sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

multiplicação e batatas

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Dois trechos de O sentido de um fim, do Julian Barnes.

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"Será que o caráter se desenvolve com o tempo? Nos romances, é claro que sim: senão não haveria muita história para contar. Mas e na vida? Eu às vezes tenho dúvidas. Nossas atitudes e opiniões mudam, nós desenvolvemos novos hábitos e excentricidades; mas isso é uma coisa diferente, mais como uma decoração. Talvez o caráter se pareça com a inteligência, só que o caráter alcança o seu ápice um pouco mais tarde: entre os vinte e os trinta, digamos. Depois disso, somos obrigados a nos contentar com o que temos. Estamos por nossa conta. Se for assim, isso explicaria um bocado de vidas, não é? [...] A questão da acumulação. Você põe dinheiro num cavalo, ele vence, e seus lucros vão para o próximo cavalo na próxima corrida, e assim por diante. Seus lucros se acumulam. Mas o mesmo acontece com as suas perdas? Não em corridas de cavalos — nelas, você simplesmente perde a sua aposta original. Mas e na vida? Talvez aqui se apliquem regras diferentes. Você aposta num relacionamento, ele fracassa; você passa para outro relacionamento, ele fracassa também: e, talvez, o que você perca não sejam duas simples somas de números negativos, mas a multiplicação do que você apostou. Pelo menos, essa é a impressão. A vida não é feita só de adição e subtração. Há também a acumulação, a multiplicação de perdas e fracassos."

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"Um dia, eu disse ao barman:
—Você acha que poderia me preparar batatas fritas finas para variar?
— Como assim?
— Você sabe, como na França, aquelas fininhas.
— Não, aqui não fazemos desse tipo.
— Mas no cardápio diz que elas são cortadas à mão.
— Sim.
— Bem, não dá para cortá-las mais finas?
A costumeira afabilidade do barman fez uma pausa. Ele me olhou como se não soubesse ao certo se eu era um pedante ou um idiota, ou talvez as duas coisas.
— Batatas cortadas à mão significa batatas grossas.
— Mas se você corta batatas à mão, não poderia cortá-las mais finas?
— Nós não as cortamos. Elas vem assim.
— Elas não são cortadas aqui?
— Foi o que eu disse.
— Então o que vocês chamam de "batatas cortadas à mão" são na verdade batatas cortadas em outro lugar, e muito provavelmente por uma máquina?
— O senhor é fiscal da prefeitura, ou algo assim?
— De jeito nenhum. Eu só estou intrigado. Eu nunca me dei conta de que "cortada à mão" significava "grossa" e não "necessariamente cortada à mão".
— Bem, agora o senhor sabe."
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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

mudou a minha vida

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“I had long worried that I was incapable of having a profound experience of art and I had trouble believing that anyone had, at least anyone I knew. I was intensely suspicious of people who claimed a poem or painting or piece of music “changed their life,” especially since I had often known these people before and after their experience and could register no change.

Although I claimed to be a poet, although my supposed talent as a writer had earned me my fellowship in Spain, I tended to find lines of poetry beautiful only when I encountered them quoted in prose, in the essays my professors had assigned in college, where the line breaks were replaced with slashes, so that what was communicated was less a particular poem than the echo of poetic possibility. Insofar as I was interested in the arts, I was interested in the disconnect between my experience of actual artworks and the claims made on their behalf; the closest I’d come to having a profound experience of art was probably the experience of this distance, a profound experience of the absence of profundity.”

Ben Lerner, Leaving the Atocha Station, 2011 (via Nesky)
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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

under the surface of deep, opaque water

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Javier Montes sobre "Temporada", meu conto na Granta.

"Remember Sunset Boulevard? It came to my mind as I read Emilio Fraia’s piece. Both have powerful openings that reflect each other almost perversely. The movie opens with a corpse floating in a swimming pool. A voiceover promises to reveal how it ends up there. Fraia also begins with a swimming pool and the possibility of a corpse hidden in its dark water. But it does not float: it stays stubbornly under the water. So deep, in fact, that nothing ever rises to the surface.

So here is the tale: a riddle in which the corpse in the pool – the mystery at the opening, the secret at its core will not be solved. A story that begins when the water has gone down the drain and we are left with the strange remains and unidentifiable particles of what lies at the bottom.

