenhum fetiche por Paris ou pela cultura francesa, nem consigo me lembrar por qual motivo eu e a Gabi escolhemos a França, dentre tantos países. Deve ter sido porque gostávamos de coq au vin e de vinhos.
Você contou do drama de perder a bagagem. Nunca me aconteceu, mas tenho um medo tremendo que ocorra. Sou muito apavorado para certas coisas, e sinto que nem anos de terapia seriam capazes de curar isso. Eu tinha uma certeza inconsciente, por exemplo, de que seria barrado na imigração, mesmo estando com os documentos em ordem, mesmo sendo branco, de classe média, mesmo trajando um blazer. Claro que passei tranquilamente, mas uma voz repetia no meu cérebro o tempo inteiro: “Vai dar errado. Não deixarão você entrar. Você será interrogado. Caso passe, vai perder a conexão. Se pegar a conexão, o avião vai cair. Se chegar lá, sua bagagem não estará na esteira”. E assim por diante. Um dos motivos pelos quais só consegui viajar mesmo em 2013, aos 28 anos, segurando a mão da namorada.
É nessas barreiras de imigração, por sinal, que você enxerga toda a tensão racial que parece dominar a Europa: enquanto um branquela como eu passa diretamente, sem grandes inspeções, qualquer mulher trajando uma burca é questionada por minutos e minutos. Em Paris, árabes e negros são vistos mais na periferia, e parecem ser tratados com receio e desdém por alguns parisienses. Posso estar enganado, mas foi a sensação que eu tive. Paris, por sinal, foi uma decepção. É o legítimo caso de uma cidade arruinada pelo turismo predatório. Mesmo evitando lugares mais óbvios, parece que nenhum lugar está a salvo. E sinto que os moradores de lá desenvolveram certo nojo dos turistas. Com razão. Vi cada demonstração de grosseria que seria capaz de preencher cinco cartas com exemplos. Impossível não lembrar o que Foster Wallace diz: o lugar que visitamos seria muito melhor sem a nossa presença.
Por favor, não me entenda mal. Não imagino que você ou seu comparsa Adan sejam turistas incômodos. Estou falando apenas de um mal estar que tenho em lugares muito clichês. Por isso que as cidades que mais gostei ficavam no interior da França. O que me lembra o que você falou de “aventura”. Parece que, nas viagens, há uma guerra dialética entre “aventura” e “conforto”, entre explorar pequenas cidades do México, hospedado em cabanas, ou ficar estirado numa cadeira de praia em um resort paradisíaco. Não vivi nada maluco e fiquei no lado do conforto na França, mas é curioso pensar que a parte mais legal da viagem foi quando eu e Gabi tomamos o caminho menos óbvio. Estávamos em Dijon e decidimos beber os tais vinhos da Borgonha. O hotel oferecia esses pacotes turísticos, um ônibus gostosinho com ar-condicionado que nos levaria até um château. Pensamos em comprar um pacote, mas estavam esgotados. O que fizemos? Descobrimos que havia um château que recebia gente de fora a algumas cidadezinhas de distância. Pegamos um trem até a periferia da cidade e de lá um ônibus que passava com uma frequência desanimadora. Quando entramos no ônibus, estava cheio. Quando descemos, éramos os únicos passageiros. A cidadezinha ficava no fim da linha. Saímos do ônibus e não havia nada ao redor. Nada. Quer dizer, campos verdejantes. Uma casa à distância. Parreiras. Um cão estropiado. Caminhamos sem rumo. Encontramos uma vovozinha meio surda em uma cadeira de rodas. Ela nos orientou até o château, apesar do nosso tosco francês. Batemos na porta e bebemos os melhores vinhos de nossas vidas.
Uma aventura terrivelmente burguesa, sem dúvida. Mas céus, estávamos na França e gostamos de vinho. Tudo que fizermos será terrivelmente burguês. Conto a experiência porque, mesmo visitando o país mais turístico de todos, por um momento nos encontramos perdidos, em terra estranha, e isso pareceu mais especial do que o maldito Arco do Triunfo, que é sem graça pra chuchu.
