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Entrevista que fiz com
Alan Pauls, no fim do ano passado:
Certa vez, escrevendo o
obituário de W.G. Sebald, você anotou, referindo-se a autores de
sentenças longas, que “existe uma frase Sebald como existe uma frase Proust e
uma frase Bernhard”. Um amigo, Jonas, pergunta: como você
definiria a “frase Pauls”?
Quem dera houvesse uma frase
Pauls. Gostaria de estar nesse caminho, me parece que é o máximo a que um
escritor pode aspirar. O que tento fazer é que a frase seja um lugar, um
espaço, um meio-ambiente. E que o leitor seja capturado por ela e que possa de
algum modo viajar pela frase, como os cientistas de
Viagem fantástica, um dos meus filmes ruins favoritos. Nele, há um
cientista que sofre um acidente vascular. Estamos nos anos 70, a microcirurgia
não havia sido inventada, e a única maneira de operar esse homem é reduzir uma
equipe de médicos a um tamanho microscópico, colocá-los em uma nave ultramicroscópica,
injetá-la no corpo do cientista doente e fazer com que chegue ao lugar onde
está o problema. Gostaria que a experiência do leitor fosse como a dessa nave
abrindo espaço no fluxo sanguíneo do corpo do cientista. Quando a nave entra no
sistema circulatório há de tudo, tormentas, vírus, células malignas. Na frase
longa, acontece algo parecido: o leitor pode atravessar, na mesma frase, estados
muito diferentes, tempos, espaços, com velocidades altas, baixas etc. Gostaria
que a frase fosse como uma substância alucinógena, que pudesse fazer o leitor
ir de um estado em que enxerga com total nitidez a outro, em que tudo fica opaco,
sem forma. Gosto quando alguém diz “não pude parar de ler o seu livro, ainda
que não entendesse nada”. Para mim, é um grande elogio. Penso nos livros como objetos musicais, no sentido de que não há necessidade de entender tudo,
não é preciso encontrar sentido sempre.
Outro escritor de frases
longas, Faulkner, disse que há três coisas importantes para um escritor: a experiência,
a imaginação e a observação. O que acha dessas qualidades?
Dessas, a única que me parece importante
é a observação. A experiência me parece totalmente inútil. Seria preciso
definir melhor “experiência”, mas acredito que a sensibilidade é muito mais
importante – certa porosidade, uma capacidade de se deixar afetar. Ver a
experiência, o acúmulo de diferentes tipo de experiência, como um capital, me parece
uma ideia torpe, como se fosse preciso matar vinte búfalos antes de escrever um
conto. Essa ideia só serve para mitificar os escritores muito vitais, como
Hemingway. A imaginação é outro vício, muito latino-americano aliás, que para mim
está ligado ao boom da literatura latino-americana, Garcia Márquez, realismo
mágico, vacas que falam etc. Nunca participei dessa ideologia. A observação, no
entanto, me parece fundamental, no sentido de ler a todo momento o que está se
passando ao redor, detectar as coisas interessantes, os pontos em que algo
começa a funcionar de maneira diferente. Depois, creio que o mais importante é
ter um desejo louco pela linguagem. Não se pode pensar em escrever se não se
tem uma relação muito particular com as palavras. Os escritores veem a
linguagem como algo material, como um escultor vê a madeira, ou o bronze, e têm
essa relação de desejo, de luta, de desafio.
Em História do cabelo, há um desfile de
tipos de cabelo: o loiro comprido da adolescência do protagonista, o corte
militar da infância, o cabelo estereotipado dos atores de novela etc. Gostaria
que comentasse sobre como o cabelo conduz o romance, sobre a ideia do cabelo como
elemento cultural e social.
