terça-feira, 27 de setembro de 2011

nunca se deixe fotografar rindo

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Dois trechos de Reflexos e sombras, livro de memórias de Saul Steinberg:

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"O ofício de cartunista é difícil, sobretudo porque é preciso ser editor de si mesmo: cortar, cortar, cortar. Uma pintura, uma colagem de desenhos a lápis, uma paisagem — tudo isso eu faço com prazer e facilidade. São delícias em comparação com a tortura de encontrar uma ideia e representá-la em seguida do modo menos pessoal possível, porque de outro modo se prejudicaria a clareza da ideia. Pela manhã, pego o caderno e a lapiseira e começo a desenhar. O que fazer? O que farei? Me sinto perdido, as ideias parecem finitas. Mas depois não é bem assim [...].

O mais difícil é cortar rápido um bom número de coisas. Outras vezes, o computador da mente deve fazer um elemento vertical percorrer todas as linhas horizontais das possibilidades. Mas, sobretudo, preciso ser capaz de associar as ideias das maneiras mais imprevisíveis.
Encontrada a ideia, ou melhor, o veio, a direção, sinto que, curiosamente, ela não é nova para mim. Como quando se escava um sítio arqueológico, acabo por encontrar alguma coisa que com certeza devia estar ali e que fazia parte, como fragmento, de alguma outra coisa que eu já conhecia. Ou seja: encontrei apenas alguma coisa de que tinha me esquecido momentaneamente. Às vezes, acho que entendi tudo, e poucos minutos depois me surpreendo ao me dar conta de que não entendi nada, não me lembro mais do que tinha afinal entendido. Compreendemos por meio de uma emoção. Fiquei felicíssimo quando, pela primeira vez, entendi que entendia. Difícil explicar melhor: entender que entendera, entender que a coisa é possível, entender que, mesmo estando perdida por ora, não está perdida para sempre."

2

"Nunca se deixe fotografar rindo ou sorrindo, Barnett Newman me disse uma vez. Se quiserem fotografá-lo, vista-se bem, mostre sua face mais agradável, mas sem sorriso, um rosto sério, plácido mesmo, porque está em jogo a dignidade do ofício, a dignidade de ser pintor, artista. Os fotógrafos tentam torná-lo normal, um entre outros, para poder dizer: 'O que ele tem que nós não temos? Qualquer um pode fazer o que ele faz'."
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quinta-feira, 8 de setembro de 2011

história do cabelo

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Passei o último mês cercado por 1) expressões do tipo: "selva de cabelo", "juba de eletrocutado", "molotov capilar"; 2) produtos como o: Regenerador de Cabelo com Baba de Caracol; 3) salões de nome majestoso, com destaque para: Stilo Stella, Coca Peinados, Voilà, Vivian de Lyon; 4) e toneladas de: tintura, escova, pente, gel, gomalina, rede, bobe, grampos, alisamento quente, xampu, loção, tesoura, implante, peruca e água oxigenada. Tudo graças a um romance que editei, li e reli, História do cabelo, do argentino Alan Pauls. É a SAGA de um sujeito obcecado por cabelo. Enquanto entra e sai dos salões — em busca do seu Santo Graal: o corte perfeito —, tudo a sua volta passa pelo cabelo; desde a infância, namoradas, amigos, seu casamento, tudo. 

Gosto das frases longas, o narrador em terceira pessoa, distanciado, mas ao mesmo tempo tão próximo deste protagonista que vaga feito um fantasma por Buenos Aires, refém de seu "probleminha", a obsessão com as coisas do cabelo. E gosto especialmente quando Celso, o genial cabeleireiro paraguaio, entra em cena. Celso corta o cabelo do protagonista, que segue desconfiado: "É a lei pérfida mas fatal do corte, que — como toda droga — põe em primeiro plano um de seus efeitos, o efeito imediato, 'bom', e faz com que passe despercebido o outro, o efeito tempo, que previsivelmente nunca traz senão deterioração, tristeza, decadência." Mas, ao se despedir do cliente, Celso diz: "Nos vemos em um mês". E isso tem um efeito de laquê no cérebro do protagonista de Pauls: 

