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Texto novo para o blog da Companhia das Letras:
Na próxima quinta, dia 20, o DW Ribatski e eu lançamos nossa graphic novel, Campo em branco. Além de ser uma história sobre dois irmãos que se reencontram e decidem refazer uma viagem de infância (com toques de montanhismo, corridas de cachorro, física quântica e um carro chamado Urso), é também uma história sobre o branco. No quesito cor, um verde-limão poderia ser mais empolgante, é bem verdade. Todavia, durante o processo acabamos meio que obcecados por esta que é a cor da falta, daquilo que não se diz ou não se entende, da ambiguidade e da incompletude, da bolinha de pingue-pongue e do silêncio.
Escrever (ler) um livro é diferente de fazer (ver) um filme que é diferente de encenar (assistir a) uma peça. A máquina da graphic novel também tem seus parafusos próprios. Nela, para além do enredo, o que se quer dizer está no traço, nos enquadramentos, no tamanho e na disposição dos quadros (que puxa o leitor de um desenho a outro), no processo de virar páginas, na interação das cores. E nos espaços em branco — há uma sintaxe muito particular, e é ela que vai determinar o ritmo, o foco narrativo, o tom e produzir significados e dialogar com a trama.
Nos últimos anos passei a colecionar cenas e histórias em que a cor branca cumpre alguma função ou simplesmente aparece de um jeito bonito. Em determinado momento, fui cair (perdão) n’A pista de gelo, do Roberto Bolaño. É uma espécie de falso livro policial, que se passa num verão, em Z, pequeno balneário fictício na costa catalã. O romance é narrado por três personagens, alternadamente, como se prestassem depoimento à polícia: o que está em jogo é um assassinato, ocorrido numa pista de gelo.
Plasticamente, nada parece melhor para um assassinato do que uma pista de gelo — o designer japonês Kenya Hara em seu interessantíssimo livro White escreveu que “o círculo vermelho da bandeira japonesa fica brilhante como o sol não pelo vermelho do círculo, mas por ter o fundo branco”. Sangue, gelo. É o tipo de coisa que Hitchcock aprovaria.
Quando encontra o cadáver, o narrador de Bolaño fica arruinado, suando frio. O que se segue é uma cena de cromatismo intenso, que mistura branco e os pantones 485 M e 304 U: “O sangue, de diversos pontos do corpo caído, havia escorrido em todas as direções, formando desenhos e figuras geométricas que à primeira vista tomei por sombras. Em alguns setores, o fio de sangue quase chegava à beira da pista. Ajoelhado, talvez por sentir náuseas e vontade de vomitar, contemplei como o gelo endurecido começava a absorver a totalidade da carnificina”.
O que acontece é que Enric Rosquelles, um dos narradores, braço direito da prefeita da cidadezinha, se apaixona por uma patinadora, a bela Nuria Martí. Pouco depois de se conhecerem, Nuria sofre um duro golpe: perde sua bolsa da Federação Espanhola de Patinação. A história maltrata demais o coração de Rosquelles. Sem o dinheiro, ela tem que viver permanentemente em Z, longe das viagens e dos treinos (no máximo ir, de trem, uma vez por semana, à pista de patinação de Barcelona).
Rosquelles arma então um plano melagomaníaco: com verba da prefeitura, aciona operários e constrói uma pista de gelo clandestina nos fundos de um palácio público abandonado. Bolaño observa a existência de um gerador que trabalha a toda potência e, num dos cantos da pista, um feixe de fios elétricos coloridos que some debaixo da “camada branco-azulada” em que a magnética Nuria passa a treinar e fazer suas piruetas.
O sangue mancha o branco. Mas é o branco da pista, em pleno verão da costa catalã, a verdadeira mancha aqui. Há suor, mosquitos, calor, mato crescendo. O branco é um branco artificial, uma pequena ilha em meio a uma escuridão de personagens à deriva e sonhos mortos.
“O secreto argumento desse romance é o medo e a vilificação do branco”, escreveu Borges, sobre o único romance de Edgar Allan Poe, A narrativa de A. Gordon Pym, em seu ensaio “A arte narrativa e a magia”.