O cabelo é um fetiche, um elemento cultural fortíssimo. Queria
investigar a relação dos homens com o cabelo, que me parece uma relação mais
obscura do que a das mulheres. As mulheres converteram essa relação em uma
cerimônia social, se apoderaram dos salões de beleza, que são uma espécie de parlamentos
femininos. Para os homens, ir ao cabeleireiro é como ir à forca, não comentamos
com ninguém, falamos pouco com o cabeleireiro, não fazemos comentários, nem
sequer sabemos pedir como queremos que cortem nosso cabelo. Não podemos
descrever o cabelo. É muito difícil, é uma situação complicada, tensa, insatisfatória.
Nos anos 70, o cabelo era realmente um problema, como tudo era um problema, um
problema político. No livro, cito
um filme da cineasta francesa Agnès Varda, um documentário sobre os Black Panthers. Varda está com sua câmera, entrevistando, e em algum momento fala
sobre o cabelo. Os Black Panthers declaram que o cabelo, para eles, é tão
importante quanto as operações políticas a que se dedicam. O cabelo – ainda que
algo frívolo, como nos parece agora – era um objeto de luta cultural e
política. E na Argentina, naquele momento, havia cortes burgueses e cortes
revolucionários. Comprimentos burgueses e comprimentos progressistas.
Se olharmos as revistas da época, vemos que a luta política passa pelo cabelo. O
drama do protagonista de
História do
cabelo é que é loiro, tem o cabelo liso e comprido, e se dá conta de
que com esse cabelo nunca vai ser revolucionário. Então, sai em busca de um
corte que o converta em candidato a revolucionário,
não consegue, e acaba perdendo também seu cabelo original, porque não volta a
ser loiro. Torna-se um órfão de cabelo. Então, entra e sai dos salões, em
busca do corte perfeito, até encontrá-lo, na tesoura de um cabeleireiro paraguaio.
A partir daí, como sempre acontece quando um desejo é realizado, começa o pesadelo.
No livro, o narrador fala sobre o cabeleireiro do Elvis.
Sim, ele foi uma figura importante
na vida de Elvis. Um dia, Elvis cai nas mãos deste cabeleireiro, chamado
Geller, e durante o corte, conversam muito. Quando termina, Elvis sofreu uma
espécie de lavagem cerebral: percebe que precisa tê-lo por perto, contrata
Geller para que seja seu cabeleireiro pessoal. Geller renuncia a toda sua
carteira de clientes, nomes importantes de Hollywood como Paul Newman e Steve
McQueen, e passa a se dedicar apenas a Elvis. Vai com Elvis a toda parte, corte
seu cabelo ou não; se converte numa espécie de guru filosófico, com quem Elvis tem
uma relação de intimidade absoluta. O que me parece interessante nesta relação
é a intimidade que um cabeleireiro tem com a cabeça de seu cliente. Colocar a cabeça nas mãos de alguém que
muitas vezes não conhecemos, para que corte com instrumentos afiados algo que
está muito próximo a centros vitais do corpo. Em certo sentido, não há nada mais íntimo.
O livro faz parte de uma trilogia, junto com História do pranto e o ainda não finalizado História do dinheiro. Por que partir desses três elementos para
falar dos anos 70 na Argentina?
Há algo em comum entre esses elementos: as lágrimas, o
cabelo e o dinheiro são coisas que estamos destinados a perder. Minha ideia era
escrever uma série de romances sobre os anos 70 na Argentina, porque os anos 70
na Argentina – e suponho que também no Brasil e em grande parte da América
Latina – foram uma época maiúscula: a última época histórica realmente importante.
Foram anos atravessados por um enorme entusiasmo político e, ao mesmo tempo,
por grande horror. Então me pareceu que para abordar essa época tão maiúscula
eu teria que escolher elementos minúsculos, entradas laterais, como se fosse acessar
um grande edifício pela porta de serviço. O cabelo, o pranto e o dinheiro funcionam,
nos livros, como fósseis de um período. Trabalhei como um arqueólogo que começa
a escavar e de repente encontra um punhado de lágrimas, uma mecha de cabelo, um
maço de notas, e se propõe a reconstruir uma civilização em que esses elementos
faziam sentido. O herói dos romances, que é de certa forma o mesmo personagem, é
uma espécie de louco, um alucinado que lê toda uma época a partir desses
elementos. A obsessão dele é sua enfermidade, sua maneira de se
relacionar com o mundo. E o mundo é o mundo dos anos 70 na Argentina.