“Aventuras”. Heh.
Saludos,
Nesky
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De: Emilio Fraia
Jan 3, 2014
Nesky,
Obrigado demais pelo relato. Pensei em finais alternativos: você e Gabi batem na porta do château e bebem os piores vinhos de suas vidas. Ou depois de toda a epopeia ônibus/trem descobrem que o lugar está perturbadoramente vazio, com cara de ter sido abandonado às pressas por algum motivo obscuro. Ou vocês se marcam no Foursquare e são perseguidos por um assassino de blazer branco Miami Vice. Quanto ao argentino Adan meu-vizinho-de-cabana, bem, ele poderia seguir pelo mundo, transmutando manteiga de cacau em chocolate orgânico para, no fim, concluir que seu ideal de “aventura” na verdade não se cumpriu; que sua experiência ficou abaixo da ficção que formou dela mesma; que de um jeito ou de outro, em algum nível, tudo é decepção. Mesmo assim, ele não deixaria de viajar. Vai consertar a bicicleta (está com um problema na correia) e continuar firme, em frente, pedalando. Um tipo de “não posso continuar, tenho que continuar”.
Do lado de cá, fui visitar as ruínas de Palenque, em Chiapas. Que bonito esse tipo de paisagem, desolada, com a natureza avançando sobre os restos das construções. Dá uma espécie de consciência da transitoriedade das coisas. Principalmente do poder. Ver todos aqueles templos carcomidos, pensar que um dia foram edifícios majestosos, feitos por gente que escravizou e/ou devastou tribos vizinhas, que usurpou o lugar daqueles que num momento específico foram tomados como inimigos etc. — uma coisa meio ambiente corporativo, só que com chefes maias de nome K’inich Janaab’ Pakal.
Lá pelas tantas, eu sentei no degrauzinho de uma das pirâmides, fazia um calor desgraçado, e fiquei brincando de tirar fotos em que só aparecessem as ruínas, os templos no meio da selva, sem as pessoas. Esperar o momento, buscar o ângulo certo, e quando não sobrasse ninguém no quadro, clic clic, fotografar. Coisas estúpidas que a gente faz quando está sozinho (a prática da vida secreta, que você conhece bem). Mas os ônibus não paravam de chegar. Era muita gente. Então, analisando as fotos depois, pode-se dizer que minha tentativa de evocar o mundo anterior às procissões de turistas não foi exatamente um sucesso. E mesmo se tivesse sido, ainda restaria: eu. No fundo, acho que somos todos turistas incômodos, compartilhando nas redes sociais nossas peripécias incômodas de turistas incômodos.
E nunca tinha pensado nisso: o Brasil é um país sem ruínas, né. Sem falar que tudo o que existe de mais ou menos antigo entre nós acaba sendo restaurado e, poxa, seria legal ter uns lugares assim, abandonados e caindo aos pedaços, diz aí. Do que conheço, tem o castelo do Garcia D’Ávila, na Bahia, e dois presídios, o da Ilha Anchieta, em Ubatuba, e o da Ilha Grande, no Rio. Não sei se você já esteve lá, mas essas ruínas dos presídios são espetaculares, bons espécimes de passado, ainda que um passado recente. Este último fica numa das praias mais bonitas que já vi, Dois Rios — três horas de caminhada pesada desde o Abraão, a vila onde a maioria das pessoas se aloja na Ilha Grande. Foi lá que o Graciliano Ramos ficou preso, nos anos 30. Madame Satã também. E eu peguei um carrapato na perna, tive febre e achei que fosse morrer (como você é meu amigo, vou te poupar dos detalhes dessa história).