The story introduces a writer – and a way of writing – who claims a territory that is less Sunset Boulevard, in the end, and more Twilight Zone. In a strange limbo: under the surface of deep, opaque water.

We read about residual lives: about what’s left of them once everything has been drained away. We are faced with a devastated man at the deep bottom of the interior of São Paulo; and then to that man when he was a promising tennis player in London, many years before.

Whatever happened to him and made the latter turn into the former remains hidden. We sense menace: we are faced with a particular kind of symbolic murder mystery (again Sunset Boulevard) in which the murder has been spared. Or is about to happen. O has always already happened.

Speaking of murders, Fraia’s story also put me in mind of a Brazilian modernist master, Lúcio Cardoso and his Chronicle of the Murdered House, where there were no corpses either but one breathed the same claustrophobic atmosphere of enigmas never to be solved. Or, just beyond the Brazilian southern frontier, of the Uruguayan Juan Carlos Onetti, the greatest writer in Spanish of the last century, and his nightmarish, despairing stories, or no, more: beyond despair. Because once again one thinks of limbo, rather than purgatory, when reading this piece.

Like them, like the writers I admire the most, Fraia sets himself the most difficult and respectable task a writer can face: unveiling the mystery without revealing the secret."
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terça-feira, 30 de outubro de 2012

durante uma viagem

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"Durante uma viagem, os objetos aparecem somente para desaparecer. Os objetos não são importantes, assim como não é importante a paisagem. A única coisa que conta é sua aparição e seu subsequente desaparecimento. Uma árvore. Um campo. Mais uma árvore. Tudo passa."

Witold Gombrowicz, Cosmos, 1965
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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

um afastamento

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Late spring, Yasujiro Ozu, 1949
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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

terça-feira, 18 de setembro de 2012

você pode saber tudo, e pode não saber nada

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"Tudo isso remonta a Poe, como sempre. [...] Em "Os assassinatos da rua Morgue", que para mim ainda é um dos grandes triunfos da literatura ocidental, Poe diz duas coisas que podem parecer diametralmente opostas. Primeiro, ele diz que você pode saber tudo. Pode olhar o prego que está sem cabeça, pode olhar o corpo destroçado enfiado na chaminé, pode olhar a bolsa cheia de ouro. E então faz aquelas deduções fundamentais e determina o que realmente aconteceu. E é aí que eu acho que entram a genialidade e a loucura de Poe. Porque você descobre que a cena desses crimes, no conto, foi criada por uma força selvagem, misteriosa, arcana, recôndita, que no fundo nunca poderá ser explicada. Você pode saber tudo, e pode não saber nada."

Errol Morris, em entrevista no número dois da revista Zum
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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

dormir em camas alheias

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"Eu não gostava de dormir sozinha no meu apartamento. Morava em um sétimo andar. Certa noite, enquanto fumávamos um cigarro fora do edifício, disse ao porteiro: Não sei dormir aqui. O que você tem que fazer -- disse -- é sair daqui o máximo que puder. Voltar só para comer e tomar banho, nunca para dormir, porque, à medida que a pessoa vai passando noites em casas diferentes -- quartos, pensões, hotéis, quartos emprestados, camas compartilhadas --, conhece um pouco mais sua intimidade."

"Deixar uma vida. Dinamitar tudo. Não, não tudo: dinamitar o metro quadrado que a gente ocupava entre as pessoas. Mais precisamente: deixar cadeiras vazias nas mesas que se compartilhava com os amigos, não como metáfora, mas na realidade, deixar uma cadeira, tornar-se um buraco para os amigos, permitir que o círculo de silêncio em torno da gente se alargue e se encha de especulações, deixar uma vida para começar outra."

"Quando dormia em camas alheias, dormia profundamente e me levantava muito cedo na manhã seguinte. Vestia-me rápido, roubava algum objeto -- toalhas, principalmente, ou camisetas brancas -- e saía à rua. Comprava um café para viagem, um jornal, e me sentava em algum lugar público e em plena luz do dia para ler. O que mais gostava de dormir em camas alheias era isso, acordar cedo, sair correndo, comprar um jornal e ler ao sol."