Mais do que a memória, o que
parece lhe interessar nestes livros é justamente a ideia de perda, de esquecimento. No seu livro sobre Borges, El factor
Borges, você diz que perder não é uma fatalidade, e sim uma construção. Como
isso acontece?
Quando se perde algo, algo começa.
A perda é o início de alguma coisa, sempre. Quando damos conta de que algo se
perdeu, começamos a imaginar, alucinar, recordar. Quando tinha 25 anos, Borges escreve
sobre Buenos Aires, sobre uma Buenos Aires que não existia mais, mas como se
fosse a Buenos Aires de sua época. Tudo sobre o que Borges escreve no presente,
de maneira muito nítida e precisa, tudo isso havia morrido há mais de trinta,
quarenta anos – o que me faz pensar nas relações entre perder e imaginar. É
preciso que se passe um certo tempo entre o acontecimento e o momento em que se
escreve. Isso tem a ver com a ideia de que para contar (e imaginar e recordar)
é sempre necessário que algo tenha desaparecido. Porque se algo está aí, se
algo interessante está aí, podemos simplesmente contemplar, ou travar algum
tipo de contato, ou deixar-se levar. Por outro lado, a experiência da perda,
por mais traumática que possa ser, por mais dolorosa, sempre nos obriga a algum
tipo de trabalho imaginativo, para tapar o buraco, para recordar, para modificar, transformar o que se perdeu.
No início de História do cabelo, o protagonista, que
é tradutor, traduz Sonho de uma noite de
verão para uma companhia de teatro. Ele diz que a experiência no teatro o
obriga a “submeter seu trabalho à opinião, às ideias, ao
gosto dos outros”. Como foi atuar no filme de Santiago Palavecino, La vida nueva? Consegue ver alguma
relação entre o trabalho do ator e a escrita?
Atuar foi um alívio, um enorme alívio.
Quando um autor escreve, ele está só e, sobretudo, é responsável por cada uma
das palavras que escreve. Como ator, eu não tinha que ser autor de nada. Era apenas
um ventríloquo, um boneco, e descobri que ser títere é melhor do que ser o
titereiro. Foi uma experiência de confiança. Em vez de só confiar em mim, que é
o que acontece quando escrevo, para atuar é preciso confiar no outro. Tinha que
confiar que o diretor não estava louco e confiar no que ele me dizia. Porque eu
não sou ator, não quero ser ator, sou um ator ruim, não entendo nada de
atuação. Se o diretor acreditava que eu podia atuar, eu podia atuar; se os
outros atores me tratavam como um ator, eu devia ser um ator. Eu estava
totalmente definido pelos outros. Pensei que isso ia me complicar a vida,
porque eu iria resistir, dizendo “não, não sou ator”, “não, não posso fazer”,
mas encontrei ali um relaxamento incrível. Estava num estado zen, muito estranho.
E
sempre tive interesse pelo cinema, fui crítico de cinema e roteirista. Eu ia
às filmagens e achava que aquilo tinha um clima de quartel, como se fosse um pequeno
exército. Uma comunidade em que as pessoas se adoram, se odeiam, mas vivem
juntas, sobretudo quando se filma fora das cidades. A verdadeira ficção do
cinema está nessa experiência de todos estarem juntos, envolvidos em um
projeto que, na verdade, é ameaçado por todos os lados. No cinema, tudo é ameaçado o tempo
todo. Ou o produtor fugiu com o dinheiro, ou o ator se apaixonou pela atriz, ou
faz sol quando deveria chover, ou o microfone quebrou. Tudo está sempre sob
ameaça.