No sábado, recebi um e-mail da Flora, uma amiga que mora na Alemanha. Fazia um tempão que não falava com ela. Na mensagem, ela dizia que se mudou com o namorado para uma reserva cercada de lagos, a uma hora de Berlim, uma casa de três andares, com duas cachorras e dois quartos de hóspedes. Disse que em breve vão abrir vagas para artistas em crise, escritores com bloqueio etc. (a estadia vai incluir alimentação orgânica, lareira e mímica). Depois, me contou que vai passar por uma cirurgia. Eu escrevi de volta, narrando episódios da minha vida recente e contando da vez que tive apendicite. Durante um tempo, nós fomos bastante próximos, a Flora namorava um amigo meu, o Arthur. Então, enquanto escrevia, foi como retomar um pouco essa época, a gente num réveillon na Cajaíba, olhando os plânctons na praia à noite; algo análogo a estar diante das ruínas do templo ou do presídio da Ilha Grande (ok, não é uma imagem muito boa, mas tem a ver com uma espécie de elo, no presente, com essa ficção chamada passado). Na hora foi meio nostálgico, mas não no sentido de que “antes era melhor”, só uma consciência de que o tempo passa e as coisas vão ganhando níveis, complexidade, layers.
Pensei numa história que li outro dia: em 1914, o Giacometti esculpiu seu primeiro busto de observação. Era o irmão dele que posava. Ele conta que de início sentiu um prazer extremo e teve a impressão de que a coisa viria facilmente, de que conseguiria fazer mais ou menos o que via. Cinquenta anos depois, ele está no ateliê, há uma semana, tentando fazer a cabeça daquela época, como em 1914, mais ou menos da mesma dimensão que a primeira. Enquanto em 1914 tinha a impressão de fazer o que queria, agora não consegue mais. E conta que pensando bem nunca mais conseguiu fazer uma cabeça simplesmente como a vê, no sentido mais primário. Se vê uma cabeça de muito longe, tem a ideia de uma esfera. Se vê de perto, ela deixa de ser uma esfera para se tornar uma complicação extrema em profundidade. Se olha de frente, esquece o perfil. Se olha o perfil, esquece a face. Tudo se torna descontínuo, complexo, e ele não consegue mais apreender o conjunto. Estágios demais. Níveis demais. Acho que é isso.
Abraço e urge almoço da indolência,
Emilio
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De: Antônio Xerxenesky
Jan 6, 2014
Caro Emilio,
Nunca vi uma ruína. Quer dizer, estou aqui cavoucando as lembranças atrás de algo, algum passeio pelo interior do Rio Grande do Sul, sei lá. Não, acho que não. Acho que só vi em filmes. E talvez por isso não tenha pensado muito nelas. Mas o que você me falou me fez lembrar A grande beleza, filme de Paolo Sorrentino elogiadíssimo que assisti semana passada. Achei o filme lamentável, tive vontade de sair no meio de tão ruim que achei. Fazia tempo que não sentia isso quanto a um filme. É um sub-Fellini com estética de propaganda de perfume. Quer homenagear 8 e ½, mas não tem um quinto do apuro visual. E dá-lhe travelling no pôr-do-sol.
Mas o que mais me irritou no filme nem foi isso. Foi certa defesa da “antiga Roma”, dos antigos valores. Das ruínas. O tempo todo o filme contrasta o novo decadente com o velho sagrado. De um lado, música pop de quinta categoria, padres aproveitadores e festas dignas de Berlusconi; de outro, a beleza do Coliseu, da Roma de arquitetura clássica, a presença fantasmagórica de Fanny Ardant. Na sequência que considero a pior do filme, uma menina faz sua performance artística com um monte de balde de tintas e o protagonista faz um piadinha sobre como ela ganha milhões. Todo blasé, o protagonista resolve então abandonar a performance e mostrar à sua companheira o que considera a parte mais bela de Roma, a parte “secreta”, estátuas de séculos atrás, tudo embalado na mais melodiosa música sacra.
Não me entenda mal, não estou criticando a tradição, muito menos a música — a trilha do filme é linda, tem Arvo Pärt e Henryk Górecki. Critico apenas a má vontade contra o contemporâneo. É muito, muito fácil fazer piada com arte contemporânea. A cada Bienal de São Paulo (ou de Porto Alegre), a gente precisa aguentar aquela série de piadas sobre alguém que confundiu um extintor de incêndio com uma obra, blá blá blá. Considero muito mais digno o esforço de encontrar valor e produzir reflexão sobre o que está aí — porque tem muita coisa boa aí, seja na arte, seja na música pop. Dizer que vivemos numa grande decadência cultural e moral (que parece ser a mensagem do filme de Sorrentino) é uma saída tão banal e preguiçosa...