Valeria Luiselli, Los ingrávidos, 2011
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quarta-feira, 25 de julho de 2012

minha pintora

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"[...] The story she likes to tell is that she saw me across the dance floor, but as I remember it we were introduced by the photographer at a friend of a friend's apartment. The apartment was about to be gutted, and everyone was allowed to draw something on the walls. I don't know why this was so exciting, but it was. I was given a piece of white wall in the hallway near the kitchen. It didn't get much light, but otherwise I was happy with it. I didn't know anyone at the party, and so the photographer looked around for someone to introduce me to. Just then my painter walked by. The photographer called her over and handed out our names. Then he went off shaking a can of spray.

[...] we were all given a little piece of white wall and the chance to draw on it however we saw fit. Unlike my painter, I am not an artist, nor have I ever wanted to be one. But I'd gotten it into my head to paint a jungle on fire, and wild pigs running out of it, sparks on their feet. The idea came from one of Shiraishi's poems. In it the wild pigs are afraid of humans and always run away from them, until one day a fire breaks out in the virgin forest and they come crashing out of it towards the human beings who they have always been right to fear. I started by drawing the jungle licked by flames which looked fine, more or less, but when it came time to draw the pigs they had none of the speed of terror I'd pictured in my head, and could have passed for dogs or even rats as easily as pigs. What had begun in excitement ended in disappointment, as has been the case with so many things in my life, and because the wall was quite large, and I could do nothing to hide the pigs, I felt embarassed, then humiliated. I decided to abandon it and wander around the rest of the apartment to see what other people were doing, and simply hope that the fiery jungle and the wild pigs or dogs wouldn't continue, in the minds of the others, to be associated with me.

 As I remember it, it was then that my painter and I firts began to talk, and I realized, at some underpass in the conversation, that we would be seeing each other again after that day. [...]"

Nicole Krauss, "My painter", 2007
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domingo, 15 de julho de 2012

nuvem, lâmpada

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Shomei Tomatsu. Hateruma Island, 1971
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William EgglestonRed Ceiling, 1969-71
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segunda-feira, 11 de junho de 2012

cabelo, dinheiro e lágrimas

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Entrevista que fiz com Alan Pauls, no fim do ano passado:

Certa vez, escrevendo o obituário de W.G. Sebald, você anotou, referindo-se a autores de sentenças longas, que “existe uma frase Sebald como existe uma frase Proust e uma frase Bernhard”. Um amigo, Jonas, pergunta: como você definiria a “frase Pauls”? 

Quem dera houvesse uma frase Pauls. Gostaria de estar nesse caminho, me parece que é o máximo a que um escritor pode aspirar. O que tento fazer é que a frase seja um lugar, um espaço, um meio-ambiente. E que o leitor seja capturado por ela e que possa de algum modo viajar pela frase, como os cientistas de Viagem fantástica, um dos meus filmes ruins favoritos. Nele, há um cientista que sofre um acidente vascular. Estamos nos anos 70, a microcirurgia não havia sido inventada, e a única maneira de operar esse homem é reduzir uma equipe de médicos a um tamanho microscópico, colocá-los em uma nave ultramicroscópica, injetá-la no corpo do cientista doente e fazer com que chegue ao lugar onde está o problema. Gostaria que a experiência do leitor fosse como a dessa nave abrindo espaço no fluxo sanguíneo do corpo do cientista. Quando a nave entra no sistema circulatório há de tudo, tormentas, vírus, células malignas. Na frase longa, acontece algo parecido: o leitor pode atravessar, na mesma frase, estados muito diferentes, tempos, espaços, com velocidades altas, baixas etc. Gostaria que a frase fosse como uma substância alucinógena, que pudesse fazer o leitor ir de um estado em que enxerga com total nitidez a outro, em que tudo fica opaco, sem forma. Gosto quando alguém diz “não pude parar de ler o seu livro, ainda que não entendesse nada”. Para mim, é um grande elogio. Penso nos livros como objetos musicais, no sentido de que não há necessidade de entender tudo, não é preciso encontrar sentido sempre.

Outro escritor de frases longas, Faulkner, disse que há três coisas importantes para um escritor: a experiência, a imaginação e a observação. O que acha dessas qualidades? 