E para o escritor, quais são as ameaças?
A ameaça máxima é o tédio. O tédio
de quando a relação com o texto não produz nenhum tipo de excitação. Não é algo
que acontece necessariamente quando as coisas vão mal. Às vezes, tudo vai mal e
é muito excitante. Às vezes, tudo corre bem e não funciona. Esse para mim é um ponto perigoso. Tem a ver com a ideia de ofício: não creio que escrever seja um
ofício. O escritor adquire uma destreza que faz
com que escrever seja apenas resolver tecnicamente os problemas. Escrever não
pode ser isso nunca.
Como é o seu ritmo de trabalho?
Eu me forço a
sentar e escrever. O problema de escrever não é escrever, é sentar para
escrever. Para mim, não deveria ser preciso sentar, deveríamos escrever em pé. Hemingway escrevia em pé. Uma vez que me ponho a escrever,
não há nada mais agradável e prazeroso, inclusive quando as coisas vão mal. Mas
sentar-se para escrever é sempre difícil. Como passar da vida real a esse
estado estranho, meio autista, que é escrever. A única rotina que tenho é me obrigar a escrever. E se as
coisas não vão bem e não posso escrever, ou não está saindo, faço algo que
tenha a ver com o que estou escrevendo. Tomar notas, ou corrigir, ou fazer um
pequeno plano para os próximos passos; orbitar, dar voltas ao redor daquilo em que estou trabalhando.
Preciso de certa solidão, é difícil para mim escrever quando há alguém andando
pela casa. Também não consigo escrever em lugares muito bonitos. Sou monástico,
gosto de paredes brancas, não gosto de paisagens espetaculares para escrever,
porque tudo me distrai.
A internet te distrai?
Não, porque
felizmente sou velho. Não sou antitecnologia, tenho meu computador, meu iPod, mas vou até aí. Odeio celular. Detesto. Aderiria facilmente a um
partido político cujo programa fosse contra o celular.
Falávamos sobre quem cresceu nos anos 70,
80, sobre os programas de TV, as novelas, seriados, música pop, videogame. Isso tem algum impacto na
sua literatura?
Não me parece
possível que, hoje, um escritor consiga escrever somente a partir da relação
que tem com a chamada alta cultura. Se fosse possível, seria quase como um
experimento, como os experimentos com as crianças selvagens, que são criadas na
selva por lobos ou, sei lá, tucanos. Todavia, estamos acostumados a nos
relacionar com um tipo específico de cultura de massa, a que alguém mais ou menos
sofisticado elege, como uma atitude sofisticada. Quando temos dez, onze, doze
anos é diferente. Não temos nenhum critério artístico nem intelectual para escolher
nada e somos invadidos, seduzidos e abusados por uma cultura imunda, muito
barata. Hoje, Roberto Carlos se transformou em algo chique. Mas nos anos 60,
era muito baixo, pelo menos na Argentina. No entanto, para mim, criança,
Roberto Carlos era como um deus, sobretudo quando cantava em espanhol. Todos os
cantores estrangeiros desse tipo que iam a Buenos Aires cantavam em espanhol, um
espanhol péssimo. Mas para mim aquilo era sexy, irresistível. Só fui me
dar conta de que havia sido esculpido por essa cultura depois dos trinta
anos. Durante vinte anos, entre os dez e os trinta, vivi lutando contra isso,
reprimindo. Isso é algo que me interessa: os péssimos artistas que nos
enganam quando somos criança. Nos anos 90, era muito comum nos Estados
Unidos a síndrome da memória reprimida, gente que de repente lembrava que havia
sido abusado quando criança, e isso se tornou um problema médico
muito complexo. Para mim, há algo disso, uma espécie de abuso, que passa pela
cultura. E que vamos carregar conosco, sempre.
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