Poe é ainda mais sombrio que Bolaño. No livro, o narrador, um jovem bem-nascido, chega ao limite da fome e da privação a bordo de um baleeiro, numa viagem ao extremo sul do continente. É encontrado, na parte final do romance, “no imenso e desolador oceano Antártico, numa latitude de mais de 84o, numa canoa frágil e sem provisão além de três tartarugas”.
Poe vai nos mostrar que o terror é a cor branca. O segredo, que se intui, em meio ao longo inverno polar, é que o branco se relaciona a uma força selvagem, arcana e recôndita que no fundo nunca poderá ser explicada. “Mas eis que em nosso caminho ergueu-se uma figura humana velada, bem maior em suas dimensões que qualquer habitante da terra. E a cor da pele da figura era da perfeita brancura da neve”, escreve.
O romance é de 1838. E faz pensar na história do explorador inglês Ernest Shackleton. Em agosto de 1914, Shackleton e sua tripulação partiram do hemisfério norte com a intenção de serem os primeiros a atravessar a Antártida: em 18 de janeiro de 1915, a apenas 160 quilômetros de seu objetivo, o seu navio, o Endurance, ficou preso nas placas de gelo no mar de Weddell.
A agonia durou nove meses. Junto à tripulação (homens recrutados a partir de um anúncio publicado num jornal britânico — “procura-se homens para uma viagem perigosa. Soldo baixo. Frio extremo. Longos meses de completa escuridão. Perigo constante. Não se garante retorno com vida. Honra e reconhecimento em caso de êxito”), estava um fotógrafo, Frank Hurley. As imagens feitas por Hurley são brutais; tudo branco, muito branco.
Existem diversos outros livros brancos. Alguns deles, são brancos sem nem mesmo fazer referência ao branco — A consciência de Zeno, por exemplo. Porque às vezes, quando pensamos em cenas e histórias, elas têm uma cor. Guerra e paz é vermelho. O grande Gatsby é azul. Ulysses é verde-catarro. Espero que minha próxima fase cromática seja mais colorida. Talvez ir em busca do grande romance fúcsia de nosso tempo.
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Texto novo para o blog da Companhia das Letras:
Na próxima quinta, dia 20, o DW Ribatski e eu lançamos nossa graphic novel, Campo em branco. Além de ser uma história sobre dois irmãos que se reencontram e decidem refazer uma viagem de infância (com toques de montanhismo, corridas de cachorro, física quântica e um carro chamado Urso), é também uma história sobre o branco. No quesito cor, um verde-limão poderia ser mais empolgante, é bem verdade. Todavia, durante o processo acabamos meio que obcecados por esta que é a cor da falta, daquilo que não se diz ou não se entende, da ambiguidade e da incompletude, da bolinha de pingue-pongue e do silêncio.
Escrever (ler) um livro é diferente de fazer (ver) um filme que é diferente de encenar (assistir a) uma peça. A máquina da graphic novel também tem seus parafusos próprios. Nela, para além do enredo, o que se quer dizer está no traço, nos enquadramentos, no tamanho e na disposição dos quadros (que puxa o leitor de um desenho a outro), no processo de virar páginas, na interação das cores. E nos espaços em branco — há uma sintaxe muito particular, e é ela que vai determinar o ritmo, o foco narrativo, o tom e produzir significados e dialogar com a trama.
Nos últimos anos passei a colecionar cenas e histórias em que a cor branca cumpre alguma função ou simplesmente aparece de um jeito bonito. Em determinado momento, fui cair (perdão) n’A pista de gelo, do Roberto Bolaño. É uma espécie de falso livro policial, que se passa num verão, em Z, pequeno balneário fictício na costa catalã. O romance é narrado por três personagens, alternadamente, como se prestassem depoimento à polícia: o que está em jogo é um assassinato, ocorrido numa pista de gelo.
Plasticamente, nada parece melhor para um assassinato do que uma pista de gelo — o designer japonês Kenya Hara em seu interessantíssimo livro White escreveu que “o círculo vermelho da bandeira japonesa fica brilhante como o sol não pelo vermelho do círculo, mas por ter o fundo branco”. Sangue, gelo. É o tipo de coisa que Hitchcock aprovaria.