Dessas, a única que me parece importante é a observação. A experiência me parece totalmente inútil. Seria preciso definir melhor “experiência”, mas acredito que a sensibilidade é muito mais importante – certa porosidade, uma capacidade de se deixar afetar. Ver a experiência, o acúmulo de diferentes tipo de experiência, como um capital, me parece uma ideia torpe, como se fosse preciso matar vinte búfalos antes de escrever um conto. Essa ideia só serve para mitificar os escritores muito vitais, como Hemingway. A imaginação é outro vício, muito latino-americano aliás, que para mim está ligado ao boom da literatura latino-americana, Garcia Márquez, realismo mágico, vacas que falam etc. Nunca participei dessa ideologia. A observação, no entanto, me parece fundamental, no sentido de ler a todo momento o que está se passando ao redor, detectar as coisas interessantes, os pontos em que algo começa a funcionar de maneira diferente. Depois, creio que o mais importante é ter um desejo louco pela linguagem. Não se pode pensar em escrever se não se tem uma relação muito particular com as palavras. Os escritores veem a linguagem como algo material, como um escultor vê a madeira, ou o bronze, e têm essa relação de desejo, de luta, de desafio.

Em História do cabelo, há um desfile de tipos de cabelo: o loiro comprido da adolescência do protagonista, o corte militar da infância, o cabelo estereotipado dos atores de novela etc. Gostaria que comentasse sobre como o cabelo conduz o romance, sobre a ideia do cabelo como elemento cultural e social.

O cabelo é um fetiche, um elemento cultural fortíssimo. Queria investigar a relação dos homens com o cabelo, que me parece uma relação mais obscura do que a das mulheres. As mulheres converteram essa relação em uma cerimônia social, se apoderaram dos salões de beleza, que são uma espécie de parlamentos femininos. Para os homens, ir ao cabeleireiro é como ir à forca, não comentamos com ninguém, falamos pouco com o cabeleireiro, não fazemos comentários, nem sequer sabemos pedir como queremos que cortem nosso cabelo. Não podemos descrever o cabelo. É muito difícil, é uma situação complicada, tensa, insatisfatória. Nos anos 70, o cabelo era realmente um problema, como tudo era um problema, um problema político. No livro, cito um filme da cineasta francesa Agnès Varda, um documentário sobre os Black Panthers. Varda está com sua câmera, entrevistando, e em algum momento fala sobre o cabelo. Os Black Panthers declaram que o cabelo, para eles, é tão importante quanto as operações políticas a que se dedicam. O cabelo – ainda que algo frívolo, como nos parece agora – era um objeto de luta cultural e política. E na Argentina, naquele momento, havia cortes burgueses e cortes revolucionários. Comprimentos burgueses e comprimentos progressistas. Se olharmos as revistas da época, vemos que a luta política passa pelo cabelo. O drama do protagonista de História do cabelo é que é loiro, tem o cabelo liso e comprido, e se dá conta de que com esse cabelo nunca vai ser revolucionário. Então, sai em busca de um corte que o converta em candidato a revolucionário, não consegue, e acaba perdendo também seu cabelo original, porque não volta a ser loiro. Torna-se um órfão de cabelo. Então, entra e sai dos salões, em busca do corte perfeito, até encontrá-lo, na tesoura de um cabeleireiro paraguaio. A partir daí, como sempre acontece quando um desejo é realizado, começa o pesadelo.

No livro, o narrador fala sobre o cabeleireiro do Elvis.

Sim, ele foi uma figura importante na vida de Elvis. Um dia, Elvis cai nas mãos deste cabeleireiro, chamado Geller, e durante o corte, conversam muito. Quando termina, Elvis sofreu uma espécie de lavagem cerebral: percebe que precisa tê-lo por perto, contrata Geller para que seja seu cabeleireiro pessoal. Geller renuncia a toda sua carteira de clientes, nomes importantes de Hollywood como Paul Newman e Steve McQueen, e passa a se dedicar apenas a Elvis. Vai com Elvis a toda parte, corte seu cabelo ou não; se converte numa espécie de guru filosófico, com quem Elvis tem uma relação de intimidade absoluta. O que me parece interessante nesta relação é a intimidade que um cabeleireiro tem com a cabeça de seu cliente. Colocar a cabeça nas mãos de alguém que muitas vezes não conhecemos, para que corte com instrumentos afiados algo que está muito próximo a centros vitais do corpo. Em certo sentido, não há nada mais íntimo. 