"Dez minutos mais tarde, enquanto atravessa a cidade como se estivesse sedado, com as pálpebras pesadas, ele se toca: é a primeira vez que um cabeleireiro lhe revela o horizonte de vida de um corte. Nenhum corte é eterno. Celso, pensa, é o primeiro que corta no tempo, ao contrário dos outros, que apostam tudo no ato de cortar e ficam cegos perante a única coisa que não deveriam perder de vista: a vida do corte, esse futuro sem o qual não é nada. [...] Quarenta e oito horas mais tarde, intervalo mais do que suficiente para que o trabalho que lhe fizeram mostre a que veio, se é que veio, e o decepcione de uma vez, o corte não só continua vivo e viçoso como melhora. [...] Celso é um gênio. O tempo, o travesseiro, o despertar, a ducha, a toalha, a oleosidade, a luz, os espelhos, o cabelo dos outros, o vento, a vida no mundo: não há prova que o corte não tenha superado, e superou todas elas sem o menor esforço, com uma folga aristocrática". 

Abaixo, mais um trecho e a maior capa de todos os tempos.
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“[...] ter cabelo é uma condenação porque é ter a possibilidade de perdê-lo, é uma condenação atroz porque, assim que descobre que pode perdê-lo, quem tem cabelo sabe que deixou de ser inocente, sabe que daí até a sua morte, na melhor das hipóteses, ou até que seu cabelo comece a cair, na pior, está fadado a um calvário perfeitamente estéril: conjurar o perigo cuidando do cabelo. E isso não é nada. Porque a essa atrocidade perpétua se soma outra: também a evidência de que ter cabelo é ter de cortá-lo, e que cortá-lo é exatamente o contrário de perdê-lo, porque só se perde o cabelo uma vez e para sempre, de maneira defnitiva, como se fica de cabelos brancos da noite para o dia em decorrência de um trauma ou de um golpe de terror, ao passo que um corte é apenas o ponto de partida de uma série, a primeira de um infinito rastilho de repetições, porque se cada corte é único, fruto de um conjunto complexo de variáveis, o estado em que o cabelo chega ao corte, o pedido exato de quem vai cortá-lo, o cabeleireiro a quem se confia seu cabelo, o ponto em que está nesse momento a técnica do ofício de cabeleireiro, as ferramentas utilizadas no corte, o nível de estresse ou de calma que impera no salão no momento do corte – todos se parecem, todos são de algum modo um único, um mesmo corte e ninguém, nunca, dá nem dará a quem corta o cabelo o que ele realmente quer. Não é o mal nem o bem; é o fantasma, a besta negra, o demônio da irregularidade que se apossa de seu corpo. Aprende basicamente que não há cabeleireiro que corte duas vezes do mesmo jeito. No seu caso, ou porque não consegue pedir o que quer duas vezes da mesma forma, ou porque o cabeleireiro nunca entende o pedido do mesmo jeito ou porque – mesmo que o corte seja o mesmo, o cabelo, flagrado em determinada fase de crescimento, diferente, quase com certeza, em minutos, horas ou dias da fase em que foi cortado pela última vez – acaba por interpretá-lo e modulá-lo de maneira diferente, quase sempre desviando-o de seu sentido original. Aprende a dor da insatisfação, esse misto tortuoso de tédio, fome e insônia que leva muitos dos que chafurdam com ele naquela época a botar uma arma na cintura, a se infiltrar no vestiário de um clube para roubar carteiras e porta-documentos alheios ou aproveitar a casa de uma avó permissiva para desdobrar mapas de unidades militares sobre as toalhas de macramê. A insatisfação: que não cortem bem o seu cabelo, que cortem bem mas que o efeito só dure alguns dias, que aquele corte fantástico que ilustra a foto da revista que ele leva como modelo não se afine com o seu cabelo, ou não combine com o seu rosto, ou se afine e combine mas o transforme numa estúpida cara de foto de revista.”

Mais aqui.
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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

lembro apenas da mulher que encontrei por acaso

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"Once I pass’d through a populous city, imprinting my brain, for future use, with its shows, architecture, customs, and traditions;
Yet now, of all that city, I remember only a woman I casually met there, who detain’d me for love of me;
Day by day and night by night we were together,—All else has long been forgotten by me;
I remember, I say, only that woman who passionately clung to me;
Again we wander—we love—we separate again;
Again she holds me by the hand—I must not go!
I see her close beside me, with silent lips, sad and tremulous."

Mais Leaves of grass, Whitman
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