Quando encontra o cadáver, o narrador de Bolaño fica arruinado, suando frio. O que se segue é uma cena de cromatismo intenso, que mistura branco e os pantones 485 M e 304 U: “O sangue, de diversos pontos do corpo caído, havia escorrido em todas as direções, formando desenhos e figuras geométricas que à primeira vista tomei por sombras. Em alguns setores, o fio de sangue quase chegava à beira da pista. Ajoelhado, talvez por sentir náuseas e vontade de vomitar, contemplei como o gelo endurecido começava a absorver a totalidade da carnificina”.
O que acontece é que Enric Rosquelles, um dos narradores, braço direito da prefeita da cidadezinha, se apaixona por uma patinadora, a bela Nuria Martí. Pouco depois de se conhecerem, Nuria sofre um duro golpe: perde sua bolsa da Federação Espanhola de Patinação. A história maltrata demais o coração de Rosquelles. Sem o dinheiro, ela tem que viver permanentemente em Z, longe das viagens e dos treinos (no máximo ir, de trem, uma vez por semana, à pista de patinação de Barcelona).
Rosquelles arma então um plano melagomaníaco: com verba da prefeitura, aciona operários e constrói uma pista de gelo clandestina nos fundos de um palácio público abandonado. Bolaño observa a existência de um gerador que trabalha a toda potência e, num dos cantos da pista, um feixe de fios elétricos coloridos que some debaixo da “camada branco-azulada” em que a magnética Nuria passa a treinar e fazer suas piruetas.
O sangue mancha o branco. Mas é o branco da pista, em pleno verão da costa catalã, a verdadeira mancha aqui. Há suor, mosquitos, calor, mato crescendo. O branco é um branco artificial, uma pequena ilha em meio a uma escuridão de personagens à deriva e sonhos mortos.
“O secreto argumento desse romance é o medo e a vilificação do branco”, escreveu Borges, sobre o único romance de Edgar Allan Poe, A narrativa de A. Gordon Pym, em seu ensaio “A arte narrativa e a magia”.
Poe é ainda mais sombrio que Bolaño. No livro, o narrador, um jovem bem-nascido, chega ao limite da fome e da privação a bordo de um baleeiro, numa viagem ao extremo sul do continente. É encontrado, na parte final do romance, “no imenso e desolador oceano Antártico, numa latitude de mais de 84o, numa canoa frágil e sem provisão além de três tartarugas”.
Poe vai nos mostrar que o terror é a cor branca. O segredo, que se intui, em meio ao longo inverno polar, é que o branco se relaciona a uma força selvagem, arcana e recôndita que no fundo nunca poderá ser explicada. “Mas eis que em nosso caminho ergueu-se uma figura humana velada, bem maior em suas dimensões que qualquer habitante da terra. E a cor da pele da figura era da perfeita brancura da neve”, escreve.
O romance é de 1838. E faz pensar na história do explorador inglês Ernest Shackleton. Em agosto de 1914, Shackleton e sua tripulação partiram do hemisfério norte com a intenção de serem os primeiros a atravessar a Antártida: em 18 de janeiro de 1915, a apenas 160 quilômetros de seu objetivo, o seu navio, o Endurance, ficou preso nas placas de gelo no mar de Weddell.
A agonia durou nove meses. Junto à tripulação (homens recrutados a partir de um anúncio publicado num jornal britânico — “procura-se homens para uma viagem perigosa. Soldo baixo. Frio extremo. Longos meses de completa escuridão. Perigo constante. Não se garante retorno com vida. Honra e reconhecimento em caso de êxito”), estava um fotógrafo, Frank Hurley. As imagens feitas por Hurley são brutais; tudo branco, muito branco.
Existem diversos outros livros brancos. Alguns deles, são brancos sem nem mesmo fazer referência ao branco — A consciência de Zeno, por exemplo. Porque às vezes, quando pensamos em cenas e histórias, elas têm uma cor. Guerra e paz é vermelho. O grande Gatsby é azul. Ulysses é verde-catarro. Espero que minha próxima fase cromática seja mais colorida. Talvez ir em busca do grande romance fúcsia de nosso tempo.
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