O livro faz parte de uma trilogia, junto com História do pranto e o ainda não finalizado História do dinheiro. Por que partir desses três elementos para falar dos anos 70 na Argentina?

Há algo em comum entre esses elementos: as lágrimas, o cabelo e o dinheiro são coisas que estamos destinados a perder. Minha ideia era escrever uma série de romances sobre os anos 70 na Argentina, porque os anos 70 na Argentina – e suponho que também no Brasil e em grande parte da América Latina – foram uma época maiúscula: a última época histórica realmente importante. Foram anos atravessados por um enorme entusiasmo político e, ao mesmo tempo, por grande horror. Então me pareceu que para abordar essa época tão maiúscula eu teria que escolher elementos minúsculos, entradas laterais, como se fosse acessar um grande edifício pela porta de serviço. O cabelo, o pranto e o dinheiro funcionam, nos livros, como fósseis de um período. Trabalhei como um arqueólogo que começa a escavar e de repente encontra um punhado de lágrimas, uma mecha de cabelo, um maço de notas, e se propõe a reconstruir uma civilização em que esses elementos faziam sentido. O herói dos romances, que é de certa forma o mesmo personagem, é uma espécie de louco, um alucinado que lê toda uma época a partir desses elementos. A obsessão dele é sua enfermidade, sua maneira de se relacionar com o mundo. E o mundo é o mundo dos anos 70 na Argentina.

Mais do que a memória, o que parece lhe interessar nestes livros é justamente a ideia de perda, de esquecimento. No seu livro sobre Borges, El factor Borges, você diz que perder não é uma fatalidade, e sim uma construção. Como isso acontece? 

Quando se perde algo, algo começa. A perda é o início de alguma coisa, sempre. Quando damos conta de que algo se perdeu, começamos a imaginar, alucinar, recordar. Quando tinha 25 anos, Borges escreve sobre Buenos Aires, sobre uma Buenos Aires que não existia mais, mas como se fosse a Buenos Aires de sua época. Tudo sobre o que Borges escreve no presente, de maneira muito nítida e precisa, tudo isso havia morrido há mais de trinta, quarenta anos – o que me faz pensar nas relações entre perder e imaginar. É preciso que se passe um certo tempo entre o acontecimento e o momento em que se escreve. Isso tem a ver com a ideia de que para contar (e imaginar e recordar) é sempre necessário que algo tenha desaparecido. Porque se algo está aí, se algo interessante está aí, podemos simplesmente contemplar, ou travar algum tipo de contato, ou deixar-se levar. Por outro lado, a experiência da perda, por mais traumática que possa ser, por mais dolorosa, sempre nos obriga a algum tipo de trabalho imaginativo, para tapar o buraco, para recordar, para modificar, transformar o que se perdeu.

No início de História do cabelo, o protagonista, que é tradutor, traduz Sonho de uma noite de verão para uma companhia de teatro. Ele diz que a experiência no teatro o obriga a “submeter seu trabalho à opinião, às ideias, ao gosto dos outros”. Como foi atuar no filme de Santiago Palavecino, La vida nueva? Consegue ver alguma relação entre o trabalho do ator e a escrita?

Atuar foi um alívio, um enorme alívio. Quando um autor escreve, ele está só e, sobretudo, é responsável por cada uma das palavras que escreve. Como ator, eu não tinha que ser autor de nada. Era apenas um ventríloquo, um boneco, e descobri que ser títere é melhor do que ser o titereiro. Foi uma experiência de confiança. Em vez de só confiar em mim, que é o que acontece quando escrevo, para atuar é preciso confiar no outro. Tinha que confiar que o diretor não estava louco e confiar no que ele me dizia. Porque eu não sou ator, não quero ser ator, sou um ator ruim, não entendo nada de atuação. Se o diretor acreditava que eu podia atuar, eu podia atuar; se os outros atores me tratavam como um ator, eu devia ser um ator. Eu estava totalmente definido pelos outros. Pensei que isso ia me complicar a vida, porque eu iria resistir, dizendo “não, não sou ator”, “não, não posso fazer”, mas encontrei ali um relaxamento incrível. Estava num estado zen, muito estranho. E sempre tive interesse pelo cinema, fui crítico de cinema e roteirista. Eu ia às filmagens e achava que aquilo tinha um clima de quartel, como se fosse um pequeno exército. Uma comunidade em que as pessoas se adoram, se odeiam, mas vivem juntas, sobretudo quando se filma fora das cidades. A verdadeira ficção do cinema está nessa experiência de todos estarem juntos, envolvidos em um projeto que, na verdade, é ameaçado por todos os lados. No cinema, tudo é ameaçado o tempo todo. Ou o produtor fugiu com o dinheiro, ou o ator se apaixonou pela atriz, ou faz sol quando deveria chover, ou o microfone quebrou. Tudo está sempre sob ameaça.