Eu estou muito longe de ser um conhecedor da arte contemporânea, e admito com constrangimento que de vez em quando confundo Waltercio Caldas com Cildo Meireles, e que muitas vezes passo por uma exposição pensando que nada fez o menor sentido para mim. E, no entanto, vejo um valor inestimável em um projeto como o de Inhotim. Você já foi lá?
Rapaz, creio que Inhotim é o segredo mais bem guardado do Brasil. Quer dizer, o pessoal do nosso meio de trabalho vai dizer “dã, claro, Inhotim, isso não é segredo, todo mundo conhece”, mas pergunte aos seus pais, primos, amigos de fora do meio literário/jornalístico/editorial. Eles não sabem o que é Inhotim. E é incrível que exista esse lugar no Brasil. Um museu imenso à céu aberto. Um museu onde você pode tomar banho de piscina em uma obra de arte. Um museu que permite que os artistas libertem que o possuem de mais megalomaníaco. Há instalações das quais não gostei muito, mas que me impressionaram justamente pela imponência, como o imenso trator derrubando a árvore de Matthew Barney dentro de uma cúpula espelhada.
Talvez a obra que eu mais lembre de Inhotim seja Sonic Pavilion, criada pelo californiano Doug Aitken. É um pavilhão envidraçado com um buraco no meio. O buraco tem 200 metros de profundidade; no fundo dele, Aitken colocou microfones para gravar o ruído que vem do fundo da Terra e o barulho fica reverberando pelo pavilhão. E qual é o som do fundo da Terra? É terrivelmente grave e estranho. Lembra um pouco os drones tão usados na música experimental. Acho que sou capaz de produzir uma onda sonora parecida no meu sintetizador, mas será um som criado artificialmente, que não veio do fundo da Terra, e isso faz toda a diferença. Só sentando no chão do Sonic Pavilion para entender.
E isso fica no Brasil. A seis horas de carro de São Paulo. Perdoe o deslumbramento, mas acho isso incrível. Pena que os detratores do contemporâneo nunca chegarão nem perto do local.
Vamos marcar aquele almoço, plmdds.
Saudações,
Nesky
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De: Emilio Fraia
Jan 9, 2014
Nesky,
Você conhece a Lei Kenneth Tynan sobre o Cinema Responsável? Ela diz que todos os filmes que tentem diagnosticar a sério os Problemas Humanos Contemporâneos são ruins. Só os filmes históricos, as comédias, as sátiras e os filmes de suspense prestam. Nota: para Tynan, Cidadão Kane é em parte histórico e, em parte, uma sátira. Ou seja, estou 800% contigo. E, pensando depois, a sinopse do A grande beleza podia ser: “A grande beleza (Itália-França/2013, 142 min.) Ao fazer 65 anos, escritor bon vivant questiona rumos de sua vida e encontra o antídoto para a arte vazia e frívola de seu tempo numa revoada de flamingos feita no Windows 95”. Ainda não me recuperei dessa cena dos flamingos, que coisa hedionda.
Sim, fui a Inhotim no ano passado. Gostei de tudo o que você falou. E tem o pavilhão da Lygia Pape. Rapaz. Eu queria escrever daquele jeito, tudo muito simples, elegante e geométrico. Outra obra que me impactou foi a de uma espanhola, Cristina Iglesias. Não sei se você se lembra, fica no meio de uma clareira, num lugar de mata fechada. É uma escultura de aço, espelhada, um labirinto: por fora, as paredes refletem a vegetação ao redor; por dentro, texturas imitam raízes, folhas, troncos. O tempo todo ouve-se um barulho de água. E bem no centro da coisa, depois de percorrer corredores, alguns sem saída, voltar, entrar de novo, chega-se a uma bomba d’água.
E, antes, é preciso andar uns dez minutos numa trilha até alcançar a obra. Essa parte é bem legal também. Tem algo de surpresa, e é como se uma narrativa (a da trilha, no meio do mato) fosse interrompida e invadida por outra (a de uma grande escultura, um objeto estranho, um labirinto espelhado).
Tenho pensado em histórias assim, que de repente se transformam em outras. Acontece muito nos contos do Onetti. Há sempre alguém que conta, imagina, inventa, recorda. E a história contada, imaginada, inventada toma a frente e acaba funcionando como uma espécie de comentário à primeira história, que segue ali, latente, à espreita. No Los ingravidos, da Valeria Luiselli, tem algo assim também. Você leu? Tive a impressão que esse livro passou meio batido aqui no Brasil. A narradora, que tenta escrever um romance, fica obcecada pelo poeta mexicano Gilberto Owen, e a voz dele começa a tomar conta da trama e se mistura às lembranças dela. A justaposição das duas narrativas cria um efeito que achei excelência pura.
E, cara, essa semana foi tensa, um milhão de coisas pra resolver. Devo ter ido ao cartório pelo menos umas cinco vezes. E tem toda a morte que é responder e-mails. Você responde cinco, dez, e eles se multiplicam em quinze, vinte. Revisei também a tradução de um conto meu que vai sair numa coletânea de autores brasileiros da Alfaguara, na Argentina. E estou tentando terminar meu livro. Aliás, fiquei feliz com a notícia de que você está traduzindo o Kassel no invita a la logica, novo do Vila-Matas. É um livro que tem a ver com essas questões da arte contemporânea, né. Está achando bom? Gosto da maneira como o Vila-Matas se aproxima do tema. O História abreviada da literatura portátil é um baita livro. Gosto do lema dos portáteis: escrita por diversão e escrever obras que possam facilmente caber numa maleta (embora, claro, escrever não seja algo exatamente divertido e há romances ótimos que, nossa, como pesam). No Exploradores do abismo tem o famoso conto com a Sophie Calle e, enfim. Tudo infinitamente mais interessante do que a visão do Mario Vargas Llosa sobre arte contemporânea, para dar um exemplo de “detrator do contemporâneo”. E, olha, não me entenda mal, eu adoro Vargas Llosa — Os filhotes, A cidade e os cachorros e Tia Julia e o escrevinhador são livros que calam fundo no peito deste prosador. Mas esse recente, A civilização do espetáculo, não dá. Até entendo o empenho em conservar a tradição do romance etc., mas a coisa não pode ser um Fla-Flu assim.
Vi que numa entrevista recente sobre o Kassel o Vila-Matas cita um trecho de uma entrevista do David Foster Wallace. Então vou transcrever aqui a título de “até mais, Nesky”. É assim: “A ficção pode oferecer uma visão de mundo tão sombria quanto desejar, mas para ser realmente boa ela precisa encontrar uma maneira de, ao mesmo tempo, retratar o mundo e iluminar as possibilidades de permanecer vivo e humano dentro dele”. É meio “literário” e semicafona, né. Mas sei lá. Acho que cheguei aqui, no fim, e estou quase absolvendo os flamingos, as propagandas de perfume e o Windows 95.
Abração, capricha.
Emilio
.
De: Antônio Xerxenesky
Jan 11, 2014
Dearest Emilio,
Fico feliz de ver que concordamos no quesito cinematográfico, embora eu estivesse torcendo por alguma discordância selvagem, algo que tornasse essa última carta um espaço de disputa e briga.
Quanto à instalação de Cristina Iglesias, não me lembrava dela: tive que colocar no Google para confirmar que visitei essa obra em Inhotim. A verdade é que caminhei por esse labirinto sem entender absolutamente nada. Quando isso acontece, também prefiro nem olhar o release explicativo. Esses textos informativos que se propõem a explicar uma obra de arte com um monte de jargões acadêmicos sobre “relação entre o homem e o espaço” tendem a ser nauseabundos. Engraçado como nós dois reagimos de maneira completamente distinta quanto a uma obra — se não fosse a sua menção, nem lembraria desse lugar verde-envidraçado.