E para o escritor, quais são as ameaças?

A ameaça máxima é o tédio. O tédio de quando a relação com o texto não produz nenhum tipo de excitação. Não é algo que acontece necessariamente quando as coisas vão mal. Às vezes, tudo vai mal e é muito excitante. Às vezes, tudo corre bem e não funciona. Esse para mim é um ponto perigoso. Tem a ver com a ideia de ofício: não creio que escrever seja um ofício. O escritor adquire uma destreza que faz com que escrever seja apenas resolver tecnicamente os problemas. Escrever não pode ser isso nunca.

Como é o seu ritmo de trabalho? 

Eu me forço a sentar e escrever. O problema de escrever não é escrever, é sentar para escrever. Para mim, não deveria ser preciso sentar, deveríamos escrever em pé. Hemingway escrevia em pé. Uma vez que me ponho a escrever, não há nada mais agradável e prazeroso, inclusive quando as coisas vão mal. Mas sentar-se para escrever é sempre difícil. Como passar da vida real a esse estado estranho, meio autista, que é escrever. A única rotina que tenho é me obrigar a escrever. E se as coisas não vão bem e não posso escrever, ou não está saindo, faço algo que tenha a ver com o que estou escrevendo. Tomar notas, ou corrigir, ou fazer um pequeno plano para os próximos passos; orbitar, dar voltas ao redor daquilo em que estou trabalhando. Preciso de certa solidão, é difícil para mim escrever quando há alguém andando pela casa. Também não consigo escrever em lugares muito bonitos. Sou monástico, gosto de paredes brancas, não gosto de paisagens espetaculares para escrever, porque tudo me distrai.

A internet te distrai? 

Não, porque felizmente sou velho. Não sou antitecnologia, tenho meu computador, meu iPod, mas vou até aí. Odeio celular. Detesto. Aderiria facilmente a um partido político cujo programa fosse contra o celular.

Falávamos sobre quem cresceu nos anos 70, 80, sobre os programas de TV, as novelas, seriados, música pop, videogame. Isso tem algum impacto na sua literatura? 

Não me parece possível que, hoje, um escritor consiga escrever somente a partir da relação que tem com a chamada alta cultura. Se fosse possível, seria quase como um experimento, como os experimentos com as crianças selvagens, que são criadas na selva por lobos ou, sei lá, tucanos. Todavia, estamos acostumados a nos relacionar com um tipo específico de cultura de massa, a que alguém mais ou menos sofisticado elege, como uma atitude sofisticada. Quando temos dez, onze, doze anos é diferente. Não temos nenhum critério artístico nem intelectual para escolher nada e somos invadidos, seduzidos e abusados por uma cultura imunda, muito barata. Hoje, Roberto Carlos se transformou em algo chique. Mas nos anos 60, era muito baixo, pelo menos na Argentina. No entanto, para mim, criança, Roberto Carlos era como um deus, sobretudo quando cantava em espanhol. Todos os cantores estrangeiros desse tipo que iam a Buenos Aires cantavam em espanhol, um espanhol péssimo. Mas para mim aquilo era sexy, irresistível. Só fui me dar conta de que havia sido esculpido por essa cultura depois dos trinta anos. Durante vinte anos, entre os dez e os trinta, vivi lutando contra isso, reprimindo. Isso é algo que me interessa: os péssimos artistas que nos enganam quando somos criança. Nos anos 90, era muito comum nos Estados Unidos a síndrome da memória reprimida, gente que de repente lembrava que havia sido abusado quando criança, e isso se tornou um problema médico muito complexo. Para mim, há algo disso, uma espécie de abuso, que passa pela cultura. E que vamos carregar conosco, sempre.
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sexta-feira, 1 de junho de 2012

uma boca

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"Sua boca tinha, num dos cantos, uma espécie de corte, e esse minúsculo prolongamento de apenas um milímetro repuxava seu lábio superior, com o que ele se levantava — na verdade, deslizava como um réptil —, e essa escorrência fugidia, apesar de me repugnar com seu frio aspecto reptiliano, como de um sapo, não deixava de me excitar, já que era, também, uma escura passagem que conduzia ao pecado sexual — úmido e escorregadio."