Estou me programando para ler Luiselli há bastante tempo. Não acho que ela passou batido por aqui, vários amigos comentaram do livro — a verdade é que quase todo autor latino cujo nome não é Roberto Bolaño acaba sendo menos lido do que deveria no Brasil. Tenho a impressão de que somos muito mais influenciados pelas tendências de mercado norte-americanas; até mesmo os sucessos europeus que emplacam no Brasil tiveram um selo de aprovação dos norte-americanos: Thomas Bernhard, W. G. Sebald... Uma pergunta cruel: teria Roberto Bolaño feito tanto sucesso no Brasil se não fosse o êxito tremendo nos Estados Unidos? Claro, talvez eu esteja sendo paranoico.
Não li ainda a Luiselli porque estou me esquecendo o que é ler um livro por prazer, um romance que escolhi ler por puro capricho. Você sabe como funciona: trabalho oito horas por dia, depois do expediente vou para casa onde trabalho mais, em outra coisa, neste caso a tradução de Vila-Matas, e às vezes ainda tenho alguma resenha ou artigo para escrever, ou ler um livro para redigir as famosas “orelhas não-assinadas”. Céus, e preciso arranjar espaço para ler algo de pesquisa para o meu futuro romance. E um pouco de tempo para assistir a um filme ou série boba, jogar videogame, existir, comer um hambúrguer, escovar os dentes.
Preciso dar um jeito de fazer o dia ter 30 horas.
Ou mudar o meu estilo de vida.
Voltando ao Vila-Matas: não está nada fácil traduzir Kassel. Não por alguma dificuldade intrínseca do livro (embora tenha muitas expressões barcelonenses que eu nunca tinha ouvido), mas porque Vila-Matas é um autor tão presente em minha vida que traduzi-lo é intimidante. Isso não quer dizer que tenho uma idolatria cega por Vila-Matas; como todo autor que realmente admiro, tenho minhas crises de fé. Às vezes acho que tanta metaliteratura e autoficção acaba tirando muito da humanidade, que faltam personagens tridimensionais. E admito que achei Dublinesca e Ar de Dylan livros de pouca vitalidade. Este novo que estou traduzindo, no entanto, é incrível, é Vila-Matas na sua melhor forma. E, se eu acreditasse em sincronicidade, diria que é um recado do destino ter caído nas minhas mãos esse livro. Vila-Matas está tratando de vários temas que vem me obcecando: desde a defesa do contemporâneo — sobre o qual conversamos aqui! — até as caminhadas de Walser e a reclusão de Wittgenstein (o último livro que li 100% por prazer foi a inacreditável biografia de Wittgenstein escrita por Ray Monk). A sua lembrança do História abreviada é certeira — Vila-Matas é ótimo ao lidar com arte contemporânea, especialmente com discípulos de Duchamp.
Enfim, Kassel é um livro excelente e espero que minha tradução faça jus. Não sei como é para você, mas, para mim, traduzir é um tanto como escrever ficção: durante todo o processo, acho que está ficando horrível e que sou uma farsa. Só depois, revisando com calma, que consigo avaliar de forma mais realista o resultado. A exceção recente foi O fundo do céu, livro de Rodrigo Fresán que traduzi. Ao terminar, tive certeza de que fiz um trabalho digno, que Fresán estava soando naturalmente em português, que o resultado foi um romance traduzido sem sotaque e, ao mesmo tempo, fiel. Queria que fosse sempre assim.
Olho o tamanho da carta que escrevi até agora e vejo que estou já abusando do tempo e do espaço, como aquele vencedor do Oscar que fica discursando tempo demais e ignora o volume da orquestra aumentando. Eu queria encontrar uma frase (uma citação também seria válida), um tema, um recado, algo para fechar de um jeito redondinho a nossa correspondência. Nada me ocorre. Tenho andado ansioso, não reconheço mais a diferença entre dia de semana e fim de semana, tenho trabalhado demais e lido por prazer de menos. Por favor, vamos marcar aquele almoço, um almoço terrivelmente longo e inútil, um almoço de três horas, com direito a café em um segundo local e um sorvete de pistache em um terceiro. Acho que estou precisando.
Foi um prazer,
Nesky
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