Witold Gombrowicz, Cosmos, 1965
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quinta-feira, 31 de maio de 2012

too hot inside too hot outside

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CocoRosie, "Lemonade", Grey Oceans, 2010
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segunda-feira, 21 de maio de 2012

bonsai

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 Texto de orelha que escrevi para Bonsai, livro de Alejandro Zambra.

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Cortar, podar, até que o romance se torne uma miniatura, um resumo, uma narrativa sobre a qual ainda se possa afirmar “é um romance”, mas que ao mesmo tempo deixe à mostra uma instabilidade, certa insuficiência do gênero e, no limite, da própria literatura. É este o procedimento (alguns dizem jardinagem) que está no centro e na origem de Bonsai e faz da ficção de estreia do chileno Alejandro Zambra uma obra densa, breve, genial.

Bonsai é a história de um amor, o de Julio e Emilia, e é a história do fim deste amor. Não seria errado dizer que é também uma história sobre a consciência do fim. E isso não apenas para Emilia e Julio, “jovens tristes que leem romances juntos, que acordam com livros perdidos entre as cobertas”, mas para nós, leitores, que logo na primeira linha desta história falsamente simples recebemos a notícia: “No final ela morre e ele fica sozinho”.

Se o fim está dado desde o início, e nada se pode fazer a respeito (“não é porque se sabe de uma coisa que se pode impedi-la”), a expectativa é deslocada, e o que passa a nos mobilizar são os eventos e circunstâncias que levarão a tal desenlace.

O que acontece é que tudo em Bonsai passa pela literatura.

A trama avança a partir das leituras de Julio e Emilia (Tchekhov, e Perec, Onetti, Schwob, Carver); da mentira que contam um ao outro de que, sim, claro, leram Marcel Proust; de uma noite em que se reúnem para estudar sintaxe; da discussão sobre como Emma Bovary treparia se vivesse nos dias de hoje – “Emma poderia trepar ainda melhor nas condições atuais”.

Isso tudo conduzido por uma voz distanciada, por vezes irônica, de um narrador cujos comentários expõem a todo momento a natureza ficcional do relato. Zambra alcança, assim, um efeito raro e original: uma combinação de seriedade, narrativa realista, paródia e autoparódia.

O ponto de virada da relação do casal também se dá através dos livros. Algo se perde quando um dia, por acaso, leem “Tantalia”, conto de Macedonio Fernández – a história de um casal que decide comprar uma pequena planta para simbolizar o amor que os une, mas que percebe tarde demais que a morte da planta será também a morte desse amor. Instala-se então entre Julio e Emilia um “insólito desconforto”, e um peso se abate sobre tudo.

A partir daí, o que se dá é uma série de equívocos – “esta é uma história leve que se torna pesada”, afirma o narrador –, e Zambra nos faz rodar sem destino, “em círculos e diagonais”, por uma noite imensa, como se a famosa cena da carruagem em Madame Bovary se transformasse numa ronda estéril e solitária, no banco de trás de um táxi.
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domingo, 8 de abril de 2012

três homens de anne moore

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"Uma nota curiosa: Tony adorava filmes pornô e costumava ir com Anne, que até então nunca havia cogitado frequentar cinemas daquele tipo. Nos filmes, chocou-a o fato de que os homens sempre gozavam fora, nos peitos, na bunda ou na cara das parceiras. Nas primeiras vezes sentia vergonha de ir àquele tipo de cinema, vergonha que Tony não parecia experimentar, para ele se os filmes eram legais a gente não devia sentir nenhum tipo de pudor. Anne acabou se negando a acompanhá-lo e Tony continuou indo aos cinemas sozinho. Outra nota curiosa: Tony era muito trabalhador, mais trabalhador (de longe) que qualquer outro homem que Anne tivera na vida. E outra: Tony jamais se irritava, jamais discutia, como se considerasse absolutamente inútil tentar que outra pessoa compartilhasse seu ponto de vista, como se acreditasse que todas as pessoas estavam extraviadas e que era muita pretensão um extraviado indicar a outro extraviado a maneira de encontrar o caminho. Um caminho que não só ninguém conhecia, mas que provavelmente nem existia."

2

"Uma noite, quando trabalhava numa cafeteria, Anne fez amizade com dois irmãos, Ralph e Bill. Naquela noite, foi para a cama com os dois, mas enquanto fazia amor com Ralph fitava os olhos de Bill e quando fazia amor com Bill fechava os olhos e continuava vendo os olhos de Bill. Na noite seguinte, Bill apareceu por lá, mas sozinho desta vez. Naquela noite, foram para a cama, porém, mais do que fazer amor, conversaram. Bill era operário da construção e via o mundo com coragem e tristeza, mais ou menos da mesma maneira que Anne o contemplava. Os dois eram os mais moços de dois irmãos, os dois haviam nascido em 1948 e até fisicamente se pareciam. Não levou um mês para decidirem viver juntos. Naqueles dias, Anne recebeu uma carta de sua irmã, Susan, que tinha se divorciado e agora estava em tratamento para se curar do alcoolismo. Dizia na carta que uma vez por semana, às vezes mais, ia às reuniões dos alcoólicos anônimos e que aquilo estava abrindo um mundo novo para ela. Anne respondeu com um postal típico de San Francisco dizendo coisas que no fundo não sentia, mas quando terminou de escrever pensou em Bill e lhe pareceu que por fim havia encontrado algo na vida, seu alcoólicos anônimos particular."

3

"De repente, Anne se tornou algo importante na minha vida. O sexo foi o pretexto das duas primeiras semanas, mas logo compreendi que acima de nossos encontros amorosos o que realmente nos atraía era a amizade. Naquela época, eu costumava ir à sua casa por volta das oito da noite, quando ela acabava sua última aula particular, e ficávamos conversando até a uma ou as duas. No meio da conversa, ela preparava sanduíches e abríamos uma garrafa de vinho, e ouvíamos música ou descíamos ao Freaks para continuar bebendo e conversando. Na porta desse bar se juntavam muitos dos junkies de Girona, e não era estranho ver perambulando pelos arredores os barras-pesadas locais, mas Anne costumava se lembrar dos barras-pesadas de San Francisco, gente barra-pesada mesmo, e eu me lembrava dos da Cidade do México e ríamos muito, embora agora, na verdade, não sei do que ríamos, talvez de estar vivos, só isso. Às duas da manhã nos despedíamos e eu subia até minha casa no alto de La Pedrera."

Roberto Bolaño, em "Vida de Anne Moore", Chamadas telefônicas, 1997
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domingo, 18 de março de 2012

lembra?

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"Here comes the summer", The Fiery Furnaces, 2005 (via Daniel Galera)
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domingo, 26 de fevereiro de 2012

porque chovia, por causa da sombra

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"Poderia ter acontecido.
Teve que acontecer.
Aconteceu antes. Depois. Mais perto. Mais longe.
Aconteceu, mas não com você.
Você foi salvo pois foi o primeiro.
Você foi salvo pois foi o último.
Porque estava sozinho. Com outros. Na direita. Na esquerda.
Porque chovia. Por causa da sombra.
Por causa do sol.
Você teve sorte, havia uma floresta.
Você teve sorte, não havia árvores.
Você teve sorte, um trilho, um gancho, uma trave, um freio,
um batente, uma curva, um milímetro, um instante.
Você teve sorte, o camelo passou pelo olho da agulha.
Em conseqüência, porque, no entanto, porém.
O que teria acontecido se uma mão, um pé,
a um passo, por um fio
de uma coincidência.
Então você está aí? A salvo, por enquanto, das tormentas em curso?
Um só buraco na rede e você escapou?
Fiquei mudo de surpresa.
Escuta,
como seu coração dispara em mim."

"Por um acaso", Wislawa Szymborska
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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

1987-2007

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"Party girl", Chinawoman, 2007

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"Bleed", Smashing Pumpkins, 1987
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